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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.208 Lisboa jul. 2013

 

Da sociologia como profissão à sociologia crítica

Entrevista com José Madureira Pinto* por Renato Miguel do Carmo** e Virgílio Borges Pereira*

*Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras, U. do Porto. e-mails: jmp@fep.up.pt e jpereira@letras.up.pt

**CIES, ISCTE-IUL. E-mail: renato.carmo@iscte.pt

 

Tendo como ponto de partida o seu percurso científico no campo das ciências sociais e, particularmente, da sociologia, que se desenvolve fundamentalmente a partir do ingresso, em 1971, no Gabinete de Investigações Sociológicas (GIS), José Madureira Pinto percorre ao longo desta entrevista um conjunto diversificado de temas. Desde logo é ­realizada uma leitura sobre o processo de institucionalização e de crescimento da sociologia ­ocorrido nestas últimas quatro décadas, sublinhando-se o modo como este se foi descentralizando e ganhando relevância em diferentes universidades e centros de investigação situados em diversas zonas do país. Foca-se particularmente a situação do curso de sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e a consolidação do Instituto de Sociologia da mesma instituição. A este respeito abordam-se também as dinâmicas editoriais que levaram à criação de várias revistas científicas, com destaque para a Cadernos de Ciências Sociais, da qual foi fundador e diretor. Numa outra linha de reflexão, discutem-se criticamente diversas perspetivas teóricas, salientando-se a importância de autores como Pierre Bourdieu e do seu contributo para a ­construção de um programa de investigação que continua a ser muito pertinente para o estudo dos mais variados fenómenos sociais. Paralelamente são inventariados os marcos fundamentais das investigações que foi realizando ao longo deste período, designadamente o estudo iniciado conjuntamente com João Ferreira de Almeida sobre a freguesia de Fonte Arcada, o concelho de Penafiel e o Vale do Sousa. A um outro nível são sublinhadas pelo entrevistado as preocupações quanto ao enquadramento da produção de conhecimento científico na conceção das políticas públicas, sem que estas se sobreponham ao necessário aprofundamento analítico e reflexivo. Por fim, na última parte da entrevista, uma análise sobre o futuro que se apresenta, no atual contexto de crise, particularmente difícil para as ciências sociais e, sobretudo, para as novas gerações de investigadores, mas que, ao mesmo tempo, compreende um conjunto de potencialidades que advêm, em grande medida, da dinâmica intelectual e empenhada dessas mesmas gerações.

 

José Madureira Pinto é Professor Catedrático aposentado do Grupo de Ciências Sociais da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, onde se licenciou. Doutorou-se em sociologia pelo ISCTE em 1982. É investigador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto e membro da sua Comissão Executiva.

Publicou os seguintes livros: A Investigação nas Ciências Sociais (em colaboração com João ­Ferreira de Almeida), Lisboa, Presença, 1976; Ideologias: Inventário Crítico dum Conceito, ­Lisboa, Presença, 1978; Estruturas Sociais e Práticas Simbólico-culturais nos Campos, Porto, Edições Afrontamento, 1985; Metodologia das Ciências Sociais (org., em colaboração com Augusto Santos Silva), Porto, Edições Afrontamento, 1986; Propostas para o Ensino das Ciências Sociais, Porto, Edições Afrontamento, 1994; Pierre Bourdieu. A Teoria da Prática e a Construção da Sociologia em Portugal (org., em colaboração com Virgílio Borges Pereira), Porto, Edições Afrontamento, 2007; Indagação Científica, Aprendizagens Escolares, Reflexividade Social, Porto, Edições Afrontamento, 2007; Desigualdades, Desregulação e Riscos nas Sociedades Contemporâneas (org., em colaboração com Virgílio Borges Pereira), Porto, Edições Afrontamento, 2008; Ir e Voltar. Sociologia de uma Colectividade Local do Noroeste Português (1977-2007), vol. I (org., em colaboração com João Queirós), Porto, Edições Afrontamento, 2010.

Dirigiu vários projetos financiados pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT) e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), o último dos quais envolveu a revisitação sociológica de uma coletividade local do Noroeste português que já havia estudado em finais dos anos 1970. Colaborou recentemente numa prolongada pesquisa de terreno, financiada pela Agência de Desenvolvimento do Vale do Ave (ADRAVE), e dirigida por Virgílio Borges Pereira, sobre a formação do quotidiano num contexto (des)industrializado do Vale do Ave, bem como no volume a que a mesma pesquisa deu lugar: Ao Cair do Pano, organizado por aquele investigador (ADRAVE/Edições Afrontamento, 2012).

É autor de algumas dezenas de artigos e capítulos de livros sobre teoria e metodologia das ciências sociais, sociologia rural, sociologia da educação e das práticas culturais, sociologia do trabalho e das classes sociais. Foi presidente da Associação Portuguesa de Sociologia entre 1990 e 1994. Dirige a revista Cadernos de Ciências Sociais. Organizou, a convite da Comissão Nacional das Comemorações do Centenário da República, o Colóquio Desigualdades Sociais: os Modelos de Desenvolvimento e as Políticas Públicas em Questão, tendo coordenado a publicação das respetivas atas, em volume que recebeu o mesmo título (Caleidoscópio, 2011). Foi consultor do presidente da República Jorge Sampaio para a área da economia, desenvolvimento e sociedade entre 1996 e 2006.

 

RENATO MIGUEL DO CARMO - Para iniciar, gostaríamos que refletisse um pouco sobre o processo de consolidação institucional das ciências sociais, em função da sua experiência no Gabinete de Investigações Sociais e, mais tarde, na Universidade do Porto, quer na Faculdade de Economia, quer no âmbito do curso de sociologia da Faculdade Letras, e, depois, no Instituto de Sociologia.

JOSÉ MADUREIRA PINTO - Ingressei no Gabinete de Investigações Sociais numa altura em que o GIS já tinha história feita. Comecei a trabalhar lá no ano de 1971, depois de, em 1968, ter concluído a licenciatura em economia na Faculdade de Economia do Porto e de, nesta Escola, ter lecionado durante o ano letivo de 1968-1969 (atividade que interrompi por ter sido chamado a cumprir o serviço militar).

Iniciei o meu trabalho no GIS integrado numa equipa que viria a ter responsabilidades no ensino de uma disciplina de Introdução às Ciências Sociais no Instituto Superior de Economia (hoje, Instituto Superior de Economia e Gestão). Como já foi dito por vários colegas entrevistados em anteriores números da Análise Social, esse foi um período de formação coletiva extremamente rico, que, no meu caso, permitiu, em tempo relativamente curto, uma aquisição e estruturação de conhecimentos na área das ciências sociais que antes não tinham estado ao meu alcance, tanto mais quanto, por razões circunstanciais, começara a vida académica lecionando no âmbito das disciplinas de gestão.

Graças a esta rutura intelectual, que foi também uma rutura no plano pessoal (chamada ao serviço militar e alguma radicalização política), pude beneficiar, durante alguns anos, dos resultados do processo coletivo de acumulação de conhecimentos que marcou a primeira geração dos sociólogos portugueses.

Num contexto político-institucional particularmente adverso ao desenvolvimento dos estudos sociais, o papel de Adérito Sedas Nunes foi, como é consensual, importantíssimo. Além de muito conhecedor em vastos domínios das ciências sociais (sociologia, certamente, mas também economia, ciência política, etc.), fazia questão de integrar sistematicamente na sua abordagem sobre a realidade social uma reflexão epistemológica muito aberta e acutilante – o que ampliava significativamente o alcance das suas intervenções. Além disso, era um organizador de trabalho particularmente competente e perspicaz: percebia muito bem aquilo de que cada um dos seus colaboradores era capaz e quais as áreas em que seria mais útil investirem. Creio que todos os membros do GIS desta fase beneficiaram muito com a liderança de Adérito Sedas Nunes – eu beneficiei muitíssimo.

 

RMC - Pode concretizar o modo como se deu a sua integração no GIS? Qual foi a porta de entrada?

JMP - Iniciei muito jovem o meu percurso académico, ensinando, como já disse, na área da gestão (concretamente, comecei por lecionar na Faculdade de Economia do Porto, contabilidade de custos). Mas, não obstante o relativo sucesso, em termos pedagógicos, dessa experiência, a que se somava algum incentivo tácito de ordem familiar para prosseguir neste caminho, cedo percebi que não era por aí que iria passar o meu futuro profissional. Para esta viragem – a que não foi indiferente, como já sugeri, uma crescente politização – contribuiu de forma significativa o contacto que tive, no final da licenciatura, com uma ­disciplina lecionada pelo professor Mário Pinto, de quem já tinha sido aluno noutra cadeira. Versava a referida disciplina direito corporativo, mas, numa atitude de grande coragem, que nunca deixo de realçar, fazia o professor Mário Pinto questão de não ensinar rigorosamente nada do que se esperaria, na época, de um curso sobre direito corporativo. O que ele fez foi pôr os alunos a estudar e a discutir nas aulas um texto de Iniciação às ciências sociais de autoria de Adérito Sedas Nunes, que este lecionava no Instituto de Estudos Sociais, instituição que precedeu e de algum modo veio a dar origem ao Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa. No ano em que terminava a minha licenciatura em economia (faltavam ainda seis anos para o 25 de abril), o curso de Direito Corporativo na Faculdade de Economia do Porto foi, de facto, graças à clarividência de um jurista rebelde, um curso semiclandestino de introdução às ciências sociais. Acontece que muitos elementos que vão surgir mais tarde em Questões Preliminares sobre as Ciências Sociais já eram abordados no discreto texto policopiado a que tive o privilégio de aceder pela mão de Mário Pinto. E o que ele me revelou foi suficientemente estimulante para me tornar um aluno particularmente empenhado e participativo nas aulas (onde, com grande entusiasmo, se discutiam quer o texto-base, quer trabalhos realizados pelos alunos nele direta ou indiretamente inspirados). Daí, talvez, algum descontentamento que o professor Mário Pinto me transmitiu quando soube que, tendo sido recrutado como assistente, ia lecionar na área de gestão. A verdade é que quando, poucos anos mais tarde, ele soube que, apesar de eu estar a cumprir o serviço militar, tinha decidido investir mais sistematicamente no estudo da sociologia e tinha algum tempo livre para outras atividades, indicou o meu nome ao professor Sedas Nunes. Este, para minha grande surpresa, contactou-me, entrevistou-me, e convidou-me para integrar a equipa docente de introdução às ciências sociais, que, como já disse, iria ser lecionada no Instituto Superior de Economia sob sua orientação.

 

RMC - Até aí, não conhecia nenhuma das pessoas com quem veio a trabalhar…

JMP - Não conhecia ninguém, embora estivesse informado da existência de um movimento de renovação das ciências sociais dirigido pelo professor Sedas Nunes, de que a revista Análise Social se fazia eco. Lia regularmente a Análise Social, que, embora com poucos anos de existência, era já, nessa altura, uma instituição respeitada e com alguma influência no meio universitário do Porto (lembro-me de que, quando saía um número da revista, gerava-se sempre grande entusiasmo nos círculos a que eu pertencia), e esse contacto constituiu componente importante de uma formação não estruturada que fui fazendo na área da sociologia, permitindo-me simultaneamente alargar a reflexão sobre a relação entre a economia e as outras ciências sociais, tópico frequentemente abordado nas páginas da revista. Neste aspeto, os trabalhos de Mário Murteira foram particularmente relevantes, já que me revelaram áreas de fronteira entre a sociologia e a economia que até então me escapavam, bem como a obra de autores como François Perroux, por exemplo, que as exploravam sistematicamente de forma muito inspiradora. O facto de o já invocado professor Mário Pinto ter publicado na revista vários artigos sobre questões do trabalho e do sindicalismo reforçava o meu interesse em acompanhar à distância o trabalho que se fazia no GIS nos anos 1960 – mas estava longe de pensar que viria a integrá-lo.

