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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.205 Lisboa dez. 2012

 

Direitos humanos e cultura: Velhas e novas tensões

 

Miguel Vale de Almeida*

*Departamento de Antropologia, ISCTE-IUL. E-mail: miguelva@gmail.com

 

Na sua proposta de des-essencialização do casamento, Edmund Leach (1961) referia-se à instituição como um bundle of rights. Ao escrever sobre “direitos humanos” vejo-me tentado a apropriar-me dessa imagem, pois o que se nos apresenta é um bundle of words quando falamos de “direitos humanos”: cidadania, multiculturalismo, cultura, lei, poder, identidades, discriminações. Curiosamente – ou não – este feixe ou pacote de palavras corresponde às temáticas que tenho vindo a investigar enquanto antropólogo, às que tenho vindo a lecionar como docente, e àquelas em que tenho vindo a intervir enquanto cidadão e mesmo enquanto ativista. O presente texto assume a complexidade – mas também o potencial esclarecedor – da sobreposição destas dimensões e da sua concretização científica, pedagógica e política, abordando as discussões antropológicas sobre direitos humanos. Ele assenta na experiência de um seminário sobre “Direitos Humanos e Cultura” lecionado no âmbito de curso de mestrado em antropologia no ISCTE-IUL, e na confrontação com as expetativas dos estudantes que, talvez em consonância com o zeitgeist, giram em torno da aparente impossibilidade de resolver a contradição entre diferença cultural e universalidade dos direitos humanos.

Enquanto cidadão, mas também enquanto antropólogo, recordo-me como no Portugal pós-revolucionário, e até ao período posterior à “normalização” por via da integração europeia (período coincidente com o meu aprendizado inicial da antropologia), o discurso político e associativo dominante não recorria à categoria “direitos humanos”. Esta ganha a sua força concreta na época posterior ao fim das grandes narrativas emancipatórias, sobretudo as baseadas em visões de fundo marxista. Boaventura de Sousa Santos refere, aliás, o mesmo, afirmando que “[…] perante a crise aparentemente irreversível destes projetos de emancipação, essas mesmas forças progressistas recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da emancipação”, perguntando-se ainda se os direitos humanos podem preencher o vazio deixado – e respondendo com um “sim muito condicional” (Santos, 1997, p. 11). As transformações na economia política global afetaram seriamente o modelo anterior de relações capital-trabalho, de relações entre economias, polities e populações à escala global, e coincidiram com a emergência da denominada política da identidade, transformando assim quer os dados da ação política organizada, quer o enfoque das ciências sociais – e muito particularmente o da antropologia, que se viu confrontada com a transposição da categoria “cultura” de um certo remanso académico para as ruas e veredas do mundo.

A lecionação da unidade curricular “Direitos Humanos e Cultura” é apenas uma etapa, ou uma parte, de um agregado de experiências de investigação e ensino que têm abordado temáticas do pós-colonialismo, do multiculturalismo, e das identidades e discriminações em torno do género, da sexualidade e da “raça”, que serão convocadas também para este debate e argumento por justamente ajudarem a complexificar as questões e, simultaneamente, a relativizar a oposição entre universalismo e particularismo como, no mínimo, mal colocada. O primeiro movimento desenquadrador das formas normais e normativas de ver consiste em questionar o papel da antropologia face à problemática dos direitos humanos. Surpreendentemente – ou não – ele foi, durante muito tempo, um não-papel. Messer (1993) elenca cinco razões pelas quais a antropologia não se terá envolvido, até tarde, na temática dos direitos humanos. Em primeiro lugar, uma insistência na relatividade cultural dos conceitos de direitos humanos; em segundo lugar, a especialização nos direitos coletivos, nomeadamente de povos indígenas, em detrimento de formulações assentes em direitos individuais; em terceiro lugar, o investimento da antropologia, quando muito, em formas de ação aplicada, nomeadamente no domínio político e económico, em detrimento do domínio dos direitos humanos tal como formulados nas cartas internacionais; em quarto lugar, os aspetos sensíveis da prossecução do trabalho de campo, nomeadamente face às autoridades estatais; e, por último, um maior envolvimento na análise e comparação de sistemas morais assentes em deveres e reciprocidade do que na análise social ao nível dos Estados e dos sistemas legais assentes em direitos (Messer, 1993, pp. 221-222). Esta tradição – e há que relativizá-la e contextualizá-la como marcadamente estadunidense – tem como texto icónico a declaração de 1947 da American Anthropological Association (AAA, 1947), em resposta a pedido de comentário à proposta de Declaração Universal apresentada à época nas Nações Unidas. Nela, a AAA rejeitava a noção universal de direitos humanos e enfatizava a diferença dos conceitos de direitos em diferentes realidades culturais, criticando o enquadramento legal internacional como etnocentricamente ocidental.

