SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número206Seguindo engenheiros e arquitetos pelas barracas: a tecnociência da intervenção em zonas degradadas no contexto lusófonoO Gabinete de Estudos Corporativos (1949-1961) e a génese de uma biblioteca moderna de ciências sociais índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.206 Lisboa jan. 2013

 

Habitação e Sociedade

 

Entrevista a Raul da Silva Pereira* por Rita Ávila Cachado** e João Pedro Silva Nunes***1

*E-mail: raul.silvalisboa@sapo.pt

**CIES, ISCTE-IUL.E-mail: ritacachado@gmail.com

***DINÂMIA’CET, ISCTE-IUL. E-mail: joao.silva.nunes@iscte.pt

 

Ao propor o dossiê “Políticas de Habitação em Portugal” a esta revista, a comissão editorial sugeriu-nos que entrevistássemos Raul da Silva Pereira. Personalidade rara em entusiasmo, dedicação e antiguidade na Análise Social, ocupou-se da investigação e dos debates sobre a habitação em Portugal. Escreveu para os dois primeiros números da Análise Social; publicou outros artigos mais tarde. Fez parte da equipa que no Gabinete de Investigações Sociais (GIS) deu origem a esta revista, que agora completa 50 anos. Além da sua colaboração como investigador, trabalhava mais na retaguarda, a procurar colaborações, organizar a revista e ver as gralhas2, num trabalho escassamente remunerado. Adérito Sedas Nunes (1988, p. 20)3, há 100 números atrás, descreveu assim o contributo inicial de Raul da Silva Pereira:

 

Logo no n.º 1, o dualismo das motivações cruzadas estava bem patente. Um artigo de Raul da Silva Pereira sobre a situação habitacional no País abria, e abriu de facto, as portas a uma reequacionação dos problemas sociais da habitação no nosso País. Parecia não ser muito o que pretendia: limitava-se a fazer passar a discussão desses problemas de uma discussão sobre palavras para uma discussão sobre números. Mas nunca mais se voltou atrás, não só na revista, mas no País. Daí em diante, nunca mais os problemas habitacionais se discutiram à base de palavras: passaram a discutir-se à base de números. Foi um progresso muito importante.

 

Nessa altura, os “números”, além de dados quantitativos, ganhavam um valor quase qualitativo, por serem matéria empírica rara. Dados sobre a habitação surgiam pela primeira vez em Portugal através do Recenseamento de 1950 e do Inquérito às Condições de Habitação, que o preparou, e que o INE publicou em 1954, e cujo estudo contribuiu para provocar o interesse de Raul da Silva Pereira pela temática da habitação. No entanto, seria necessário escrever de forma a fazer passar argumentos sem serem riscados pela censura, como lembra o próprio Raul da Silva Pereira (2011, p. 615), que no n.º 200 da revista recorda que para a redação dos artigos antes do 25 de abril de 1974 se mantinha uma “prudência (estilística, mas não só)”. Em 1963, Raul Silva Pereira promovia já a ideia de uma instituição pública centralizada para dar conta das questões da habitação, e fazia referência aos vários tipos de carência habitacional, num artigo que se destaca pela atualidade de grande parte dos argumentos, apesar de o seu autor advertir para uma leitura cautelosa, pois o problema da habitação hoje não tem os mesmos problemas de antes.

Raul da Silva Pereira cresceu na Rua da Conceição, na Baixa de Lisboa, onde já quando era novo se colocavam problemas não só ao nível da habitação como ao nível do urbanismo. Na Baixa não há um jardim, um parque para as crianças brincarem. O meu recreio era o Terreiro do Paço. Estudou Económicas e juntou-se ao Grupo de Investigações Sociais (GIS), que viria mais tarde a tornar-se no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

A ­Análise Social teve inicialmente enorme sucesso junto do público em geral, ávido por conhecer melhor a sociedade em que vivia e com acesso limitado à informação, como se sabe. Os primeiros números da revista conhecem enorme sucesso, com edições esgotadas. Raul da Silva Pereira colabora com um artigo no primeiro número da revista, como já referido, e poucos meses depois o Diário Popular prepara um conjunto de artigos sobre o estado da habitação em ­Portugal, assunto a que nos iremos referir mais adiante.