Se, até ingressar no Gabinete de Investigações Sociais, a minha relação com a sociologia era feita de leituras interessadas mas eminentemente dispersas, o trabalho que aí passei a desenvolver caracterizou-se, bem pelo contrário, por grande intensidade e elevado grau de estruturação, privilegiando áreas-base de formação, especialmente a metodologia e epistemologia das ciências sociais. Algumas obras de grande fôlego, e na época altamente inovadoras, como Le métier de sociologue, de Bourdieu, Passeron e Chamboredon (cuja importância era entusiasticamente assinalada por Maria Eduarda Cruzeiro), foram objeto de leitura e discussão coletivas. Creio poder dizer que, em relativamente pouco tempo, consegui colmatar evidentes carências e lacunas nestes domínios fundamentais, graças ao estimulante clima institucional que, sob a égide de Adérito Sedas Nunes, se criou no GIS. E o essencial da crítica dos modelos empirista e formalista do conhecimento sociológico, que fui aprofundando em muitas publicações ao longo da minha carreira académica, ficou seguramente moldado pela consistente e fundamentada defesa do “racionalismo aplicado” que, em torno do Métier de sociologue, conseguimos afinar e partilhar nessa altura. Noutras áreas em que a minha formação de base conferia algumas “vantagens relativas” – como as da matemática e estatística –, fui, eu próprio, animador de uma espécie de cursos livres que, em “regime noturno”, fomentavam a aprendizagem destas matérias junto de colegas que tinham outro tipo de formações de base. Foi, creio eu, um período inesquecível para quem teve o privilégio de o viver.

Paralelamente à participação neste trabalho coletivo, procurei desde muito cedo delimitar um território de investimento teórico próprio, e, nessa perspetiva, fui-me concentrando no estudo das dimensões simbólico-ideológicas do social. A crença nas virtualidades do cruzamento interdisciplinar de saberes acabou então por me aproximar do terreno das ciências da linguagem, uma área que, no campo intelectual português de então, a pretexto do intenso debate “francês” em torno do estruturalismo, revelava grande dinamismo. O livro Ideologias: Inventário Crítico de um Conceito, que reúne artigos publicados previamente na Análise Social, acabará por refletir essa aproximação, mas inclui também uma discussão sobre velhas questões sociológicas relativas à natureza, funções e determinantes sociais dos quadros ideológico-culturais, ou, como aí acabará por se dizer, da produção, circulação e apropriação sociais de sentido.

Ora, a este respeito, será interessante sublinhar a circunstância de, ainda na fase inicial de reconversão da minha formação académica original, ter sido confrontado com a publicação em 1972 do Esquisse d’une théorie de la pratique, de Pierre Bourdieu, um livro que, mau grado todos os meus esforços, fui incapaz de compreender numa primeira abordagem. Acontece que, à medida que fui assimilando o essencial das propostas teóricas e meta-teóricas do Esquisse, percebi que alguns pressupostos e conceitos em que até aí me apoiava para pensar a dimensão simbólico-ideológica dos processos sociais precisavam de ser revistos. Tal facto teve consequências sensíveis em toda a lógica da argumentação teórica que estava a desenvolver no âmbito da elaboração do Ideologias: Inventário Crítico de um Conceito, levando-me além do mais a sublinhar nas suas páginas, sem que tal tivesse sido inicialmente previsto, toda a importância de um domínio que, até hoje, considero dever merecer uma atenção muito particular por parte da sociologia: o processo de socialização, esse movimento, tantas vezes invisível, de incorporação da objetividade estrutural do mundo na subjetividade singular dos seus agentes, sem o qual não há prática social.

Quando levava um pouco mais de três anos de formação sociológica acelerada no âmbito do GIS, aconteceu o 25 de abril de 1974 e, com ele, uma alteração radical da estrutura de oportunidades académicas ao alcance dos jovens sociólogos portugueses. Fui então convidado pelos novos corpos diretivos da Faculdade de Economia a regressar ao Porto, o que fiz com entusiasmo, por me parecer que este regresso, para além de conter aliciantes de ordem pessoal e familiar, colocava desafios intelectuais interessantes, em particular o de tentar incutir nas novas gerações de estudantes de Economia o gosto e o interesse genuíno pela sociologia e outras ciências sociais, contribuindo para aperfeiçoar a sua formação.

Na sequência deste regresso, que não me impediu de manter durante alguns anos o estatuto de membro do GIS, agora como seu “colaborador externo”, ­iniciou-se uma fase da minha vida académica que iria durar cerca de três décadas e meia, durante a qual, com vários colegas muito preparados e motivados, participei na tentativa de adequação do património de conhecimentos e experiências de pesquisa na área da sociologia que partilhávamos às mutáveis exigências dos planos curriculares das licenciaturas em Economia e, mais tarde, em Gestão, da FEP. Procurei sistematizar, no âmbito das provas de Agregação em Ciências Sociais realizadas em 1991, os resultados de âmbito pedagógico, epistemológico e metodológico alcançados até então. Será a partir desses materiais que surge o livro Propostas para o Ensino das Ciências Sociais. Mas, já antes, com a organização (em colaboração com Augusto Santos Silva) do volume Metodologia das Ciências Sociais, havia sido feita uma tentativa de associar à nossa experiência de ensino e sistematização das questões de metodologia os contributos de alguns importantes especialistas nacionais de várias áreas científicas.

 

VIRGÍLIO BORGES PEREIRA - Esse período é marcado por uma outra figura cimeira das Ciências Sociais – o Professor Armando Castro…

JMP - Sem dúvida. O professor Armando Castro era o coordenador do Grupo de Ciências Sociais da Faculdade e foi, desde o meu regresso à FEP em 1974, alguém que sempre me apoiou incondicionalmente (como aliás a todos os seus colaboradores), e com quem era impossível não aprender alguma coisa todos os dias. Com uma vastíssima obra no domínio da história económica, que fora realizando sem quaisquer apoios financeiros e quase clandestinamente desde muito antes do 25 de abril de 1974, ele dominava, além disso, um leque verdadeiramente enciclopédico de domínios das ciências sociais. Era capaz, como ninguém, de quase instantaneamente localizar qualquer problema com que os colegas se debatiam nas suas atividades letivas no espectro das grandes questões epistemológicas da ciência contemporânea – e isso permitiu a muitos de nós percorrer caminhos de pesquisa “improváveis”, mas que, muitas vezes, se revelaram altamente inspiradores.

O professor Armando Castro era, além disso, do ponto de vista do relacionamento pessoal, um companheiro excecional. Com uma modéstia inigualável, conseguia fazer das relações profissionais uma teia discreta, mas muito estimulante, de fortes amizades. Com ele aprendi definitivamente que é possível, no contexto institucional da Universidade, tantas vezes dobrado ao peso e inércia das hierarquias e limitado por dependências e desigualdades arbitrárias, criar espaços de fraterna convivialidade, sem com isso afetar, bem pelo contrário, a criação de ambientes intelectualmente criativos e uma cultura partilhada de rigor. Penso que as ciências sociais devem muito a Armando Castro, pelo que fez antes e depois do 25 de abril. Quer na Faculdade de Economia, quer na Faculdade de Letras da Universidade do Porto há personalidades e grupos que têm reconhecido a importância da sua obra. Mas talvez seja chegada a altura de a reavaliar e homenagear de forma mais extensa e expressiva.

Retomando o fio da meada suscitado pela questão que inicialmente me colocaram, devo referenciar uma outra fase do meu percurso – a que surge associada à criação, no âmbito da Universidade do Porto, da licenciatura em sociologia na Faculdade de Letras, o que acontece em 1985-1986. Foi por essa altura que tive oportunidade de conhecer o professor António Teixeira Fernandes, outra personalidade marcante na minha carreira, a quem se deve a criação do referido curso. Embora, no contexto de elaboração da minha tese de doutoramento, já tivesse tido a oportunidade de ler os textos que publicara sobre temas do âmbito da epistemologia e metodologias sociológicas e da sociologia da religião, só conheci pessoalmente o professor Teixeira Fernandes no dia em que foi lançada a revista Cadernos de Ciências Sociais, que, em 1984, a convite de Edições Afrontamento, passei a dirigir. Foi o início de uma amizade e de uma colaboração institucional que se foi aprofundando na base de uma lealdade recíproca sem falhas, de que continuo a beneficiar muitíssimo.

 

RMC - Mas, antes de abordar essa fase de institucionalização do ensino da sociologia na Universidade do Porto, será interessante focar o processo de elaboração da tese com que se apresentou a doutoramento nesta área, a primeira realizada em ­Portugal, até porque, nesse âmbito, estabelece uma relação de colaboração estreita com outro sociólogo, João Ferreira de Almeida, que vem, julgo, desde o tempo em que trabalhou no GIS.

JMP - A nossa amizade vem, de facto, do tempo (1971-1974) em que, no GIS, ocupávamos o mesmo gabinete de trabalho. À medida que íamos fazendo a nossa formação em sociologia (eu, com o background da economia, e ele, com o de direito e ciência política), fomos criando fortes afinidades quer no plano pessoal, quer no das preocupações intelectuais. Passámos muitas e estimulantes horas discutindo entre as quatro paredes da nossa pequena sala de trabalho, as mais “duras” questões da epistemologia sociológica (em que, à partida, ele estava mais preparado do que eu…). Pouco a pouco, fomos ensaiando pequenos textos (tendo quase sempre como pano de fundo o trabalho de preparação das aulas de Introdução às Ciências Sociais), que, depois de repetidamente discutidos e transformados em documentos policopiados com circulação restrita, deram lugar a dois artigos publicados nos números 35-36 e 42-43 da Análise Social. São eles que, por sua vez, estão na base do volume intitulado A Investigação nas Ciências Sociais, publicado em 1976, o qual, a avaliar pelo número de reedições que veio a ter, terá marcado significativamente (no bom sentido, espero) a formação básica de muitos estudantes de sociologia, presumivelmente até ao início da década de 1990.

Com o meu regresso ao Porto, alteraram-se os termos desta ligação, mas, dado que, como já disse, a relação com o GIS se manteve, cedo surgiu a possibilidade de reatarmos formas de colaboração científica regulares. Foi o que veio a acontecer no âmbito de um projeto de pesquisa na área dos estudos rurais, para o qual havia sido obtido, através do GIS, financiamento da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, circunstância que, ao fim de algum tempo, passámos a encarar como uma oportunidade para preparamos os nossos doutoramentos em sociologia.

Devo dizer que, a este último respeito, me inclinava inicialmente no sentido de vir a explorar um objeto no domínio específico da “questão urbana”… A ideia era cruzar algumas dimensões problemáticas entreabertas pelos inovadores trabalhos que Manuel Castells publicara sobre o tema (Castells era, aliás, um autor cujas propostas nos domínios da epistemologia e metodologia sociológicas de igual modo conhecia bem) com o conjunto de conhecimentos sobre as dinâmicas sociais de produção, circulação e apropriação de sentido que entretanto conseguira adquirir, convivendo com inusitado gosto com a semiologia e as ciências da linguagem. Para esta aproximação entre as dimensões espacial e simbólica dos processos de urbanização muito havia contribuído, aliás, a leitura atenta que, ao longo da minha passagem da economia para a sociologia, fui fazendo da vastíssima e muito original obra de Henri Lefebvre.

A verdade é que, perante a força das circunstâncias (de ordem financeira, sem dúvida, mas também afetiva), o convite, transmitido pelo João Ferreira de Almeida, para realizarmos um estudo no âmbito da sociologia rural foi prontamente aceite. E aí vou eu, fazendo da necessidade virtude e prazer, e com o apoio de Boaventura Sousa Santos (supervisor do doutoramento), à procura das pistas certas para penetrar em termos sociologicamente adequados no domínio da economia e sociedade camponesas, com o objetivo mais específico de perceber a persistência do arrendamento rural no quadro de transformações sociais dos campos em Portugal.