Em 1997 o Journal of Antropological Research publicava um dossiê discutindo justamente sobre Universal Human Rights versus Cultural Relativity. Uma das contribuidoras, Elizabeth Zachenter, analisava como as formas mais antigas de relativismo cultural, que ela classifica como descritivo, e protagonizadas por autores como Boas, Benedict ou Mead, haviam constituído uma reação às premissas etnocêntricas da ciência oitocentista. Já o relativismo normativo, protagonizado, por exemplo, por Herskovits, postulava a impossibilidade de se encontrarem padrões extraculturais na base dos quais se pudessem emitir juízos valorativos sobre outras culturas. Não se trata, todavia, de expôr uma sequência evolutiva do tratamento antropológico do tema (em que se teria passado de posições mais a menos relativistas), já que a vertente relativista teria ainda, na década de 70 do século XX, um reforço através do que ­Zachenter designa como relativismo epistemológico, personificado, entre outros, por Rosaldo (1984), na esteira de Geertz (1973, 1984). Os relativistas epistemológicos argumentariam que não só não existem esses padrões extraculturais, como tal se deve ao facto de as culturas serem mutuamente incompreensíveis: “According to epistemological relativism, all knowledge and morality are exclusively culture-bound, and rational thinking and the scientific method are no more than a culturally bound form of Western ethnoscience” (Zachenter, 1997, p. 325). Pela mesma época, a determinação da consciência de classe sobre as perspetivas dos indivíduos, vinda da renovada influência marxista, ou a rejeição da noção de realidade objetiva por parte das tendências desconstrucionistas e pósmodernas, também contribuiram para um clima académico de rejeição quer da objetividade, quer da universalidade dos direitos humanos. Uma parte substancial do meu esforço pedagógico tem ido no sentido de convencer os estudantes de que estas posições são eticamente insustentáveis no mundo contemporâneo, ainda que possam servir de retaguarda crítica para o pensamento antropológico sobre as dinâmicas sempre temporárias e posicionais do “mundo real das pessoas reais”.

Apontando contradições e tautologias ao relativismo cultural, Zachenter acusa-o de assentar numa conceção estática de cultura, denotando posturas funcionalistas, marginalizando assim as vozes não dominantes nas sociedades e enfatizando os direitos do grupo em detrimento dos direitos individuais (Zachenter, 1997, p. 328). Um dos exemplos a que recorre – a instituição do sati, ou “suicídio das viúvas”, em alguns contextos do subcontinente indiano – gera justamente grande discussão entre os estudantes em torno de ambiguidades e paradoxos dos direitos humanos, da universalidade e do relativismo, à semelhança, aliás, de temas mais contemporaneamente icónicos, como a polémica do uso do “véu” islâmico ou a das práticas de mutilação genital feminina. No mesmo dossiê do Journal of Anthropological Research compete a Elvin Hatch (1997) o papel de defesa do relativismo cultural. Reconhecendo que o relativismo moral de Benedict ou Herskovits estava errado, defende porém que a tolerância a que o relativismo apela deveria constituir o nosso modo de pensar “por defeito”, defendendo assim um relativismo ético, e não moral. É notória, porém, a dificuldade que ele denota em argumentar face a um clima cultural e político – nalguns aspetos sobretudo ocidental e estadunidense, mas também global – de emergência política das vozes subalternas que definem os establishments culturais como estruturas de poder. Ou seja, a defesa, hoje, do relativismo, é impossível se feita nos termos básicos da oposição entre universalidade humana versus relatividade cultural. Hatch não aborda suficientemente a distinção que deve, hoje, ser feita a montante daquela, a saber, a distinção entre o relativismo cultural enquanto método de aproximação antropológica à diversidade cultural, por um lado, e o relativismo moral, por outro. Feita essa distinção – que é, aliás, um staple do ensino antropológico contemporâneo, pelo menos em Portugal – então sim, ganha valor a sua proposta. Todavia, e sendo esta uma questão central, junto com uma noção dinâmica de cultura, no treino dos aspirantes a antropólogos, ela não é uma questão que se resuma a uma simples normatividade metodológica. Ela deixa em aberto consequências teóricas, pois o relativismo metodológico não é simples técnica, já que abre a porta para as formas mais desconstrucionistas de relativismo moral. Em suma, será possível sustentar o que parece transparecer de Hatch, a ideia de que é possível ter o melhor do relativismo e o melhor do universalismo, deixando de lado o pior de ambos? Ou é simplesmente falsa a oposição?