Em 1969 nasce o Fundo de Fomento da Habitação, que funcionou até 1984, centralizando daí em diante boa parte das medidas habitacionais no país. Desde o tempo do Estado Novo até ao 25 de abril, e do 25 de abril em diante, houve sempre a noção de que devia haver uma política de habitação boa ou má, mas hoje parece que não há política de habitação nenhuma. O FFH fez coisas importantes, com muita construção, alguma de qualidade excelente, e uma das coisas bem feitas foi o SAAL, com o Nuno Portas [e] teve uma coisa muito importante que foi a adesão popular. Já em democracia, em 1984, é criado o Instituto Nacional de Habitação, organismo que pretendia dar continuidade funcional ao Fundo de Fomento da Habitação, com Silva Pereira como presidente da comissão instaladora, cuja sugestão de convite, como veio a saber mais tarde, foi feita por Hernâni Lopes, então Ministro das Finanças.

Raul da Silva Pereira casa-se em 1957 e dois anos depois vai a Paris. Visitou o Palais de la Découverte, o que contribuiria para sedimentar a sua paixão pelos museus de ciência, que se iniciara no ano anterior ao participar no segundo congresso da Indústria Portuguesa. Nesse congresso teve contacto com o engenheiro Mercier Marques, futuro bastonário da Ordem, que apresentou uma comunicação sobre a necessidade de as pessoas se interessarem mais pela indústria, pela ciência, falou muito nos museus de ciência nos Estados Unidos. Ele […] tinha um laboratório em casa e fiquei muito impressionado com as ideias dele. E resolvi escrever lá para fora a pedir informações sobre os museus de ciência, para escrever uns artigos.

Em 1978 houve um incêndio na Faculdade de Ciências, e com Fernando Bragança Gil, Máximo Ferreira e outros, Raul da Silva Pereira acompanhou o esforço de recuperação do laboratório, que era uma peça única no mundo. E tinha de ser preservada. E estava tal e qual como tinha sido feita, embora ­estragado. A obra ficou pronta em 2007, valorizando imenso o Museu de Ciência que fora criado após o incêndio. Raul da Silva Pereira tinha escrito em 1961 uma brochura sobre museus técnicos numa edição de autor, esgotada, que foi recentemente recordada por Ana Delicado (2009), numa obra dedicada à museologia em Portugal.

Já nos anos 1970 visitou a Suécia, onde foi influenciado pela social-democracia nórdica, tal como muitos outros investigadores seus contemporâneos. No que se refere à habitação, recorda que os municípios tinham como principal política de solos a compra da propriedade privada para poder construir habitação a custos controlados. Viajou também aos Estados Unidos, em 1979, onde se impressionou com a agilização do processo da compra de casas: quando uma pessoa quer comprar uma casa, vai a uma companhia de seguros especializada que, em 24 horas a informa sobre os encargos hipotecários que incidem sobre a casa que pretende. Nós aqui agarramo-nos muito, a casa é um património para os filhos, isto vem do tempo em que nem havia segurança social, mas quer dizer, isto pesa muito para as pessoas se desfazerem de uma casa e comprarem outra. Situação que não faz muito sentido na situação atual de necessidade acentuada de mobilidade laboral. As pessoas hoje precisam de morar aqui, amanhã ali e, portanto mudar quando necessário. A pessoa na casa própria sente-se segura, mas não sabe se um dia irá arranjar trabalho longe da residência atual. A habitação própria tem o problema da mobilidade.

Silva Pereira dedicou-se à defesa do consumidor, sendo um dos sócios fundadores da DECO; e ficou ainda empolgado com os primeiros passos da energia solar. Na Caixa Geral de Depósitos, onde trabalhou 32 anos enquanto alto quadro, criou um crédito especial para painéis solares. Lembro-me que fui a Azeitão no solstício de verão de 1979, para inaugurar a instalação dos primeiros painéis solares, porque foi patrocinada pela Caixa. Mas foram entusiasmos, porque se não nos entusiasmarmos por nada, a nossa vida carece de sentido. Ainda que às vezes as coisas depois falhem. Dessas três décadas de trabalho na Caixa Geral de Depósitos resultou também uma publicação onde, enquanto autor, traça a história da instituição (Pereira, 2007).