Tal persistência era, de facto, um traço que distinguia a sociedade portuguesa da generalidade das formações sociais europeias, mesmo aquelas onde a economia e as relações sociais camponesas ainda mantinham alguma expressão. Dado que também se sabia ser no Noroeste que, em Portugal, mais fortemente se fazia sentir a incidência do arrendamento na pequena agricultura, optou-se por centrar o estudo numa coletividade local dessa região, com o objetivo de analisar em profundidade os processos sociais aí em curso. Uma vez que os indicadores estatísticos relevantes então disponíveis apontavam o concelho de Penafiel como sendo um dos que apresentavam taxas de incidência do arrendamento rural mais elevadas, optou-se por eleger uma das suas freguesias como espaço privilegiado de observação. A escolha acabou por recair em Fonte Arcada.

Para levar a cabo o estudo, dispusemo-nos então a recorrer a técnicas de recolha e tratamento de informação que de algum modo recuperassem a tradição etno-historiográfica da monografia rural, adaptando-a embora aos objetivos de análise propriamente sociológica dos processos de reprodução/transformação social em curso nos intensos anos de construção e institucionalização da vida democrática que se seguiram à rutura revolucionária de 1974. Um inquérito realizado junto de todos os grupos domésticos da freguesia, juntamente com a realização de entrevistas com diferentes graus de profundidade e, bem assim, prolongados exercícios de observação direta de interações correntes, processos de trabalho, momentos fortes das sociabilidades de vizinhança, circuitos de mobilidade quotidiana, rituais religiosos e festivos, etc. permitiram-nos carrear ao longo de mais de três anos os elementos suscetíveis de pôr à prova as hipóteses teóricas que antes, e ao longo do trabalho de terreno propriamente dito, fomos construindo. O João Ferreira de Almeida ocupou-se sobretudo da problematização e aprofundamento analítico das dinâmicas de recomposição classista em curso nesta coletividade que, como verificámos ao longo da pesquisa, exportava diariamente, sobretudo para o grande Porto, um número significativo e crescente de indivíduos que aí exerciam atividades assalariadas (migrantes pendulares). Pela minha parte, aprofundei sobretudo as dimensões simbólico-culturais e ideológicas dos mesmos processos sociais, elegendo para tanto alguns domínios de aplicação que me pareceram especialmente reveladores da mudança social na freguesia: processos de trabalho, relação com a escola, religiosidade e práticas político-eleitorais. O estudo completava-se com a análise do principal ciclo de festejos local, na tentativa de recolocação de algumas questões clássicas de sociologia da cultura à luz de uma interpretação (que me atrevo a considerar inovadora) acerca do efeito das transformações classistas em curso na coletividade sobre as formas de apropriação de sentido envolvidas nos modos socialmente diferenciados de conviver com os principais momentos do ciclo festivo. Os modos de festejar acabaram por me interessar tanto ou mais do que as componentes semiótico-expressivas dos rituais festivos – o que só pôde acontecer graças ao caráter intensivo, e teoricamente informado, dos registos observacionais realizados.

Não deixarei de notar o facto de, quer na fase de planeamento geral da pesquisa, quer na da problematização teórica que a estruturou, quer ainda no decurso das operações de observação de terreno, não me ter afastado do universo de preocupações com as componentes simbólico-ideológicas que a certa altura julguei ter de abandonar quando, por circunstâncias algo fortuitas a que já me referi, desisti da “questão urbana”, para me dedicar à “questão rural”. Um bom indício da relativa irrelevância de algumas fronteiras nominais que, no momento em que se selecionam objetos de pesquisa, tanto inibem, por vezes, os analistas.

 

RMC - Este estudo sobre Fonte Arcada acabou por ser precursor, em vários sentidos, na sociologia portuguesa. Desde logo, por inaugurar uma forma de trabalhar em equipa, na altura pouco habitual. Mas também por se ter transformado num laboratório de reflexão sobre metodologias de abordagem sociológica de terreno.

JMP - Sim. Pelo menos para mim, constituiu uma experiência bem reveladora de que o que havia de mais interessante no trabalho sociológico era a possibilidade de observar metodicamente objetos sociais concretos e bem delimitados – de forma teoricamente informada, certamente, mas correndo o risco de, no próprio momento de pôr à prova as hipóteses de partida, ter de as reformular em função de uma ponderada avaliação da evidência empírica. Mas, além disso, pude perceber, no decurso da pesquisa, que o aprofundamento da observação sobre um objeto bem delimitado implicava não nos deixarmos cair na armadilha do isolamento analítico do mesmo objeto, já que fazê-lo significaria omitir um conjunto crucial de fundamentos reais (exógenos) das suas especificidades. Foi esta convicção que nos levou a uma tentativa de avaliação crítica da maneira convencional de aplicar a monografia rural. O resultado dessa reflexão deu lugar a dois artigos que o João Ferreira de Almeida e eu próprio publicámos no n.º 52 da Análise Social (“Sobre a monografia rural” e “A etnologia e a sociologia na análise de coletividades rurais”, respetivamente).

Mas, voltando ao “efeito de revelação” decorrente da inércia da pesquisa observacional, gostaria de sublinhar até que ponto ele se sentiu na pesquisa que estávamos a desenvolver. Assim, em matéria de teoria das classes sociais, julgo ser indiscutível que as exigências da aproximação ao terreno e os resultados a que ela ia sucessivamente chegando obrigaram a rever não só alguns quadros de referência teórica a que inicialmente nos ativéramos, nomeadamente os que na literatura estabelecida procuravam uma caracterização da especificidade e funções do espaço social camponês, como sobretudo algumas tipologias visando operacionalizar a estrutura classista das coletividades em causa. Já no âmbito das questões de natureza simbólico-ideológica, foi patente, por exemplo, que algumas conceções socio-antropológicas estabelecidas sobre a festa, que inicialmente inspiraram a minha abordagem, revelaram, no decurso do trabalho de terreno, potenciais heurísticos relativamente limitados na perspetiva de uma análise sociológica sobre as festas populares concretas.

As particularidades do espaço social com que nos deparávamos – uma coletividade em que os traços de uma economia camponesa voltada sobre si mesma se cruzavam de forma complexa com dinâmicas socioculturais protagonizadas essencialmente por um grupo de migrantes pendulares que, frequentemente ligados ainda à economia familiar local, exerciam como assalariados a sua atividade profissional principal na região metropolitana adjacente – estimulavam, e acabaram por impor, principalmente no domínio da análise classista, soluções arrojadas. Perante a sobreposição de planos e temporalidades sociais com que nos deparávamos, alguns critérios consagrados nos quadros classificatórios existentes afiguravam-se-nos limitados ou mesmo inadequados. Era preciso inovar, por forma a encontrar grelhas analíticas que integrassem exaustivamente os casos que tínhamos registado e codificado através de inquérito junto de todos os agregados domésticos da coletividade.

Lembro-me bem do dia em que, findas algumas tarefas de recolha de informação, nos sentámos num café local com o objetivo de elaborar a grelha de análise classista que depois nos permitiu chegar à estrutura de classes e de famílias de classe da freguesia. O património de conhecimentos teóricos de que dispúnhamos a este respeito foi, nesse dia, sujeito a um duríssimo confronto sistemático com os particularismos locais, vistos caso a caso, sem quaisquer contemplações, para dar lugar ao que entendemos ser o retrato sociológico matricial do espaço que analisávamos.

As surpresas impostas pela dinâmica da pesquisa observacional, desde que teoricamente fundamentada, são, de facto, uma constante do trabalho sociológico de terreno. Recordo ainda, a este respeito, o que a leitura de informação disponibilizada pelo recenseamento eleitoral da freguesia – um documento que passa por irrelevante do ponto de vista sociológico – me permitiu saber sobre algumas dinâmicas sociais locais (estratégias matrimoniais, migrações de substituição, sociabilidades locais). Jogando com elementos informativos tão singelos como são os relativos ao local de nascimento e ao local de residência, tornou-se possível desvendar aspetos essenciais da vida das populações da região que a observação feita através de outros procedimentos (entrevista, observação direta, etc.) nunca deixara entrever.

Através desta primeira grande experiência de trabalho sociológico de terreno, passei a acreditar, com redobrada convicção, nas virtualidades do cruzamento sistemático entre problematização teórica e pesquisa observacional, e a descrer cada vez mais quer da retórica teoricista que a si própria se alimenta, quer do empirismo mais ou menos populista que, julgando ver melhor por ver de perto, ignora as exigências e potencialidades da razão teórica. E também fiquei convencido de que o uso conjugado de técnicas de observação sociológica com características diversas tem de ser muito mais do que um circunstancial aceno à ideia, sempre simpática, do pluralismo metodológico. Essa conjugação, imposta simultaneamente pela complexidade do real e pela ambição fundada da problematização teórica, é afinal um dos nós górdios da prática da razão sociológica.

 

RMC - O estudo sobre Fonte Arcada foi influenciado e acabou por ter um impacto considerável no trabalho de outras ciências sociais, nomeadamente a antropologia. Como vê, no caso português, a relação entre as várias ciências sociais?

JMP - Como já disse, a reflexão sobre as virtualidades e dificuldades da interdisciplinaridade acompanhou o processo de formação da geração de sociólogos a que me referi. Era um tema presente com regularidade nas inúmeras discussões promovidas no âmbito do GIS, em parte por força das necessidades de diálogo colocadas a pessoas com formações de base muito diversas, mas também como resposta a desafios que a lecionação de uma disciplina de Introdução às Ciências Sociais em cursos de Economia nos colocava.

Ao iniciar o estudo sobre Fonte Arcada, estava, pois, em termos abstratos, inteiramente aberto aos princípios da interdisciplinaridade. Faltava pô-los em prática. Quando partimos para o terreno, começámos por querer conhecer bem as técnicas e métodos que, em Portugal, tinham feito o seu caminho quer nos trabalhos clássicos de etnologia/antropologia, mais próximos do enfoque teórico-observacional que pretendíamos privilegiar, quer nos da geografia, da demografia e da própria economia agrária. São visíveis no estudo sobre Fonte Arcada as marcas dessa herança.

Menos presente está, no que ao meu caso diz respeito, o legado historiográfico. A utilização da abordagem histórica foi, no essencial, induzida pela inércia da pesquisa, concretizando-se à medida que era obrigado a consultar documentos que me permitissem reconstituir alguns marcos temporais que se iam impondo como decisivos na vida da coletividade. Não tenho a noção de ter assumido, na altura, de forma coerente e fundamentada, a importância do cruzamento da perspetiva sociológica com a análise histórica. O recurso à história foi mais instrumental do que genuinamente analítico. Hoje tenho uma visão diferente das coisas. Reconheço que deveria ter investido mais na restituição dos processos de construção social da realidade observada, embora, recordando algumas considerações sobre a formação da paisagem agrária local, seja levado a pensar que não estava inteiramente desprevenido sobre a importância daquele investimento. Mas devia ter ido mais longe. Não será por acaso que, já no quadro da revisitação sociológica a Fonte Arcada, realizada em anos recentes com outros sociólogos (de que destaco Virgílio Borges Pereira, João Queirós e, de novo, João Ferreira de Almeida), e a propósito de um tópico antes apenas aflorado – o do conflito que em final dos anos 1970 opusera os grandes proprietários fundiários locais ao grupo dos assalariados da freguesia que procuravam, sem sucesso, terreno para construir casa própria –, terei sentido a necessidade de aprofundar retrospetivamente a análise realizada no âmbito da primeira pesquisa. Percebi, à distância de trinta anos, que algo de essencial sobre a crise da habitação local nos anos 70 ficara por explicar, precisamente por na altura não ter levado suficientemente longe o estudo da dimensão histórica da construção das hierarquizações sociais baseadas na posse e uso da terra. Tento, de algum modo, redimir-me desta insuficiência quer no I volume do livro Ir e Voltar, que reúne parte importante dos resultados da referida revisitação, quer em dois textos recentes: “Instituições, disposições e práticas. O caso da produção de habitação”, publicado num volume, organizado por Luísa Veloso e Renato Miguel do Carmo, sobre A Constituição da Economia; e “Sociologia e História: um encontro inevitável”, preparado para as Atas do Encontro Norte Industrial realizado em dezembro de 2011.