Terence Turner parece querer responder a essa questão integrando a diferença cultural (e não só) no elenco da universalidade dos direitos:

 

The concept of universal cultural features or principles is not in itself incompatible with some forms of cultural relativism, but the idea of universal human rights poses special problems. “Rights”, in the specific sense, cannot be universal attributes of “humanity”, as anthropologically conceived, but general principles of right or justice may be so. Anthropology may be able to provide knowledge of universal attributes of humanity with ethical or moral implications that can help to define such concepts. More specifically, anthropological activism in defense of human difference provides an important lead for the formulation of a universal right to difference. [Turner 1997, p. 273]

 

Também para Turner o relativismo cultural surge claramente mais como método do que como teoria. E a cultura é um atributo universal da humanidade – a capacidade humana para a cultura. A existência de diferenças culturais não impede a possibilidade de universais culturais, tal como acontece por exemplo com as línguas, em que a diferença entre estas não preclude as comuns propriedades estruturais. Mais: a variação cultural pode ser o resultado de processos que em si mesmos têm propriedades universais, intrínsecas à vida social humana em cultura. Aliás, já em 1993 Turner se pronunciara a favor do que designou como “multiculturalismo crítico”, em contraposição a um “multiculturalismo da diferença”, em que o primeiro vê a diferença cultural como uma ponto de partida para desafiar noções básicas comuns às culturas dominantes e minoritárias, em contraposição ao segundo, um multiculturalismo dos fetichistas da diferença, que é o estereótipo que tem sido criticado pelos neoconservadores nos países ocidentais com situações de multiculturalidade. Curiosamente, a declaração da American Anthropological Association, de 1993, marca a diferença face à de 1947 anteriormente referida:

 

Anthropology as an academic discipline studies the basis and the forms of human diversity and human unity; anthropology as a practice seeks to apply this knowledge to the solution of human problems. […] the AAA has long been […] concerned whenever human difference is made the basis for a denial of rights – where “human” is understood in its full range of cultural, social, linguistic and biological senses. [Commission for Human Rights, 1995, in Turner, 1997, p. 286]

 

O problema não parece radicar-se numa simples oposição entre relativismo e universalismo, que poderia em última instância ser mesmo uma falsa questão, mas sim em três questões. A primeira diz respeito ao conceito de cultura utilizado, historicamente associado a visões holistas, de reforço do consenso, da harmonia ou da regulação homeostática do conflito; assentes na justaposição entre cultura, população, território e polity; e sem consideração dos processos históricos de transformação e contacto.

A segunda diz respeito à falta de cuidado crítico em relação ao facto de que, no plano político do mundo contemporâneo, algumas agendas emancipa­tórias, nomeadamente da identidade e das subalternidades ­marginalizadas, ­facilmente resvalam para o essencialismo culturalista, reproduzindo elas mesmas antigos conceitos de cultura que entretanto fizeram o seu processo de ­trickle down (ou são, eles mesmos, um efeito esperável das formas de organização social, à semelhança da universalidade da disposição etnocêntrica formulada por Lévi-Strauss), nomeadamente não reconhecendo processos de intersecionalidade (por exemplo, movimentos de emancipação étnica ou de género que elidem, na elaboração da sua agenda, as diferenças de classe, e vice-versa).