Mas regresse-se aos temas da habitação e da sociedade. Sobre o seu interesse pela questão da habitação e a sua participação no GIS, Silva Pereira adianta: Sempre me sensibilizei por questões de caráter social, mas recordar o momento exato, desde quando, não sei. Por volta de 1957 ou 1958 comecei a interessar-me por estes temas, penso, porque o Instituto Nacional de Estatística tinha publicado, pela primeira vez, dados do recenseamento de 1950 e do inquérito à habitação. Houve destaque até nos jornais, onde então se falou dos bairros de barracas à volta de Lisboa. Talvez fosse esse o motivo pelo qual comecei a interessar-me. E também porque eu próprio vivia numa casa velha, sem condições. Por outro lado, dava-me muito bem com um grupo de pessoas, um grupo católico, de colegas de Económicas. Hoje estou convencido de que, entre os católicos, muitos estão mais ligados pelo lado humanista do que pelo lado metafísico da filosofia da religião. Mas isto já sai fora do nosso problema. O que é facto é que me dava muito bem com o Sedas Nunes, com o Mário Murteira, com a Manuela Silva, e outros, que formaram o grupo inicial do GIS. E ainda hoje se mantém a amizade entre os sobreviventes desse grupo.

Também no GIS, o contacto com dois arquitetos que qualifica como extraordinários – Nuno Teotónio Pereira e o Nuno Portas – foi marcante; por outro lado, a relação com pessoas de outras formações, como o José Carlos ­Ferreira de Almeida, alimentou a convivialidade inerente à investigação e à iniciativa editorial que vinha ganhando corpo na Análise Social. Recorda que então se discutia muito sobre temas sociais; e isso pode ter tido a sua influência no meu interesse pelo domínio da habitação. Posso dizer, e isto já é um à parte, que estou hoje um pouco deslocado para falar de habitação porque passei a ocupar-me de outros temas, para além deste. Houve aqui ou ali uma intervenção ou outra, mas com caráter esporádico. Em relação àquele tempo, não interpretem à letra o que está escrito naquele trabalho [artigos de 1963] – é um pouco grande, é um trabalho crítico, e tem talvez propostas de soluções, umas ultrapassadas pelos factos, outras pelas ideias… E uma delas é o caso da habitação própria. Adiante explorar-se-á o problema da habitação própria, objeto de artigo publicado na revista em 1983. Antes porém de se rumar a esse aspeto, retorne-se aos anos de 1950 e 1960, os anos do “déficit” habitacional, que o nosso entrevistado discutia nos artigos de 1963.

A década de 50 do século XX foi um período particularmente rico para a história da habitação pública e privada em Lisboa. São vários os promotores implicados na produção de alojamento. Uma pluralidade de indica­dores sobre o alojamento e as condições de habitação é incorporada nos X e XI Recenseamento Geral da População. Em simultâneo ocorre uma tenta­tiva de reforma dos mecanismos da Previdência Social do Estado Novo. O programa das habitações de renda económica, ensaiado anos antes em ­Alvalade, é retomado – via Decreto-Lei n.º 42 454 de 19 de agosto de 1950 –, e já em 1960 é criado o Gabinete Técnico da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa, que coordenará a planificação e edificação dos Olivais Norte e ­Olivais Sul. Passado pouco mais de meio século, Silva Pereira reconsidera a época e os seus contrastes com a situação atual: estou convencido de que o problema da habitação hoje não tem os mesmos aspetos, nem os mesmos problemas de antes [décadas de 1950 e 1960]. Hoje continua a haver problemas de habitação, nomeadamente para os jovens, mas o nível de vida subiu bastante. Atualmente, há mais problemas de emprego entre os jovens, por exemplo. Mas, olhando para o conjunto do país, não há os bairros de barracas que havia naquela altura.