 

RMC - Imagino que no momento em que foi realizado o trabalho sobre Fonte Arcada tenham surgido algumas tensões entre as exigências de consolidação disciplinar e de cruzamento interdisciplinar. Era um período em que disciplinas que se estavam a formar eram, ao mesmo tempo, obrigadas a dialogar.

JMP - Arrisco dizer que o facto de termos formações universitárias de base exteriores à sociologia e de não estarmos, na altura em que realizámos a pesquisa, condicionados por dinâmicas institucionais pesadas, contribuía, por si só, para uma abertura “natural” à interdisciplinaridade. A sociologia não existia ainda como espaço de produção e difusão de saber autonomizado e com rotinas estabilizadas de desenvolvimento, o que facilitava a abertura e o intercâmbio com outras áreas do conhecimento. Acresce, como já disse, que a interdisciplinaridade era objeto de forte investimento reflexivo no âmbito do GIS. Não surpreenderá assim que tenhamos utilizado abundantemente na nossa pesquisa os trabalhos, já então consagrados, de economia agrária, geografia ou antropologia. Sem preconceitos e com grande boa vontade intelectual, fomos buscar preciosos ensinamentos à obra de autores como Henrique de Barros, Eugénio de Castro Caldas, Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, entre outros. Tinham, todos eles, dito coisas muito importantes sobre a sociedade portuguesa. Para quê fugir-lhes?

 

RMC - Quer dizer que, se estivessem mais condicionados por lógicas institucionais estabilizadas, o trajeto teria sido diferente?

JMP - Admito que sim. À medida que as lógicas propriamente disciplinares se consolidam e normalizam, é de prever que, nas práticas concretas de pesquisa, algum ensimesmamento teórico-metodológico se sobreponha à busca sistemática de pontes com outras abordagens. Na altura, não tínhamos um território intelectual de pertença a preservar, estávamos, sim, interessados em estudar o objeto com que nos confrontávamos, utilizando para tanto todos os instrumentos de problematização teórica e de observação empírica que, independentemente da sua matriz disciplinar original, nos ajudassem a construir uma interpretação plausível e testável sobre a realidade regional e local em causa.

Esta atitude de grande abertura justificava-se ainda pelo facto de nos debatermos com uma dificuldade importante: a da reduzida amplitude de informação empírica fiável sobre a sociedade portuguesa. Alguns passos necessários à contextualização preliminar dos objetos de pesquisa, que hoje se resolvem de forma relativamente fácil, exigiam muito trabalho e, sobretudo, muito tempo. Operações tão elementares como as que se nos impunham para dar conta dos movimentos migratórios com incidência nacional, regional e local, colocavam-nos grandes dificuldades. Não dispúnhamos de fontes estatísticas nem, muito menos, de técnicas de tratamento de informação com a sofisticação que hoje está ao alcance de qualquer praticante das ciências sociais. Estávamos ainda numa fase de “acumulação primitiva” de conhecimento empírico testado sobre a sociedade portuguesa – tínhamos, por isso, de avançar lentamente e com grandes precauções. Alguns resultados obtidos no âmbito da nossa pesquisa, que hoje podem parecer relativamente óbvios, não o eram de todo naquela altura.

Para mostrar até que ponto se modificaram desde então as condições de produção científica nestes domínios do conhecimento, vale a pena dizer que, quando partimos para a revisitação sociológica a Fonte Arcada, cerca de trinta anos após a primeira pesquisa, não só pudemos dispor de muito mais informação sobre a sociedade portuguesa e a região do Noroeste do início do século XXI, como tivemos oportunidade de recuperar e aperfeiçoar informação relativa aos anos 1970, graças ao facto de, entretanto, terem sido disponibilizadas, nomeadamente pelo INE, séries estatísticas longas de qualidade. É uma mudança muito significativa, que espero atraia cada vez mais os investigadores portugueses para a realização de ambiciosas pesquisas empíricas sobre a sociedade portuguesa. Com a simplificação das operações de contextualização extensiva preliminar dos objetos de pesquisa, há agora boas condições para uma densificação da análise através de arrojadas combinatórias de técnicas de observação intensiva.

 

RMC - Voltemos ao seu percurso académico. Após a conclusão do doutoramento, ele vai desenrolar-se num contexto institucional em mutação…

JMP - O processo de institucionalização da sociologia, que começa basicamente em Lisboa (primeiro no GIS – depois ICS – e no ISCTE, onde, aliás, me submeti a provas de doutoramento no início de 1983), vai estender-se às Universidades de Coimbra, Porto e Minho, o que mudou significativamente o panorama do ensino e investigação das ciências sociais no nosso país.

No caso concreto da Universidade do Porto, a alteração mais importante decorre da criação em 1985-1986 da licenciatura em sociologia na Faculdade de Letras. Até então, havia pequenos grupos de investigadores em ciências sociais dispersos pelas várias Escolas da Universidade (era o caso da Faculdade de Economia, onde, como disse, existia um grupo, ainda que confinado, de docentes e investigadores em áreas da sociologia e da história, dirigido pelo professor Armando Castro, de que eu próprio fazia parte). Mas foi com a ­criação da licenciatura em sociologia na Faculdade de Letras, pela mão do professor António Teixeira Fernandes, que, na Universidade do Porto, se deu o salto decisivo em termos de estruturação do ensino e investigação nesta área. Por vontade do seu fundador e coordenador, participaram, desde o início, nas atividades letivas do curso, docentes e investigadores que, noutras escolas, estavam ligados às ciências sociais. Foi nessa qualidade que passei a colaborar regularmente com o curso de sociologia da FLUP, o que também aconteceu, entre outros, com António Esteves, meu colega na Faculdade de Economia e profundo conhecedor de teoria sociológica. Ambos lecionámos durante bastantes anos na nova licenciatura, acompanhando a formação dos alunos dos primeiros cursos em várias disciplinas. Esta foi para mim uma experiência particularmente feliz, não só pela qualidade de muitos estudantes com que contactei nestes anos, mas também por ela me ter proporcionado a oportunidade de, com inteira liberdade, conceber e pôr em prática programas de ensino da sociologia dirigidos a estudantes desta área específica e não, como até ali, a estudantes de economia e gestão. O esforço de inventar, ano após ano, expedientes didáticos adequados a conquistar para a sociologia a atenção e o genuíno interesse dos estudantes da Faculdade de Economia – tarefa estimulante, a seu modo, mas que, com o tempo, se tornou um tanto desgastante – podia aqui ser canalizado para o constante enriquecimento de estratégias de ensino dirigidas a estudantes já largamente convertidos.

Guardo excelentes recordações da minha participação nesta primeira fase de consolidação do ensino da sociologia na Universidade do Porto. Ela vai aprofundar-se com a criação, em 1989, do Instituto de Sociologia, por iniciativa e ação, uma vez mais, de António Teixeira Fernandes.

 

RMC - Mas o processo de institucionalização da Sociologia inclui a publicação de várias revistas, incluindo, no Porto, uma por si dirigida.

JMP - Dirigi, de facto, desde a sua criação em 1984, a revista Cadernos de Ciência Sociais. Mas, por se tratar de um aspeto pouco conhecido, convém sublinhar o facto de a iniciativa da referida publicação ter pertencido a uma editora exterior aos circuitos académicos formais, as Edições Afrontamento.

 

RMC - É, de facto, um aspeto pouco habitual. O que terá estado na base desta iniciativa?

JMP - A Afrontamento tinha uma tradição, iniciada bastantes anos antes do 25 de abril, de publicação de trabalhos de investigadores nacionais e estrangeiros da área das ciências sociais, e essa orientação foi reforçada, naturalmente, em democracia (uma leitura sistemática do catálogo da editora permitirá, aliás, creio eu, desvendar elementos muito interessantes e úteis para uma história das ciências sociais em Portugal). Acontece que José Sousa Ribeiro, que, ainda hoje, dirige as Edições Afrontamento, é um economista com sólidos ­conhecimentos e grande interesse por domínios que ultrapassam a economia, tendo, aliás, lecionado história económica na Faculdade de Economia. Quis que a editora tivesse a sua própria revista e fez questão de associar ao projeto pessoas com quem mantinha um contacto regular. Entre elas estava Arnaldo ­Fleming, elemento do Grupo de Ciências Sociais a que eu próprio pertencia, mas que simultaneamente estava muito ligado à direção da Afrontamento. Com o empenhamento cívico, inteligência e abertura intelectual que o caracterizavam, foi ele um dos grandes dinamizadores do projeto. E só a sua modéstia conduziu a que fosse eu a emergir como diretor da revista.

Surgiram assim os Cadernos de Ciências Sociais, uma publicação que, desde o início, assumiu grande abertura temática e disciplinar, nunca reivindicando o estatuto de revista de sociologia. Aí se foram acolhendo contributos referenciados a esta disciplina, mas também à história, à economia, à antropologia e às próprias ciências da linguagem. Por insuficiências várias, que em boa parte me devem ser assacadas, mas também porque o prematuro desaparecimento do Arnaldo Fleming retirou ao projeto algum entusiasmo, a revista acabou por perder o desejável ritmo de publicação. Dado que, apesar de tudo, parece ter conquistado um espaço próprio no campo da difusão do trabalho que se faz nas ciências sociais em Portugal, pondera-se nesta altura a possibilidade de retomar a edição, em moldes tanto quanto possível ajustados às novas condições da circulação internacionalizada do conhecimento, procurando, no entanto, acima de tudo, que ela contribua para renovar criativamente o conhecimento sobre a realidade social.

 

VBP - O processo que descreveu é contemporâneo de uma entrada progressiva em domínios que, embora já presentes na dissertação de doutoramento, foram ganhando alguma autonomia. Refiro-me, nomeadamente, ao interesse que foi manifestando pela análise das práticas e políticas culturais, que se revela a partir dos anos 1980. Seria interessante saber como emergiu este tipo de preocupações.

JMP - A preocupação com a análise das práticas culturais surge, de facto, no âmbito do estudo sobre Fonte Arcada em que se apoiou a minha tese de doutoramento. Dentro do horizonte de problematização teórica e observacional que me propus aprofundar nesse contexto – o qual, como disse, se estruturava em torno dos processos sociais de produção, circulação e reconhecimento de sentido –, dediquei especial atenção ao ciclo de festividades local, e em particular a um dos seus momentos mais ostensivos e intrigantes (a “festa do mastro”). Comecei por explorar a este respeito um conjunto de sugestões teóricas e metodológicas inspiradas na sociologia das religiões e na análise socio-antropológica da cultura popular, em geral, e das suas componentes rituais, em particular, mas acabei por orientar a pesquisa não tanto para a especificação das componentes semiótico-expressivas dos fenómenos sob observação – que a referida literatura diretamente sugeria –, mas para os processos, menos óbvios, de apropriação socialmente diferenciada dos vários momentos do ciclo festivo. Procurei demonstrar que a relação dos membros da coletividade com os rituais festivos locais era muito sensível às trajetórias modais dos seus grupos de pertença, portanto também aos percursos de socialização e perfis de aspirações a elas associados; e que as formas implícitas e explícitas de relação com a festa, e com cada um dos seus momentos notáveis, participavam ativamente nos processos cruzados de construção identitária que atravessavam a coletividade camponesa em mutação acelerada que estava a analisar.