A terceira, que, de certo modo, é correlata da primeira, prende-se com o caráter, histórica e culturalmente relativo, dos debates entre o peso relativo do “indivíduo” e do “grupo”. Esta oposição, estruturante do próprio pensamento sociológico e da filosofia política liberal (área onde tem sido maior a produção teórica sobre as relações entre multiculturalismo, direitos humanos e cidadania) é normalmente tributária de uma perspetiva deficiente, que divide a prevalência de cada princípio por tipologias de sociedade, conferindo a disciplinas diferentes a sua análise: mais modernidade é igual a mais individuação, e igual a mais sociologia; menos modernidade é igual a menos individuação, e igual a mais antropologia, remetendo os membros de grupos culturais do segundo tipo para uma “submissão cultural” que impede a sua constituição como sujeitos, a não ser através do opting-out. Nada menos adequado para perceber as relações sociais do mundo globalizado contemporâneo, nomeadamente no que às relações entre “direitos humanos” e “cultura” diz respeito.

Em 2006, a American Anthropologist publica um dossiê que, em certa medida, pode ser lido como a reavaliação e atualização do debate de 1997 no Journal of Anthropological Research. Cowan (2006) identifica quatro conjunções entre “direitos” e “cultura”: os direitos contra a cultura; o direito à cultura; os direitos como cultura; e a cultura como “‘analytic’ to rights” (Cowan, 2006, p. 9). A primeira conjunção tem como exemplo fundamental o debate entre universalismo e relativismo. A segunda reemergiu no século XX (a sua primeira ­instância fora o nacionalismo romântico), tratando-se de um fenómeno global, parte do redirecionamento de demandas pela redistribuição, para demandas pelo reconhecimento (Fraser, 1997), e que se pode apresentar tanto numa encarnação reacionária como progressista em termos de projetos políticos. A terceira remete para as ideias tanto de Rorty (1993) como de Bobbio (1996), que sugerem poder agora falar-se de uma “cultura dos direitos humanos”, no sentido de um discurso estruturante que molda a forma como o mundo é entendido. A quarta pretende distinguir objeto de método, argumentando que não se trata só de dizer que os direitos constituem uma cultura, mas também que os direitos podem ser apreendidos com métodos próprios da análise cultural, distinguindo assim o uso mais analítico de “cultura”, por parte dos antropólogos, das abordagens mais objetificantes de muitos outros académicos.

Permitam-me expandir um pouco o argumento de Cowan, pois parece-me útil para religar a discussão sobre direitos humanos à discussão sobre multiculturalismo e cidadania em situação de globalização neoliberal e póscolonial, em que a “cultura” surge como objeto disputado (e disputado “aos” antropólogos). Aliás, a experiência pedagógica em que este texto assenta obriga a um vai-vem entre a temática dos direitos humanos e a temática do multiculturalismo que, no fundo, partilham literatura e questões críticas centrais. Cowan aborda a filosofia política liberal, que está na base dos grandes debates contemporâneos, no mundo anglo-saxónico, sobre multiculturalidade e multiculturalismo (Fraser, 1997; Kymlicka, 1995; Nussbaum, 1999; Taylor, 1992). O debate entre a antropologia (onde se terá notado mais a influência de modelos alternativos, como os hibridismos de Bhabha (1994) ou Gilroy (1995) e a filosofia política não é simples, uma vez que a primeira é uma ciência empírica, que vê como os direitos e reivindicações culturais operam no terreno, ao passo que a filosofia política é normativa, vendo-os como “deveriam ser”. Mas os debates na filosofia política estão no centro das discussões de governação sobre o multiculturalismo (quer enquanto adjetivo descrevendo uma realidade, quer enquanto projeto político) e, indiretamente, sobre os direitos humanos, ativando a oposição indivíduo-grupo e mobilizando noções não-antropológicas de cultura, complexificando assim o sucesso da intervenção pública da antropologia. Kymlicka, cuja obra fundadora é Multicultural Citizenship (1995), com uma postura avessa a um fetichismo da diferença que remeta as pessoas para o ghetto da “sua” cultura, acentua a versão individualista e do direito de saída (opting out) e de liberdade cultural. Esta posição que, numa abordagem inadvertida, poderia fazer crer estarmos perante alguém com uma visão dinâmica dos processos de identidade cultural, revela afinal uma conceção estática de cultura – o que preocupa Kymlicka é como salvaguardar as pessoas de serem “escravas” dos padrões da “sua” cultura, não o questionamento da noção de cultura, que ele parece aceitar pelo seu valor aparente. Para Cowan, o debate tem oscilado