Esse era um traço incontornável das condições de habitação na cidade de Lisboa ao longo dos anos 50 e 60 do século passado. Em 1963, no primeiro artigo que publica na Análise Social, o autor faz menção quer às práticas de levantamento administrativo do universo de barracas no concelho de Lisboa realizado pela polícia, quer ao inquérito conduzido pelo Gabinete Técnico de Habitação da Câmara Municipal de Lisboa. Apesar de alguma discrepância entre números, ambos apontavam para um conjunto de cerca de uma dezena de milhar de famílias alojadas em condições miseráveis, estimando-se o número de habitantes na ordem dos 40 000, cerca de 4% da população residente em Lisboa em 1960.

Sobre o tópico dos bairros de barracas, Silva Pereira desvenda elementos inéditos associados a uma reportagem publicada em 1963 no Diário Popular sobre a vida nos bidonvilles da capital portuguesa. O jornal organizou uma série de dezanove artigos sobre o que era o problema das barracas. Saiu o primeiro artigo a falar dos milhares de barracas em Lisboa, mas já não saiu o segundo. Eu tive acesso, e tenho ainda em casa as cópias, em papel “ozalid”, dos artigos que foram censurados. Isto, naquela época, foi uma provocação. Outro tema quente à época, o da emigração portuguesa para a Europa Central, era igualmente sujeito ao lápis azul: em fevereiro de 1965, participei num colóquio sobre emigração organizado e publicado no Diário Popular. Só para vos dar um pormenor: o Dr. Balsemão estava furioso; mostrou-me as provas [antes de publicadas] e havia lá uma parte “perigosíssima” em que eu dizia, “no caso de Portugal vir a aderir ao mercado comum[…]”. E, insiste o nosso entrevistado, Isto tem de ser dito: para se ver o ambiente em que se vivia. Aliás, Silva Pereira mostrou-nos as coleções de textos do Diário Popular, tanto dos “ozalid” sobre o problema da habitação (65 folhas A4!), como dos recortes de jornal4sobre a emigração.

Este ambiente adquiriu também evidência aquando das cheias de 25 de novembro de 1967 e do tremor de terra de 28 de fevereiro de 1969, desastres naturais disruptores da ordem urbana e reveladores de precárias condições de ocupação do território e de habitação. Relativamente às inundações, Silva Pereira recorda que houve, além do mais, uma intenção deliberada de esconder. Morreram 500 e tal pessoas, nunca se soube ao certo quantas foram. Houve uns casos pontuais que não podiam ser escondidos: uma aldeia do Ribatejo totalmente destruída, ou sítios onde o grande problema de facto era a construção em leito de cheias, algo que continua a fazer-se e não só aqui. Mas aqui o caso era o de Olival Basto. Tudo está em leito de cheia e naquela altura a inundação foi enorme. Havia um grande receio por parte do regime, por causa dos estudantes: nessa altura, o movimento estudantil foi um movimento social para ajudar aquelas pessoas. No fim-de-semana fiz uma visita e fui ver: andavam por lá freiras e jovens estudantes a lavar casas, nomeadamente em Caneças e em Odivelas.

Entre os X e XI Recenseamento Geral da População e episódios de relativa desocultação jornalística das condições de habitação na cidade, uma importante noção ganha forma: o “déficit” de alojamento. O termo adquirirá rapidamente enorme relevo para os técnicos e dirigentes implicados neste domínio – no Gabinete Técnico de Habitação, nas estruturas das Habitações Económicas – Federação de Caixas de Previdência ou no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, por exemplo. Progressivamente, o termo chegará a integrar o discurso dos dirigentes políticos. Raul da Silva Pereira, economista do GIS, é dos primeiros, senão mesmo o primeiro, a fazer uso do termo e a explorar a ideia. A escassez da promoção pública da época é sublinhada por Nuno ­Portas. Num ensaio intitulado “A arquitectura de habitação no século XX”, Portas (1997) explora causas e efeitos desse traço da política de habitação da época. Conclui o arquiteto e urbanista que Lisboa se constituiu como uma cidade-metrópole dualista onde o setor informal, autoconstruído e marginal, substituiu o que nos países da Europa Ocidental se estabeleceu como parque de habitação pública associado à emergência e institucionalização dos Estados Providência.