A reflexão desenvolvida a este propósito acabou por suscitar alguns corolários interessantes a partir do momento em que, num quadro de militância cívica, passei a colaborar informalmente com o departamento de animação cultural do município do Porto, dirigido com grande dinamismo e criatividade por Manuela Melo a partir de 1990. No fundo, o acompanhamento de políticas de democratização cultural obrigava-me a recolocar, com as necessárias adaptações e especificações, o problema da apropriação socialmente diferenciada dos objetos culturais, o que, simetricamente, também me conduzia a pensar globalmente as lógicas de produção, difusão e receção das obras culturais, nomeadamente as do seu polo erudito (para o que muito contribuiu o contacto com o estimulante trabalho entretanto desenvolvido, nesta área, por Maria de Lourdes Lima dos Santos). Achei por bem apresentar uma sistematização provisória desta “reflexão-participante” num Encontro sobre Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local organizado em Vila do Conde pela Associação Portuguesa de Sociologia, a que então presidia; e a verdade é que, talvez por ter conseguido chegar neste caso a um texto que equilibrava bem as exigências teóricas de análise das práticas culturais com as exigências prático-políticas da intervenção no domínio cultural, essa comunicação, que intitulei “Uma reflexão sobre políticas culturais”, veio a tornar-se um dos meus textos mais comentados e influentes no seio dos profissionais que trabalhavam no terreno sobre estas questões. Ainda hoje sou solicitado com frequência a pronunciar-me sobre as ideias então expostas, havendo quem vá mais longe e me peça uma atualização da análise então efetuada, que tenha em conta as mudanças entretanto ocorridas na sociedade portuguesa e os novos constrangimentos a que estão sujeitas hoje as políticas culturais. Uma parte do que poderia ser a referida atualização está já apontada num texto que elaborei algum tempo depois da apresentação do anteriormente referido. Procuro, aí, refletir sobre o modo de inserir a intervenção cultural em espaços públicos numa lógica integrada de combate às desigualdades socioculturais e à exclusão social.

Quase sem dar por isso, a reflexão sobre políticas culturais aproximava-me cada vez mais de questões relacionadas com as políticas públicas em geral, um movimento que se acelerará por força do trabalho que desenvolvi na Presidência da República, nos dois mandatos de Jorge Sampaio (1996-2006), na qualidade de consultor para a área da economia, desenvolvimento e sociedade, no quadro da Assessoria Económica e Social da Casa Civil da Presidência. Nesta atividade, que desenvolvi sem abandonar o trabalho de pesquisa que tinha em mãos e as funções letivas correntes a que continuava ligado na Faculdade de Economia do Porto, fui obrigado, em colaboração com uma equipa de consultores muito competentes e sob a direção, muito exigente, mas também deveras estimulante, do próprio presidente, a aprofundar e sistematizar um conjunto de conhecimentos necessários a uma caracterização rigorosa da “questão social” e do modelo de desenvolvimento português, tal como se configuravam na segunda metade dos anos 1990.

Foi um trabalho duro, desde logo pela ansiedade criada pelas exigências de conciliação entre o tempo lento e distendido da reflexão académica e o tempo curto e tenso da ação política. Mas foi, também por isso, um trabalho de descoberta pessoal de novos temas e filões teóricos… e de teste às minhas próprias capacidades de trabalho. Regozijo-me, ainda hoje, com a qualidade e oportunidade da reflexão que nessa altura fomos capazes de realizar, tanto mais quanto ela incluía, muito antes da emergência da atual crise económico-financeira, uma crítica sistemática dos fundamentos teórico-ideológicos e das propostas políticas do neoliberalismo, também designado na altura por “pensamento único”, não sem apresentar alternativas reformistas consistentes e realistas. Para a formulação destas últimas, muito contribuíram, aliás, as discussões realizadas em múltiplos encontros que, por iniciativa do presidente da República, juntaram especialistas nacionais e internacionais de diferentes áreas das ciências sociais. Fico feliz por saber que os volumes editados a este propósito – A Reforma do Pacto Social; Educação, Formação e Trabalho; Perspectivas de Desenvolvimento do Interior; Sociedade, Tecnologia e Inovação Empresarial; Pobreza e Exclusão: Horizontes de Intervenção; A Cooperação nas Políticas sobre as Drogas e a Toxicodependência; Os Cidadãos e a Sociedade de Informação, entre outros – continuam, ainda hoje, a figurar na bibliografia de trabalhos de investigação que se vão realizando sobre estas temáticas. Resta saber qual a repercussão que terão tido em matéria de formulação e aplicação de políticas sectoriais concretas.

 

RMC - Como vê a relação que, no seu trabalho, se foi estabelecendo entre o estudo das questões teóricas, epistemológicas e metodológicas, a pesquisa empírica de ­terreno e, depois, a aproximação à problemáticas das políticas públicas. Fará sentido, na sua perspetiva, distinguir entre investigação fundamental e investigação aplicada?

JMP - Talvez devamos distinguir a este respeito dois tipos de problemas, embora na prática eles surjam interligados: os que remetem para as relações entre a reflexão teórica, a pesquisa empírica e a prática profissional cientificamente informada; e, a uma outra escala, os que se prendem com a relação entre o campo académico, o movimento social e o campo das políticas públicas.

A experiência tem-me mostrado que as pontes entre o trabalho de teorização, a pesquisa observacional e a intervenção profissional são não só possíveis, como desejáveis, embora naturalmente também contenham alguns riscos. Procurei identificar umas e outros em várias passagens que dediquei aos processos de enunciação de problemas sociais e da sua transposição para as agendas científicas no livro Indagação Científica, Aprendizagens Escolares, Reflexividade Social. Não deixei de assinalar a tal propósito que me parece haver hoje dificuldades sérias em manter vivo o triângulo virtuoso teoria-pesquisa empírica-prática profissional. Parte dessa dificuldade resulta, quanto a mim, de algum desequilíbrio nas formações académicas de base, que se terá acelerado com a consolidação do Processo de Bolonha. A confirmar-se, tal desequilíbrio afetará a prazo todos os vértices do triângulo e, portanto, a qualidade das relações que entre eles se estabeleçam. Mas não menos importante será também o acréscimo de pressão que, no domínio da aplicação dos conhecimentos sociológicos, hoje se coloca aos profissionais que no terreno lidam quotidianamente com os problemas e as vítimas da “questão social”. Tudo indica que, sob a pressão da urgência, e com constrangimentos financeiros, administrativos e logísticos cada vez mais agudos, a prática profissional nestas áreas tenda a recuar em matéria de exigência e fundamentação teórica.

Aliás, não está excluído que essa mesma desestabilização possa ser assumida como problema social específico que cabe à sociologia aprofundar no plano interpretativo. Na verdade, a análise deste último elo das políticas sociais do Estado já faz parte da agenda científica da disciplina, nada impedindo, em abstrato, que os resultados a que vai chegando acabem por se integrar virtuosamente nos dispositivos de autorreflexividade e na intervenção dos próprios profissionais.

Passando agora ao plano mais geral das relações entre o campo académico-científico e o campo político na formulação de políticas públicas, a experiência mostra-me que os riscos de cedência do primeiro às pressões do segundo existem, embora não sejam uma fatalidade. Refiro-me à pressão da ­“urgência”, mas também à que resulta do desfasamento entre as exigências do ciclo político-eleitoral e as do ciclo de produção de conhecimentos científicos. A autonomia relativa do campo científico (propriedade que em abstrato reivindicamos) pode e deve ser assumida, desde logo nas suas incidências organizativas concretas, como instrumento de defesa contra pretensões cientificamente infundadas ou ilegítimas dos promotores das políticas públicas. E os primeiros passos dessa resistência estarão na reivindicação do direito à reformulação prévia da procura em função de critérios de autenticidade científica e na frontal recusa em simplificar questões que, à luz do conhecimento estabilizado no campo das ciências sociais, são eminentemente complexas.

Há, além disso, quanto a mim, um espaço de possibilidades de formulação de problemas a estudar e de conceção autónoma e pró-ativa de programas de investigação que está por explorar. Acredito, que, a este respeito, a margem de iniciativa ao alcance das Universidades, nomeadamente no âmbito do que normalmente se designa por serviço à comunidade, é muito grande. Será excessivo pedir às Universidades que, paralelamente à colaboração que têm prestado à economia na perspetiva da inovação tecnológica, assumam as suas responsabilidades em matéria de investigação e intervenção na área da inovação social? Não serão, aliás, de natureza eminentemente social, os obstáculos, tão amargamente reconhecidos pelos protagonistas da ligação academia-empresas, com que os processos de inovação tecnológica habitualmente se confrontam no terreno?

 

RMC - Comunga da ideia de que, em Portugal, há muitos diagnósticos, porém pouca reflexão capaz de inspirar a elaboração de visões estratégicas?

JMP - Respondo com um exemplo. O conhecimento que na comunidade científica se foi obtendo sobre a natureza e a amplitude das desigualdades na sociedade portuguesa, conhecimento esse sistematizado e atualizado mais recentemente no âmbito do Observatório das Desigualdades (que o Renato tão bem conhece,) é suficientemente conclusivo para desde há muito poder ter inspirado uma convergência estratégica de políticas voltadas para a redução efetiva dos níveis de desigualdade económico-social. A verdade é que essa convergência nunca se verificou de facto. O problema é tanto mais sério, quanto se sabe terem sido muito intensas e transversais, desde o início da década de 1970, as mudanças ocorridas em Portugal na economia e no emprego, na demografia, nas dinâmicas migratórias e nos processos de urbanização, na relação das populações com a escola, na estrutura de classes, nos sistemas de valores, nas práticas culturais e de consumo, etc. Um movimento de transformação social tão acentuado e complexo dificilmente poderia concretizar-se sem gerar “espontaneamente” um leque alargado de inconsistências institucionais, que, em muitos casos, potenciaram a produção e reprodução de desigualdades sociais (e assimetrias territoriais) assinaláveis. Mas houve também, neste ­processo, um conjunto de inconsistências que são politicamente induzidas (ou, no mínimo, consentidas), já que resultam da incapacidade manifestada pelos atores políticos mais influentes para incorporarem, assumida e coerentemente, nos seus programas políticos, uma visão estratégica baseada em conhecimento suficientemente depurado sobre as características estruturais e as dinâmicas de transformação da sociedade portuguesa. São conhecidas algumas das principais consequências deste divórcio: produção legislativa em revolução permanente, sobreposição não controlada e desarticulação setorial nas iniciativas políticas, incumprimento sistemático de promessas eleitorais, desfasamento notável entre as esferas da produção e da aplicação efetiva de leis e decisões políticas, etc.

Pois bem: há razões para acreditar que se o conhecimento proporcionado pelas ciências sociais a respeito das desigualdades tivesse sido integrado, de forma sistemática, ao longo do tempo, nas componentes de programas políticos de médio e longo prazo relativas a distribuição do rendimento, criação de emprego, provisão de habitação, administração da justiça, acesso à educação e aos bens culturais, participação na vida política, desenvolvimento regional, etc. aumentaria significativamente a probabilidade de se conterem os potenciais de reprodução de desigualdades, imputáveis, além do mais, ao referido efeito de inconsistência institucional “espontânea”. Menos desigual, a sociedade portuguesa revelaria ainda, possivelmente, níveis bem mais elevados de confiança nas instituições e formas de participação cívica mais expressivas. Seria, pois, uma sociedade mais justa e com cidadãos mais envolvidos politicamente na defesa e promoção dos direitos dos mais frágeis. E o próprio modelo de desenvolvimento revelaria por certo outra vitalidade económica.

 

RMC - Mas será diferente, noutros países, a ligação entre a produção de conhecimentos na área das ciências sociais e a definição de visões estratégicas com incidência política?

JMP - Admito que haja algumas diferenças imputáveis aos diferenciais de consistência e consolidação das respetivas instituições democráticas. A criação de redes de cooperação e de transferência de conhecimentos entre o campo académico-científico, o campo político e as organizações da sociedade civil mais interventivas ainda é, em Portugal, relativamente recente. Por outro lado, a própria natureza dos partidos que entre si têm repartido a governação e o poder do Estado, algo distante do modelo de partido de massas relativamente consolidado do ponto de vista doutrinário que predomina noutras democracias, também não terá estimulado a criação de condições para a formulação de políticas públicas alicerçadas no conhecimento das ciências sociais.