 

[…] fruitlessly between the Scylla of liberal underdetermination and the Charybdis of communitarian overdetermination of the individual. Part of the analytical problem is the assumption that an individual is inside only one culture at any one time, part of it is the conflation of consciousness with social relations, and part of it is a more generally inadequate theorization of subjectivity […] theoretically flawed, grounded as it is in a presumption of cultures as unchanging. [Cowan, 2006, p. 15]

 

Na mesma linha de crítica a noções de cultura unitária, não cambiável, harmónica e com correspondência populacional, Benhabib (2002) pretende ultrapassar este reducionismo cultural com uma abordagem construtivista social e a partir de uma influência Habermasiana. Relativamente à polémica do “véu” em França ela nota a falta de interesse tanto dos defensores da laicité como dos muçulmanos mais religiosos face às razões das raparigas para usarem o véu. Benhabib, apesar de argumentar no quadro normativo da filosofia política liberal, expande a noção de cultura para o campo da negociação e da diversidade interna e intergrupal, muito em virtude de os seus questionamentos terem origem no debate feminista sobre as contradições inerentes às reivindicações de universalidade quer dos direitos humanos, quer dos direitos cívicos. Diz Cowan:

 

[…] Benhabib sees the solution neither in ignoring or condoning restrictive or otherwise abhorrent practices in the name of respect for cultural autonomy nor in imposing liberal freedoms but, rather, in supporting democratic deliberation internally. Thus, she argues that nonmembers can support minority women and other non-elites in their demands to participate fully and equally in intergroup dialogue, their contestations of illiberal practices, and their arguments for alternative interpretations. [Cowan, 2006, p. 16]

 

A antropologia confronta-se hoje quer com a questão da objetificação e essencialização da cultura, quer com a questão da predominância do indivíduo ou do grupo, de formas que não são substancialmente diferentes das elucidadas pelo debate político e filosófico. A tradicional concentração do trabalho antropológico em comunidades designadas como “índigenas” – ou, melhor dizendo, o facto de o trabalho científico (mas também humanitário e político) com comunidades relativamente pequenas e na margem do mainstream do Estado-nação ser feito sobretudo por antropólogos – tem conduzido ao agudizar da reflexão sobre aquelas questões. Percebemos melhor o panorama se olharmos para duas declarações posteriores à Declaração Universal dos Direitos Humanos: a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981, e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007. Em ambos os casos, e por motivações diferentes – na primeira por atitude política dos governantes africanos face aos riscos dos processos de democratização liberal, na segunda por vontade de proteção da situação dos povos indígenas face aos estados e economias nacionais e transnacionais – os princípios liberais individuais parecem secundarizados face aos princípios da defesa quer da tradição, quer do grupo.

A maior parte dos antropólogos que se têm confrontado com estes dilemas têm trabalhado em contextos marcados pela politização da cultura, ou em ­contextos de emergência de formas de essencialismo estratégico (Vale de Almeida, 2011) relacionado com políticas da identidade ou demandas de direitos cívicos e/ou humanos.1 Speed (2006), por exemplo, que se autointitula “antropóloga engajada”, sugere uma abordagem colaborativa que junte o ativismo e a crítica cultural. A partir da sua experiência em Chiapas, junto de uma ONG de direitos humanos, treinando jovens para fazerem o seu próprio trabalho de defesa dos direitos humanos, ela diz:

 

As an anthropologist trained in social constructionism and antiessentialism and cognizant of the critiques of legal rights struggles, I could see the pitfalls of an essentialized presentation of Nicolá Ruiz’s [a Comunidade por ela estudada] cultural identity. I worked to find a way to define their indigenousness that continually emphasized the fluid and changing nature of culture […] without ceding the critical importance of that identity in lived experience and as the basis of claims to rights. I argued that culture, identity, and tradition are all continuously being reinterpreted in light of the experience at any particular historical moment […]. Unfortunately, people in Nicolás Ruiz did not necessarily agree. [Speed, 2006, p. 73]

 

É este reconhecimento da diferente natureza da reflexão crítica antropológica e dos guiões estratégicos comunitários que importa realçar, bem como o reconhecimento da reflexividade das ciências sociais e do hiato temporal que se verifica: aquilo com que se confrontam no terreno os antropólogos que desconstroem o conceito fixista de cultura é o efeito da produção antropológica anterior, instrumentalizável quer para efeitos emancipatórios comunitários quer, noutros casos (pense-se nos regimes totalitários), para efeitos repressores de demandas emancipatórias.

 

Na sua veia provocatória, e como já havia feito em 1995 com o multiculturalismo, Žižek dá a um seu artigo de 2005 o título “Against human rights”. Mas a sua postura pode ser mais bem ilustrada, e com maior simplicidade, na seguinte passagem publicada no The Guardian:

 

What is increasingly emerging as the central human right in late-capitalist societies is the right not to be harassed, which is the right to be kept at a safe distance from others. A terrorist whose deadly plans should be prevented belongs in Guantánamo, the empty zone exempted from the rule of law; a fundamentalist ideologist should be silenced because he spreads hatred. Such people are toxic subjects who disturb my peace. On today’s market, we find a whole series of products deprived of their malignant property: coffee without caffeine, cream without fat, beer without alcohol. And the list goes on: what about virtual sex as sex without sex? The Colin Powell doctrine of warfare with no casualties (on our side, of course) as warfare without warfare? The contemporary redefinition of politics as the art of expert administration as politics without politics? This leads us to today’s tolerant liberal multiculturalism as an experience of the Other deprived of its Otherness – the decaffeinated Other. [Žižek, 2010]

 

Recorrendo a Balibar (2004) e ao seu argumento a favor da inversão da relação histórica e teórica entre “Homem” e “cidadão” – em que defende que o “Homem” é feito pela cidadania e não a cidadania pelo “Homem”, Žižek conduz o seu argumento de encontro a Agamben (1998) e à sua noção de Homo Sacer, como o ser humano reduzido à “vida nua”. Para Žižek, alguém fica privado de direitos humanos no momento exato em que é reduzido a ser humano “em geral”, tornando-se, num aparente paradoxo, no portador ideal dos direitos humanos universais. Perguntando-se o que acontece quando os direitos humanos acabam por ser, afinal, os direitos do Homo Sacer, dos excluí­dos da comunidade política, o filósofo esloveno socorre-se de Rancière (2004) – quando já não servem, dá-se aos pobres, como a roupa usada: “If those who suffer inhuman repression are unable to enact the human rights that are their last recource, then somebody else has to inherit their rights in order to enact them in the their place. That is what is called the ‘right to humanitarian interference’[…]” (Rancière, 2004, p. 301). Žižek encaminha-se para uma conclusão:

 

We thus arrive at a standard ‘anti-essentialist’ position, a kind of political version of Foucault’s notion of sex as generated by a multitude of the practices of sexuality. ‘Man’, the bearer of human rights, is generated by a set of political practices which materialize citizenship; ‘human rights’ are, as such, a false ideological universality, which masks and legitimizes a concrete politics of Western imperialism, military interventions and neo-colonialism. [Žižek, 2005, pp. 128-129]

 

Estamos de regresso, mesmo que noutro ponto da espiral, e a partir de uma crítica ao neoliberalismo, à postura hiper-relativista dos antropólogos dos inícios do século XX? Trata-se de mais uma instância da crítica a um pensamento imperialista ocidental, como a que tem caracterizado muita antropologia e ciências sociais nos finais do século XX e inícios do XXI? Na realidade, Žižek parece querer ir mais longe do que a assunção filo-marxista de que os direitos humanos seriam efetivamente os direitos de os homens/proprietários/brancos venderem livremente no mercado, explorarem trabalhadores e mulheres, e exercerem a dominação política – um caso de conteúdo particular hegemonizando a forma universal. Mas o seu radicalismo confronta-se com a constatação da importância que a agenda e a retórica dos Direitos Humanos parecem ter para a mobilização das demandas emancipatórias hoje. O seu argumento como que se suaviza neste ponto e recorre a Rancière e à afirmação deste de que a forma nunca é mera forma. Ela deixa traços, rastos, na vida material: foi a liberdade formal burguesa que, afinal, pôs em marcha o movimento sindical e as suas conquistas, o movimento feminista e as suas conquistas. Estaríamos, neste plano, face a algo semelhante à “eficácia simbólica” de Lévi-Strauss, como aliás o reconhece Žižek.

Os alunos do referido seminário “Direitos Humanos e Cultura” tendem a simpatizar particularmente com a posição de Boaventura Sousa Santos referida no início deste texto, por aparentemente resolver a tensão, percecionada pelos alunos como central, entre universalismo e particularismo. Para o sociólogo português, enquanto os direitos humanos forem concebidos como direitos humanos universais, “tenderão a operar como localismo globalizado – uma forma de globalização de-cima-para-baixo […] Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização de-baixo-para-cima ou contra-hegemónica, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais” (Sousa Santos, 1997, pp. 18-19). Na linha do acima exposto, para ele a questão da universalidade dos direitos humanos trai a universalidade do que questiona pelo modo como o questiona, demonstrando ser uma questão particular, específica da cultura ocidental. Não se trata pois, já, do relativismo criticado no início, nem de uma demissão dos direitos humanos como ocidentalismo, mas sim de pegar nos direitos humanos reconhecendo a sua raiz cultural específica e “multiculturalizá-los”. Para tal, Sousa Santos propõe a sua hermenêutica diatópica, baseada na ideia de que os topoi de uma cultura são sempre incompletos, necessitando de ser complementados – e é assim que ele procede à comparação das mútuas incompletudes entre o topos do dharma hindu, o dos direitos humanos ocidental e o da umma islâmica. A sua proposta resume-se nas seguintes afirmações:

 

Dois imperativos interculturais devem ser aceites por todos os grupos empenhados na hermenêutica diatópica. O primeiro pode formular-se assim: das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro […] O segundo imperativo […]: uma vez que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas de acordo com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica e, portanto, com ­concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. [Sousa Santos, 1997, pp. 29-30]2

 

O poder de sedução deste argumento parece residir no facto de propor o que comummente se designa por “diálogo intercultural”, com uma noção do progresso humano assente na complementaridade cultural, possível devido à prévia diversidade cultural. Ele padece, porém, de uma perspetiva excessivamente holista do que é uma cultura, não problematizando a unicidade cultural, correndo o risco de tomar “a cultura” por um “agente”. É certo que o âmbito e o enquadramento do argumento é o da problematização das desiguais relações de poder entre instâncias nacionais e culturais no processo de globalização, e que o enquadramento partilha mais com a normatividade da filosofia política do que com a descrição e a análise de base empírica. Todavia, a ideia de que “pessoas e grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza” tem o potencial de iluminar as zonas escuras do antigo debate entre universalidade e relativismo, as das denúncias do caráter imperialista da conceção ocidental do direitos humanos, as das derivas comunitaristas de algumas iniciativas políticas e movimentações sociais no domínio do multiculturalismo e dos direitos humanos, e as das apropriações essencialistas de cultura por parte de regimes políticos totalitários.

A atenção dos antropólogos deve virar-se para os processos de debate, conflito e concertação sociais que mesclam agendas de diferença/semelhança e agendas de igualdade/desigualdade, dentro e entre qualquer grupo social, rede ou polity que, inescapavelmente, produzem temporários universos de semânticas e disposições discursivas (universos esses a que convencionámos chamar culturas) nos termos das quais se debatem “direitos humanos”, isto é, posições de poder entre (diferentes noções de) pessoas e (diferentes) categorias sociais.

 

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NOTAS

1  Ver também o capítulo sobre os direitos das pessoas LGBT como direitos humanos e universais em Vale de Almeida (2009); e Vale de Almeida (2007) sobre as relações e contradições entre “diferença” e “desigualdade”.

2  O argumento de Boaventura de Sousa Santos é debatido e expandido de forma muito rica por dois antropólogos brasileiros, Rita Laura Segato (2006) e Gustavo Lins Ribeiro (2004).

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