Ora, a ação das Caixas de Previdência era central na definição tanto do peso como das políticas de alojamento promovidas pelo Estado Novo na década de 60 do século passado. Foi uma ação honesta, sublinha Silva Pereira, para em seguida afirmar: para se compreender hoje aquela época é necessário ver os problemas económicos. A previdência social não tinha na altura a importância que tem hoje. E, por outro lado, não abrangia a população rural. A previdência social era em grande parte baseada na capitalização dos descontos das pessoas que trabalhavam e que era utilizada para as pensões. Agora não. Agora é “chapa ganha, chapa gasta”. Quem desconta está a pagar as pensões dos que não estão no ativo. Ora, naquele tempo, o dinheiro dos descontos estava disponível para aplicação pela previdência. O rendimento das habitações financiadas ou propriedade da previdência tinha uma aplicação financeira, mas essa aplicação era uma aplicação de capitais, como outras que a segurança social da época tinha: o investimento nas hidroelétricas, por exemplo.

Foi justamente a partir dos capitais da Previdência Social que nos anos de 1960 se criou um primeiro programa de financiamento por via de empréstimos pessoais para acesso à casa própria. A certa altura, a Previdência em vez de construir, passou a financiar a compra de casa própria, com empréstimos, mais tarde com a colaboração da Caixa Geral de Depósitos. Em 1956 tinha surgido o diploma que permitiu a propriedade horizontal, o que favoreceu o desenvolvimento da casa própria. Vinte anos mais tarde, a compra de casa própria será objeto de um artigo publicado na Análise Social, no qual Silva Pereira (1983) interroga e discute a sua valia enquanto solução para o persistente problema da habitação.

Atualmente, o único organismo que trata das questões da habitação é o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), que é o “antigo” Instituto Nacional de Habitação (INH). Fui eu que instalei o INH. Hoje sei que há a construção a custos controlados, que há alguns apoios para a juventude, mas tudo isso me parece muito pouco em termos de política de habitação. Para isso é preciso um governo com fortes preocupações sociais social democrata “à sueca”país que eu visitei em 1976, ainda o Olof Palme [então primeiro ministro da Suécia] era vivo.

Silva Pereira argumenta, todavia, que uma das bases para uma política de habitação poderia ter sido a correção na obtenção de mais-valias: o que me choca muito é os herdeiros de uma casa construída com capitais públicos ­venderem-na com as mais-valias decorrentes dos preços do mercado. Por isso é que defendi que essas casas deviam ser vendidas com a correção monetária ­justificada pela inflação, e não mais do que isso. As mais-valias seriam investidas em novas construções, para beneficiar outras famílias.

Para Raul da Silva Pereira, a dicotomia casa própria versus arrendamento decorre do tipo de política de habitação que se desenhou: Hoje acho que uma política de habitação bem centrada e bem fiscalizada era talvez mais importante do que a questão de ser ou não voltada para a casa própria. Por exemplo, em Estocolmo, o município comprou uma área enorme para urbanizar quando fosse necessário, isto é, para não fazerem como nós fazemos, que é urbanizar quintas… Aquele tipo de intervenção não é um plano de urbanização, é ter o terreno público, e em seguida trabalhá-lo como deve ser. A questão é saber como é que isto se faz. Ainda no tempo de Marcelo Caetano, que elaborou um despacho nesse sentido, se fizeram estudos com vista a uma política de terrenos. Tenho esse material todo são cinco grossos volumes mas pouco ou nada se avançou.

Entre as duas vias, acesso à propriedade e arrendamento, ficam as cooperativas. Sobre essa solução, a reflexão vai no sentido de distinguir duas formas. Uma coisa é a cooperativa fazer as casas e os sócios serem arrendatários; outra coisa é a cooperativa construir as casas e depois vendê-las aos sócios, a prestações. Há uma gama ampla de casos, mas em princípio a construção por via cooperativa fica mais barata. O Instituto Nacional de Habitação foi criado para resolver o problema da construção pelas cooperativas e pelas câmaras municipais. As casas são construídas por umas e por outras, e depois é financiada a compra individual através de instituições bancárias.