Há, contudo, uma dificuldade, agravada nas últimas décadas, que me parece ser comum à generalidade dos países. Refiro-me ao estatuto hegemónico que a economia e, no seu âmbito, as conceções e pressupostos neoclássicos (fundidos eventualmente num paradigma de síntese, onde também cabe uma versão simplificada e empobrecedora do keynesianismo) tem vindo a assumir no espaço social contemporâneo. Trata-se de uma espécie de guião pronto a usar, com influência marcante quer nos circuitos da reflexividade académica, quer nos media, quer no espaço de enunciação política dominante, caracterizado por um grosseiro recalcamento das dimensões histórico-institucionais e políticas da economia e, portanto, por uma recusa mais ou menos ostensiva do património de conhecimentos acumulados tanto na sociologia e outras ciências sociais, como em quadros teóricos alternativos da própria economia.

 

RMC - Admito que se tenha confrontado com os efeitos deste processo ao longo da sua experiência como docente. Notou algum agravamento recente da sua incidência?

JMP - Como já disse, ensinar sociologia ou simplesmente tentar justificar as virtualidades da pluridisciplinaridade em Faculdades de Economia nunca foi tarefa fácil. Reconheço, ainda assim, que, grosso modo, nas primeiras duas décadas de docência, os resultados alcançados eram genericamente bastante positivos. Uma percentagem significativa de estudantes de economia e gestão mostrava genuíno interesse pelo nosso apelo à abertura disciplinar, sendo de presumir ainda que alguns deles transportassem para a sua vida profissional a visão integrada sobre o social que transmitíamos. A verdade é que, depois disso, se tornou progressivamente mais difícil conseguir tais resultados. A resistência aos exercícios de reflexão interdisciplinar e, mais ainda, à tentativa de “sociologização” dos fenómenos “económicos” acentuou-se notoriamente.

 

RMC - Resistência dos alunos ou da instituição?

JMP - De ambos. Em sucessivos reajustamentos dos planos de estudo, que tiveram na reformulação programática e pedagógica conhecida por Processo de Bolonha o seu episódio culminante, o jogo de forças interno foi reduzindo progressivamente o espaço de afirmação do grupo de ciências sociais. Noutras escolas de economia e gestão do país este movimento teve, aliás, consequências igualmente duras. Confesso que nunca me senti pessoalmente magoado por esta inflexão institucional. Tive sempre consciência de que ela era o resultado de mudanças estruturais que entretanto estavam a ocorrer no campo do ensino e investigação em economia, nomeadamente em termos de definição dos critérios de consagração científica reguladores das carreiras académicas. Sentia-me por vezes frustrado com o desinteresse pelo debate teórico-epistemológico que se ia instalando nas rotinas profissionais dos colegas, mas nunca me insurgi contra os seus protagonistas: sabia que, sobretudo para os mais jovens, essa era a resposta realista ao seu alcance.

Um pouco mais doloroso foi sentir, no quotidiano das aulas, o alheamento, quando não a rejeição explícita, dos conteúdos que ensinávamos. Mas também aqui a reação era compreensível. Dificilmente se poderia exigir dos alunos que, num contexto de aprendizagem escolar estruturado em torno de pressupostos ideológicos e referências teóricas globalmente sintonizadas com as correntes dominantes da economia, manifestassem disponibilidade para abordar criticamente os fenómenos económicos a partir de premissas que os encaravam como fenómenos sociais “totais” e dotados de historicidade própria. Uma simples interrogação sobre a adequação de princípios estruturantes de análise como os que se condensam na consagrada figura do homo economicus ou no mito da “soberania do consumidor” arriscava-se a ser entendida como perturbadora desestabilização de instrumentos tidos como essenciais, e por isso emblemáticos, da reflexão em economia. E isso tanto mais quanto o referido exercício crítico, associado, na perspetiva dos recetores, à futilidade da reflexão filosófica, a que, além disso, faltava o grau de formalização que ritualmente se exige, em economia, aos modelos cientificamente “credíveis”, acabava por colidir com aprendizagens do ofício de economista estabilizadas e securizantes – não sem simultaneamente se colocar em confronto com operadores de tipo naturalista e individualista que o neoliberalismo, enquanto ideologia prática dominante, tende a inculcar nos atores sociais em geral.

Nos últimos anos de lecionação, vivi esta dissonância com algum desconforto. Mas também com genuíno inconformismo – o que me tem levado a “regressar” lentamente ao estudo da economia política. Não demorei muito a perceber, nesta nova digressão, até que ponto seria diferente a formação dos atuais economistas se, nos seus programas escolares, o contacto com a “tradição central” da disciplina fosse acompanhado de uma aproximação séria a outros quadros teóricos forjados na disciplina, nomeadamente os que se reclamam genericamente do novo e velho institucionalismo, do marxismo, da teoria da regulação ou, no caso da análise da empresa, de conceções que procuram repensá-la enquanto projeto solidário de criação coletiva. Nesta revisitação da economia, acabei por me concentrar na obra de John Kenneth Galbraith, que já me impressionara quando ainda era aprendiz de economia, mas que, lida agora, me revelou um mundo de bons pretextos e pontos de partida para uma análise integrada dos factos económicos. Seja quando, desmontando a ingenuidade dos mitos da soberania do consumidor e da livre-concorrência, se ocupa dos fenómenos de construção social das necessidades, avançando com o conceito de “dependence effect”; seja quando, a propósito da análise das grandes corporações, problematiza a distinção entre propriedade económica e propriedade jurídica dos meios de produção e as relações entre poder económico e poder político; seja quando disseca os fundamentos e consequências sociais das recorrentes crises financeiras do capitalismo; seja ainda quando se ocupa dos processos de dualização/segmentação das estruturas produtivas e dos sistemas de emprego ou da reprodução estrutural da pobreza em “sociedades de abundância” – em todos essas incursões, J.K. Galbraith como que oferece de bandeja a economistas e sociólogos uma infinidade de razões para quererem estar juntos na análise da realidade social. Custa a aceitar que as lógicas de produção de conhecimentos neste domínio tenham recalcado tão drasticamente semelhante filão (até porque, como no caso da análise das crises financeiras ou das restrições, ideologicamente determinadas, na provisão de bens públicos, são de extrema atualidade os elementos interpretativos que nos propõe). Mas o próprio Galbraith, arguto analista das condições intelectuais, institucionais e sociais da produção científica na economia, deu indicações bem sugestivas sobre as componentes e fatores de tal recalcamento: resistência da comunidade científica em ajustar as suas rotinas intelectuais às mutações da própria realidade; elisão das questões do poder em nome da necessidade de preservar a “neutralidade” do saber científico sobre o social; sacralização, por mimetismo com os protocolos de cientificidade consagrados nas “ciências duras”, dos procedimentos de formalização matemática, independentemente de qualquer exame sério sobre a compatibilidade dos mesmos com a estrutura “substantiva” dos fenómenos estudados, etc.

 

RMC - Perante o panorama que traçou sobre o atual estatuto da economia, pensa que o conjunto das cências sociais e, em particular, a sociologia estão, em termos de afirmação no espaço público, cada vez mais acantonadas?

JMP - Tomando em consideração o atual quadro de relações de força simbólico-culturais que, sob o comando das lógicas do campo mediático, conduzem o processo de tematização dos problemas sociais, particularmente em tempo de crise, tenho defendido que os sociólogos devem resistir à pressão para responderem, em registo de urgência, às questões urgentes que lhes são colocadas. Parece-me claro que o modelo flash interview, incontornável numa perspetiva de conquista de audiências, não é adequada ao exercício da reflexividade sociológica. Assumir a complexidade dos fenómenos sociais, o que defendemos sem hesitações enquanto formadores, deve levar os sociólogos a imporem condições de enunciação (duração e número de caracteres dos depoimentos, por exemplo) minimamente adequadas à especificidade dos contributos analíticos ao seu alcance.

Não se trata de fugir, antes de levar a sério, as potencialidades do que Michael Burawoy designa por “public sociology”. Só haverá sociologia pública de qualidade enquanto as modalidades concretas do seu exercício estiverem solidamente ancoradas quer na “professional sociology”, entendida como trabalho de análise sociológica teórica e empiricamente fundado que se realiza independentemente de exigências pontuais da intervenção mediática ou política, quer na “critical sociology”, instância de interrogação crítica e autocrítica permanente sobre a validade dos fundamentos, pressupostos e opções teórico-metodológicas correntemente assumidas no núcleo duro da produção sociológica. Proponho, por outras palavras que, ao encarar o quadro de interdependências que é possível e vantajoso estabelecer entre os polos de desenvolvimento da atividade sociológica, não deixe de se atribuir alguma proeminência à atividade de investigação sociológica baseada em problematização teórica, pesquisa observacional e autorreflexividade, a qual por sua vez exige a criação, nem sempre fácil, de condições de independência e autonomia face a condicionalismos exógenos.

 

RMC - Em qualquer caso, parece haver necessidade de o conhecimento sociológico ter tradução no espaço público ‒ ser mais uma voz, entre outros registos relevantes.

JMP - Reconheço que o retraimento da sociologia na esfera mediática tem inconvenientes: afinal, uma qualquer “sociologia” acabará por ocupar o espaço deixado vazio, e os sociólogos, acusados genericamente de elitismo e hipercriticismo, verão progressivamente diminuídas as possibilidades de intervenção pública fundamentada. Trata-se de um movimento homólogo do que foi já invocado a propósito das relações entre a produção de conhecimentos sociológicos e a formulação de políticas públicas (“policy sociology”).

Aliás, na perspetiva do avanço do conhecimento sociológico, tão ou mais preocupante do que este recalcamento tácito da complexidade do social que se opera na esfera mediática será, sem dúvida, a tendência para, no interior do próprio campo científico, se criticar alguma sociologia com base no argumento de, com o seu “hipercriticismo”, ela contribuir afinal para inviabilizar ações reformistas bem-intencionadas.

A história do desenvolvimento da sociologia da educação nas últimas décadas pode ajudar a ilustrar o alcance do problema a que me refiro. São conhecidas as controvérsias e enormes resistências geradas, em finais dos anos 1960, pelas teses de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron sobre a reprodução de desigualdades sociais através do sistema educativo. Conceitos como ­capital cultural, arbitrário cultural ou violência simbólica, bem como as propostas interpretativas sobre as relações entre a ação pedagógica e a conservação da ordem estabelecida que a eles recorriam, soaram então, a muitos ouvidos, como deslocadas e inconsequentes provocações intelectuais e políticas, que o tempo se encarregaria de votar ao esquecimento. A verdade é que o melhor da intervenção reformista do sistema escolar levada a cabo desde então (ao nível da ação pedagógica propriamente dita, do desenho curricular, da elaboração de manuais, de renovação da ação pedagógica, da atenção aos efeitos do currículo oculto, da abordagem dos contextos familiares dos estudantes, etc.) passou frequentemente pela adoção, mais ou menos assumida, da mensagem (originalmente encarada como um estouvado “hipercriticismo”) contida no citado livro; e o próprio trabalho de teorização sobre a matéria, mesmo quando, ainda hoje, explicitamente se demarca da herança bourdieusiana, surge estranhamente colada, ainda que por ínvios caminhos e estranhos contrapontos, ao seu núcleo essencial. E aqui está por que razão me parece no mínimo estranha a acusação de hipercriticismo que hoje volta a dirigir-se a alguma sociologia da educação, aparentemente pelo facto de ela não se conformar com as novas limitações impostas à democratização social pelas contradições do sistema educativo. Haverá excesso de criticismo ou alguma intenção sociológica malévola por detrás da afirmação, baseada em pesquisa observacional, de que soluções aparentemente voltadas para a emancipação de grupos sociais desfavorecidos (TEIPs, cursos profissionais, certificação de competências…) podem participar em formas renovadas de produção e reprodução de desigualdades? E, para pegar noutro desconfortável exemplo, fará algum sentido pugnar por discrição máxima na difusão do conhecimento sociológico sobre o desemprego ou subemprego dos “diplomados”, utilizando o argumento de que uma tal constatação atua como inibidor do investimento escolar nas novas gerações? Não será mais inteligente partir dos resultados da análise desenvolvida pelas ciências sociais a tal respeito para, isso sim, denunciar as debilidades dos modelos organizativos das empresas e do Estado, que bloqueiam as saídas profissionais de jovens qualificados?

 

RMC - Voltou a referir-se à obra de Pierre Bourdieu. Confirma que ela é, para si, uma referência particularmente inspiradora?

JMP - Sim. Já fiz referência à influência que as orientações de carácter metodológico contidas no Métier de sociologue, bem como os princípios de ordem meta-teórica consagrados no Esquisse d’une théorie de la pratique tiveram na minha formação. A distinção entre modos de conhecimento objetivista, fenomenológico e praxeológico sobre a qual Pierre Bourdieu longamente disserta no Esquisse haveria de tornar-se, aliás, até hoje, uma chave particularmente útil para me situar em relação ao conjunto de desafios teóricos e modelos de pesquisa observacional privilegiados nos quadros paradigmáticos mais influentes do campo da Sociologia. Foi o que desde logo aconteceu quando comecei a interessar-me pela dimensão simbólica das práticas sociais, domínio que, enquanto economista, me havia escapado no essencial. A tentativa de leitura crítica dos principais quadros teóricos em confronto nas ciências da linguagem, que realizei a pretexto da problematização sociológica da produção ideológica de sentido e me levou a querer perceber as condições sociais da discursividade, acabou por me colocar perante uma manifestação particularmente expressiva das limitações e vantagens relativas dos diferentes modos de conhecimento. O que os falantes realmente fazem quando falam, percebi então, não pode ser entendido, como no essencial acontece quando se faz uma leitura objetivista dos fenómenos da linguagem, como uma atualização mais ou menos deliberada daquilo que os linguistas, à maneira de Saussure, consideram ser o sistema (objetivamente codificado) da língua; mas, diferentemente do que é sugerido nas deambulações da fenomenologia da linguagem, também não coincide com o que observadores e interlocutores subjetivamente intuem como sendo a sua materialidade imanente. Já a orientação analítica proposta em diversas correntes da pragmática linguística e da análise do discurso, ao privilegiar uma espécie de mergulho ao interior do ato da enunciação com o objetivo de restituir o conjunto de condições sociais globais, conjunturais e situacionais que enquadram as interações discursivas, bem como os instrumentos e inércias disposicionais incorporadas pelos falantes/interactantes, já essa orientação, dizia eu, revelou-se-me capaz de, superando as limitações dos modos de conhecimento objetivista e fenomenológico, desvendar, sem mediações fictícias, os particularismos da prática discursiva “enquanto tal”.

Acredito que o facto de o edifício intelectual construído por Pierre Bourdieu se apoiar explicitamente no património teórico legado pelos clássicos, que ele não deixa de submeter a um depurado trabalho de confrontação crítica e de síntese, explica, em boa parte, toda a fecundidade e consistência que a sua obra vai revelar. Mas tais qualidades também se devem à circunstância de as propostas do Esquisse terem sido transformadas, desde cedo, num programa de investigação gerador de um fluxo avassalador de hipóteses que o próprio Bourdieu e as equipas de que se rodeou fizeram questão de ir pondo à prova de forma sistemática. Sabe-se até que ponto a elaboração e progressiva depuração do conceito de campo contribuiu para dar consistência e fecundidade ao trabalho de pesquisa empírica conduzido neste âmbito. De um conjunto de grandes orientações teórico-epistemológicas e de conceitos com elevado grau de abstração desenvolvidos no Esquisse foi então possível passar, com surpreendente coerência e heuristicidade, ao estudo de vastos domínios da realidade social, muitos dos quais se haviam revelado francamente refratários a quaisquer veleidades de objetivação sociológica: práticas culturais, gostos e estilos de vida, instituições, crenças e práticas religiosas, relações de poder, disposições e tomadas de posição no campo académico-científico, dinâmicas da criação literária, estruturas sociais da economia. Acontece que a aplicação sistemática do programa de investigação inspirado na teoria da prática nunca deixou de ser acompanhada, na obra de Pierre Bourdieu, por um incansável trabalho de reflexão epistemológica. Com um conhecimento profundo e atualizado das dinâmicas internacionais da produção sociológica, ele foi capaz de usar com dureza as armas da crítica teórica, sem contudo desrespeitar ou omitir (como militantemente se faz, tantas vezes, na “comunidade sociológica”) contributos formulados em quadrantes diversos, inclusive do ponto de vista da sua inserção disciplinar, daquele em que regularmente se movimentava. Talvez seja por isso que a sua obra constitui útil porta de entrada para múltiplos caminhos teóricos, bem como ponte francamente inspiradora para especialistas de áreas tradicionalmente afastadas do debate com a sociologia.

 

RMC - Parece defender a ideia de que a criação de patamares que induzam os cientistas sociais a falarem mais uns com os outros será, em princípio, positiva, do ponto de vista da progressão do conhecimento. Como deverá concretizar-se tal ideia no plano da organização concreta do trabalho de investigação?

JMP - Pondo de lado o conjunto de dificuldades institucionais que se prendem com a definição de prioridades em matéria de políticas científicas e, portanto, com o financiamento da pesquisa, outras há, mais diretamente dependentes de opções organizativas imputáveis aos próprios investigadores que, a esse propósito, vale a pena invocar. Refiro-me concretamente à tendência, que a meu ver se foi instalando na atividade corrente das unidades de investigação, para recuar tanto no plano do debate sobre grandes questões teórico-epistemológicas da sociologia, como no da mobilização para a prática, não meramente ritual, da interdisciplinaridade.

Julgo que devia ser preocupação permanente de cada linha de investigação fazer acompanhar as pesquisas centradas em objetos empíricos (mesmo quando o desenho global das mesmas seja sobredeterminado pela urgência de solicitações externas) por um debate exigente sobre os respetivos enjeux teórico-epistemológicos. Criar condições para que uma espécie de pulsão reflexiva coletiva acompanhe a realização do conjunto das operações de pesquisa, mesmo quando estas visam, em primeira linha, responder a procuras de conhecimentos precisos e empiricamente bem delimitados, parece-me dever ser um desígnio incontornável de qualquer projeto de investigação. Aceito que, entre os outputs do trabalho de um centro de investigação, tenham de figurar relatórios que nem sempre se afastem claramente do enunciado de umas tantas regularidades objetivas sugeridas diretamente por fontes estatísticas convencionais ou então da devolução mais ou menos fiel de um conjunto de depoimentos de atores implicados de uma ou de outra forma nos processos sociais sob análise. Mas também penso que devem ser criadas condições organizacionais para que se discutam os limites desse tipo de trabalhos e se tentem criar, a seu propósito e pretexto, oportunidades e espaço para a produção de subprodutos “teórico-intensivos”- sem o que se debilitarão progressivamente, nas rotinas da pesquisa, as defesas (intelectuais e institucionais) contra o empirismo e as formas mais ou menos elaboradas do senso comum. Igualmente importante será, por outro lado, criar condições, no plano organizacional, para uma efetiva abertura à multidisciplinaridade.

Procurei mostrar anteriormente, através de alguns exemplos, as potencialidades analíticas decorrentes de uma aproximação da sociologia a problemáticas teóricas e enfoques metodológicos referenciados à história e às ciências da linguagem. Voltando a estas últimas, e continuando a situar-me em plano ilustrativo, parece difícil não aceitar que qualquer estudo sobre a interação social, domínio que a sociologia tem de explorar a múltiplos pretextos (análise das sociabilidades, em geral, e das sociabilidades familiares, juvenis, de vizinhança, etc., em particular) tem de incorporar conhecimento sistemático sobre rotinas e rituais linguísticos ou para-linguísticos que percorrem os múltiplos “encontros sociais”. Ora, nos trabalhos de pragmática linguística e de análise do discurso (e estou a restringir-me a um segmento limitado das áreas de conhecimento em causa), há elementos preciosos para aprofundar o conhecimento quer dos sistemas disposicionais interiorizados pelos interactantes, quer das estruturas de oportunidade que, em situações interativas concretas, condicionam as práticas. Poderá a sociologia alhear-se deste manancial de conhecimentos? A minha ideia é que se o fizer, alegando eventualmente que os fechamentos analíticos disciplinares são um mal necessário, impedir-se-á de captar o essencial das dinâmicas da interação social, nomeadamente o que nelas há de exercício implícito de manutenção/transgressão da ordem simbólica e, por esse intermédio, de reprodução/transformação da ordem social. E a própria capacidade para analisar e regular as relações sociais desencadeadas pelo processo de observação sociológica – fenómeno a que dei grande relevo em múltiplos textos sobre questões metodológicas – sairá francamente diminuída se forem desprezadas as possibilidades abertas pelo diálogo multidisciplinar a que me referi.

Mas é possível alinhar muitos outros exemplos que demonstram a fecundidade de estratégias multidisciplinares de análise do social. Lembro-me da surpresa que para mim constituiu uma digressão pelas teorias psicológicas da perceção, quando, no âmbito de uma pesquisa sobre trabalho e trabalhadores da construção civil (realizada em colaboração com Maria Cidália Queiroz), quis aprofundar o estudo dos acidentes de trabalho nesse ramo de atividade económica. Não sendo um tema isento de controvérsia no interior da psicologia, a verdade é que os termos em que a análise da perceção é colocada nessa disciplina são excecionalmente esclarecedores dos elementos e processos que, na perspetiva sociológica, estão em jogo no momento em que os acidentes ocorrem. Há que atender, por um lado, a um conjunto de constrangimentos decorrentes das condições materiais em que se desenvolve o trabalho da construção (características dos locais e processos de trabalho predominantes, uns e outros promotores de riscos de acidentes). Ora, as conceções neobehaviouristas sobre a perceção, avançadas por exemplo por James Gibson, dão argumentos, no âmbito da psicologia, para levar a sério a influência incontornável daquelas condições quando o que está em causa é analisar sociologicamente (e, além disso, prevenir) acidentes de trabalho. Mas há, por outro lado, sistemas disposicionais e culturais interiorizados pelos agentes que também contam no desencadear dos momentos críticos das práticas de trabalho que conduzem ao acidente. E, quanto a esses (que são os que mais concentram o interesse dos sociólogos), há muito para conhecer no âmbito das conceções psicológicas (construtivistas) que colocam no centro dos processos de perceção os quadros culturais interiorizados pelos sujeitos. Quererá isto dizer que a sociologia perde protagonismo, ao querer cruzar a sua visão específica com a da psicologia? De modo nenhum: resta-lhe muito espaço para, por exemplo, demonstrar que, associado às especificidades técnico-materiais dos locais de trabalho (estímulo distal, para a psicologia), há um mundo de constrangimentos que decorrem de opções organizacionais, de políticas de prevenção mais ou menos conseguidas, de jogos de interesses envolvendo a indústria da construção, as seguradoras e o próprio Estado, etc.; que, por outro lado, para perceber a influência própria dos sistemas disposicionais e culturais no desencadear dos sinistros, há que compreender até que ponto as trajetórias modais dos trabalhadores da construção os levam a processos de naturalização de riscos, de que modo as redes de recrutamento de mão-de obra e o recurso à subcontratação contribuem para a instabilização da relação (contratual, afetiva, percetiva) dos trabalhadores com os seus locais de trabalho, em que termos a precarização do emprego se repercute aqui numa mórbida intensificação dos ritmos de trabalho, etc.

Mas as virtualidades de uma abordagem sociopsicológica da perceção nos termos indicados podem ser invocadas a outros propósitos. Por exemplo, no caso da pesquisa sobre os públicos da cultura, onde, do lado da sociologia, parece definitivamente necessário ir além do mero registo de correspondências entre posições na estrutura social e preferências tipificadas de obras culturais, para investigar o lugar específico que a materialidade da obra, enquanto tal, ocupa na formação do juízo estético. Tal inflexão de perspetiva, que se impõe por razões teóricas, não deixa, aliás, de ter implicações igualmente importantes no plano da intervenção para a democratização cultural (sugerindo, nas estratégias de familiarização com as obras de arte, mais e melhor investimento na seleção, contextualização e apresentação pública destas últimas, e não tanto, ou não somente, na reformulação dos quadros culturais de receção/apropriação) – o que remete uma vez mais para a possibilidade de estabelecer conivências virtuosas entre a “sociologia académica” e a conceção de políticas públicas e a intervenção sociocultural.

Será ainda da necessidade de aprofundar o estudo multidisciplinar dos mecanismos da perceção que se trata, quando, ao estudar as dinâmicas sociais e processos de socialização em espaços físicos bem delimitados (o bairro popular urbano, a coletividade rural, a instituição totalitária…), esteja em causa ponderar o peso relativo que no plano analítico deve ser atribuído às dimensões ditas “ecológicas” e “sociais” de tais dinâmicas. Na construção das configurações de sentido, especialmente as de natureza identitária, através das quais os agentes criam pertenças, solidariedades e oposições, é frequentemente muito relevante a presença de operadores simbólico-ideológicos com forte filiação espacial. A configuração física dos lugares transmuta-se, assim, sob a forma de classificações mais ou menos inclusivas ou excludentes, num sistema naturalizado de marcadores de pertença ou distinção classista, quando não de diferenciação quase-instintiva entre insiders e outsiders. Custa a aceitar que, para decifrar a complexidade destes processos, não se apele ao aprofundamento do intercâmbio entre a sociologia e a psicologia na análise da perceção do espaço físico (paisagem, morfologia urbana e habitacional, qualidade e densidade arquitetónicas, acessibilidades…).

Mas muitos outros tópicos consagrados pelos manuais de psicologia mereceriam igualmente canalizar o interesse da sociologia. A atenção é um deles. Será aceitável, por exemplo, querer estudar sociologicamente a sala de aula – esse peculiar condensador dos efeitos da desigualdade social –, sem ter em conta o que, nas suas complexas dinâmicas de integração e conflito, decorre das condições sociais de estruturação da atenção nas gerações mais jovens?

 

RMC - Não lhe parece que no atual quadro de internacionalização da pesquisa, com exigências de avaliação muito centradas na contabilização do número de artigos científicos publicados, mais do que na análise da qualidade de trabalhos com outro fôlego (nomeadamente livros), as suas propostas de abertura disciplinar e teórico-metodológica dificilmente poderão ser concretizadas? Não estaremos a correr riscos de hiperespecialização e fragmentação do conhecimento?

JMP - Nada tenho a opor, no plano dos princípios, a que a atividade de produção de conhecimentos que se reivindica da ciência seja objeto de avaliação. Bem pelo contrário, acredito que a submissão dos resultados da pesquisa ao ­controlo cruzado dos pares, com todas as limitações que, em termos práticos, ela possa enfrentar, constitui, juntamente com a metódica submissão de hipóteses interpretativas a processos de confirmação/infirmação “dos factos”, uma prática que as comunidades científicas a si próprias devem impor sem reservas. Neste caso, pior do que uma avaliação deficiente será, sem dúvida, a ausência de qualquer avaliação. E também sou favorável a que, nas atuais condições de internacionalização das ciências, essa avaliação recorra a pareceres de um conjunto de pares exteriores às comunidades científicas nacionais: o alargamento do âmbito da discussão a experiências e histórias disciplinares diversificadas, bem como algum acréscimo de distanciação relativamente a redes de interesses “locais” (científicos e outros) podem, de facto, trazer vantagens objetivas a esse tipo de avaliação.

Mas a internacionalização da avaliação não garante, por si só, isenção e qualidade. A influência de redes de interconhecimento e cooptação, que, no plano das comunidades científicas nacionais, podem pôr em risco a seriedade das avaliações interpares, não deixa de existir pelo simples facto de se exercer numa lógica transnacional. Na esfera da circulação internacional das ideias, a transferência de conhecimentos e a sua validação pelos pares, está frequentemente associada à transferência de capital e poder simbólico “extra-científicos”, cujas lógicas de acumulação podem pôr em causa as virtualidades da autonomização relativa do campo científico face a pressões sociais exógenas. Acresce que, no domínio das ciências histórico-sociais, a concretização de processos de avaliação internacional nunca deveria perder de vista que os produtos de conhecimento sob escrutínio não são independentes de exigências de especificação espácio-temporal dos objetos de estudo, que só alguma familiaridade com a história dos campos científicos nacionais pode deixar entrever e ponderar.

Nestas condições, deixar a avaliação de resultados científicos produzidos em determinados contextos nacionais exclusivamente nas mãos de peritos internacionais que ignorem completamente a história e o estado da arte do campo científico e disciplinar nacional é uma prática que, a meu ver, precisa de ser contrariada. Destituídos frequentemente de efetiva competência e disponibilidade para avaliar de forma global e integrada, contextualizada, os produtos científicos em causa, não surpreenderá que aos peritos envolvidos pouco mais reste do que inventariar, contabilizar e ordenar conteúdos mais ou menos padronizados. Daí a conhecida tendência para que, na avaliação do trabalho científico, se privilegie o artigo científico redigido em inglês e publicado em revista indexada, em detrimento quase absoluto de outras peças curriculares, nomeadamente o livro. Nem será preciso ter lido Thomas Kuhn para perceber até que ponto podem tais práticas de avaliação contribuir ativamente para uma perversa “normalização” do trabalho científico. Apetece, aliás, perguntar o que seria hoje a sociologia e as outras ciências sociais se, no seu desenvolvimento, os grandes livros tivessem sido banidos, como agora tende a acontecer, do exame reflexivo dos pares.

Importa notar ainda, a propósito do privilégio que é concedido nas avaliações internacionais a textos escritos em língua inglesa, que uma tal prática tem conduzido, nos processos de avaliação internacionais, a subvalorizar, quando não puramente ignorar, referências teóricas cruciais, pelo simples facto de terem sido originalmente problematizadas em línguas e contextos intelectuais que não os do limitado mundo anglo-saxónico, não sendo por isso conhecidas dos peritos avaliadores senão através de precários, e frequentemente enviesados, sistemas de filtragem instituídos nos subcampos científicos a que pertencem.

Acredito, ainda assim, que é possível reformar o sistema de avaliação internacional do trabalho científico por forma a ajustá-lo melhor às especificidades dos saberes produzidos neste âmbito. Para se poder dar um salto decisivo nesta matéria, bastaria começar por garantir que, no domínio das ciências sociais e humanas, as equipas de avaliação passassem a incluir sempre elementos razoavelmente familiarizados com a língua, a realidade social e a literatura da especialidade nacionais. Entidades com responsabilidades consultivas no sistema científico nacional já têm vindo, de resto, a fazer sugestões que apontam neste sentido. É um bom sinal.

 

RMC - Como vê a posição das novas gerações de investigadores sociais perante essas e outras pressões?

JMP - Se pusermos de parte as dificuldades que resultam de restrições ao financiamento público da investigação e de uma continuada resistência à estabilização de carreiras com um mínimo de perspetivas – e essas dificuldades são reais –, o principal risco que os investigadores mais preparados hoje enfrentam será, creio eu, como já sugeri, o de terem de conviver com processos de normalização paradigmática, que, como se sabe, alimentam (e se alimentam de) demissões intelectuais várias: ao nível da seleção de objetos (por força da imposição de critérios de elegibilidade frequentemente destituídos de fundamento epistemológico sério), ao nível da conceção geral dos projetos (por desvalorização do momento de fundamentação teórica da pesquisa), ao nível das estratégias de pesquisa observacional (por desconfiança de princípio em relação a metodologias menos convencionais) e até ao nível do modo de exposição (conhecem-se as limitações estritamente formais a que cada vez mais é sujeita a publicação de trabalhos científicos).

Mas estou convencido – já o disse – que há espaço para aperfeiçoamentos. Tal será o caso de todas as mudanças que, no plano organizacional, contribuam para estimular o debate em torno das grandes opções teóricas e da heuristicidade dos programas de investigação disponíveis, sem esquecer as boas rotinas da autorreflexividade epistemológica. Acredito que cabe às gerações mais velhas um papel ativo na defesa destas soluções. Trata-se afinal de colocar nas mãos dos que mais beneficiaram das vantagens de uma autonomização relativa do campo científico a responsabilidade de a preservar ou reconquistar em favor das gerações mais jovens.

 

RMC - Como enquadra e que balanço faz do processo de institucionalização da investigação em sociologia no Porto?

JMP - Olhando a questão a partir do Instituto de Sociologia, verifico que, embora com dificuldades específicas resultantes de se tratar de uma unidade com uma vida relativamente curta, o IS se confronta com problemas que são comuns a outras instituições. Refiro alguns deles: elevada proporção dos investigadores com disponibilidade limitada para a pesquisa, dadas as pesadas responsabilidades de docência que têm nos diferentes ciclos de estudos universitários; um número significativo de investigadores envolvidos em processos de doutoramento bastante exigentes; orçamentos muito reduzidos. Não é fácil, nestas condições, acreditar que possam ser postos em prática muitos dos princípios que, em abstrato, defendo. Assim, a participação em debates regulares sobre questões teóricas de fundo ou visando a discussão de resultados de pesquisa relevantes – para só falar numa das componentes, para mim incontornável, da atividade de qualquer centro de investigação – nem sempre consegue ter a expressão que se desejaria. Ainda assim, nas várias linhas de pesquisa por que se vem repartindo a atividade do Instituto (“Desigualdades, cultura e territórios”, “Família, envelhecimento e género” e “Trabalho, emprego, profissões e organizações”), tem-se feito trabalho de qualidade, que, além disso, foi ganhando reconhecimento crescente a nível nacional e internacional.

Acontece ainda que um conjunto significativo de jovens investigadores do Instituto (muito bem preparados academicamente) tem feito uma opção clara no sentido de investir fortemente em abordagens interdisciplinares e em minuciosos e bem fundamentados trabalhos de terreno. São boas indicações quanto ao modelo de trabalho que, no futuro, poderá definir as “vantagens comparativas” do Instituto. Poder acompanhar estes jovens, em discussões teóricas abertas ou em contextos de trabalho de forte densidade observacional, tem constituído para mim uma excelente oportunidade de “carregar baterias” e de renovar a minha ligação afetiva à sociologia. Sinto que, sem o saudável atrito que advém deste tipo de colaboração, talvez já tivesse cedido à tentação de usar o tempo disponível para me refugiar na elaboração de algumas cómodas sínteses sociológicas de médio ou grande alcance. Conto com a militância sociológica dos mais jovens para continuar a contrariar eventuais tendências para me instalar em rotinas de trabalho “fim-de-carreira”, mais contemplativas do que pró-ativas.

Não ignoro, evidentemente, que são muito frágeis, nesta altura, as bases institucionais em que assenta o trabalho de investigação nas ciências sociais e, em particular, na sociologia. Concretamente, é duvidoso que neste domínio se venha a consolidar a prazo um núcleo forte de postos de trabalho minimamente estáveis, sendo previsível, por outro lado, que os níveis de financiamento ao alcance de muitas unidades e equipas de investigação de mérito se reduzam para níveis incompatíveis com estratégias de desenvolvimento científico sustentáveis. Alguma correção das assimetrias atualmente existentes na distribuição das verbas para investigação poderia, ainda assim, atenuar alguns dos efeitos das restrições orçamentais que se perspetivam. Mas, no quadro de dificuldades que tem vindo a desenhar-se, será muito elevado o risco de a atividade científica regular passar a estar determinada pelas contingências da docência universitária, com os efeitos de fragmentação, desprofissionalização e paroquialização que até há algumas décadas atrás condicionavam a investigação em Portugal.

Admito que, para contrariar, neste campo, os efeitos da crise económico-financeira, se possam explorar modalidades de apoio à atividade de investigação distintas das que, nas últimas décadas, foram instituídas no sistema científico nacional. É nesse sentido que se orienta o que disse anteriormente a propósito das relações entre investigação fundamental e serviço à comunidade, sociologia académica e “public sociology”. Parece-me, contudo, que a reflexão sobre o modo de explorar estas possibilidades, sem pôr em causa condições de efetiva autonomia científica para os investigadores, está ainda em fase algo embrionária – deixando-se enredar, não raramente, nas teias do wishful thinking.

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