Em cidades como as portuguesas, onde se sabe que a prevalência da propriedade do alojamento é elevada e está frequentemente associada à presença de encargos de dívida, a mobilidade geográfica e residencial constituiu-se como um problema porque coloca em confronto o investimento dos agregados familiares com o manejo de critérios relativos à vida laboral, familiar, económica e financeira. Como bem salienta Silva Pereira, na casa própria as pessoas sentem-se seguras à partida, mas nos casos de mobilidade residencial essa segurança tende a esvair-se. Ainda assim, as famílias continuam a preferir a manutenção do património aos arrendamentos, ainda que nas condições económicas atuais talvez haja espaço para uma mudança de perspetiva.

O relato de Raul da Silva Pereira recorda-nos que a habitação é um objeto técnico e político com contornos sociais e conjunturais que não podem ser ignorados. No domínio da habitação cruzam-se fenómenos jurídicos e económicos, estéticos e éticos, sociais, políticos e culturais. Em conjunto, tais fenómenos configuram diferenças e desigualdades que se traduzem em direitos e termos de troca, espaços e sensibilidades, constrangimentos e oportunidades, relações de poder e teias de significado. O trabalho e a reflexão de Raul da Silva Pereira oferecem-nos justamente a possibilidade de melhor compreender o funcionamento da pluralidade de instituições e de práticas que estabelecem em permanência, de modo dinâmico e a diferentes escalas, a relação entre habitação e sociedade.

 

BIBLIOGRAFIA

DELICADO, A. (2009), A Musealização da Ciência em Portugal, Lisboa, Fundação Calouste ­Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia.         [ Links ]

NUNES, A.S. (1988), “História, uma história e a História – sobre as origens das modernas Ciências Sociais em Portugal”. Análise Social, 100, XXIV (1.º), pp. 11-55.         [ Links ]

PEREIRA, R. da S. (1963), “Problemática da habitação em Portugal – 1”. Análise Social, 1, I (1.º), pp. 33-66.         [ Links ]

PEREIRA, R. da S. (1983), “A habitação própria – solução do problema habitacional?”. Análise Social, 77-78-79, XIX (3.º, 4.º, 5.º), pp. 737-741.         [ Links ]

PEREIRA, R. da S. (2007), História da Caixa Geral de Depósitos, Lisboa, Ed. do autor.         [ Links ]

PEREIRA, R. da S. (2011), “Depoimento de um dos fundadores da Análise Social: Ab Initio”. Análise Social, 200, XLVI (3.º), pp. 611-616.         [ Links ]

PORTAS, N. (1997), “A arquitectura de habitação no século XX português”. In A. Becker, A. Tostões e W. Wang (orgs.), Arquitectura do Século XX, Portugal, Lisboa, Edição Portugal – Frankfurt 97 – Centro Cultural de Belém, pp. 116-121.         [ Links ]

 

NOTAS

1   Para a preparação desta entrevista, agradecemos a disponibilidade do Professor João de Pina-Cabral e de Maria Goretti Matias para as conversas informais que em muito nos auxiliaram. Agradecemos também a Rita Carvalho, pela visita guiada ao Arquivo de História Social, e a Raul Silva Pereira a entrevista que amavelmente e com grande disponibilidade nos concedeu, a cedência de um precioso conjunto de artigos de sua autoria relativos à habitação em diversos âmbitos (legislativo, histórico, social) e, finalmente, a sua colaboração na revisão final deste texto.

2   As palavras registadas em entrevista de Raul da Silva Pereira surgem neste artigo em itálico.

3   De acordo com o depoimento de Raul da Silva Pereira, Adérito Sedas Nunes, fundador da Análise Social, foi também docente da que terá sido a primeira cadeira de sociologia da habitação em Portugal. Estas aulas decorriam na Academia Militar. Sedas Nunes lecionou também sociologia aos seus colegas arquitetos, engenheiros e economistas, fundadores da revista, de forma a preparar a equipa.

4   Estes recortes dizem respeito às edições do Diário Popular entre 16 e 22 de fevereiro de 1965.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons