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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.205 Lisboa dez. 2012

 

Marinús Pires de Lima, um sociólogo do mundo do trabalho

Entrevista a Marinús Pires de Lima* por Luísa Veloso**

 

*ICS, Universidade de Lisboa. E-mail: marinus.lima@ics.ul.pt

**CIES, ISCTE. E-mail: luisa.veloso@iscte.pt

 

Marinús Pires de Lima (1942) é Investigador jubilado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. A sua trajetória académica foi marcada, desde muito cedo, pela investigação e a docência em sociologia do trabalho, escolha para qual contribuiu decisivamente o seu contacto e trabalho com Alain Touraine na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais, em Paris. Membro, antes da sua partida para Paris, do Gabinete de Investigações Sociais (GIS), viveu e participou nas manifestações e movimentos do “Maio de 68”. As suas pesquisas sobre a indústria, amplamente inspiradas no trabalho de Alain Touraine na Renault, são marcadas não apenas pelo trabalho de terreno intensivo e sistemático em importantes empresas e grupos económicos em Portugal, mas também, como refere na entrevista, por casos de estudo exemplares, isto é, sobre empresas com práticas de organização do trabalho e de gestão dos trabalhadores inovadoras. A sua investigação contempla ainda importantes trabalhos sobre o sindicalismo em Portugal e, mais recentemente, sobre a banca. O vasto conjunto de publicações de Marinús Pires de Lima refletem o seu trabalho como investigador e como docente, constituindo marcos fundamentais da sociologia portuguesa, em geral, e da sociologia do trabalho, em particular.

 

LUÍSA VELOSO - Podemos começar pelo teu percurso académico; o que é que destacarias, e como é que te cruzaste com a sociologia?

MARINÚS PIRES DE LIMA - A minha formação em Paris foi decisiva. Fui para lá com duas bolsas de estudo, uma da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico) e outra da Fundação Calouste Gulbenkian, ambas apoiadas pelo Adérito Sedas Nunes, pois foi ele que realmente me orientou. O Adérito deu-me ainda uma outra coisa fundamental: uma carta de apresentação para o Alain Touraine, que acabou por orientar os seminários que frequentei em Paris. Nessa altura estava a decorrer o Maio de 68, mas a Universidade de Paris nunca deixou de ser uma universidade de elite. Tive como professores, para além do Alain Touraine, o Michel Crozier, o Georges Friedmann, o Pierre Naville, o Jean-Daniel Reynaud; tive uma série de professores de sociologia do trabalho e não só: em sociologia urbana o Henry Lefebvre, e também alguns economistas de elevada qualidade.

 

LV - De todos os professores que referiste quem é que destacarias?

MPL - Em primeiro lugar, claro, o Alain Touraine, porque durante quase toda a sua carreira (ele já está jubilado há muito tempo, mas continua a publicar um livro por ano), continuámos em contacto. Ia praticamente todos os anos a Paris para falar com ele e para seguir os seminários da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Nanterre. Nanterre esteve, como sabemos, muito associada ao Maio de 68, cuja importância foi determinante para a minha geração. Além da libertação cultural, o Maio de 68 teve uma importância política fundamental: permitiu que, pela primeira vez, o império americano, tipificado na guerra do Vietname, e o império russo (um país considerado socialista, mas que, no fundo, era uma ditadura) fossem comparados. Eu participei ativamente nesses movimentos com o Daniel Cohn-Bendit, que era um colega meu de doutoramento. Foi dessa forma que contactei com outros mundos desconhecidos da sociedade portuguesa da época.

 

LV - Era tudo muito diferente do que se vivia então em Portugal?

MPL - Completamente diferente. Em Portugal persistia o regime de Salazar, que aliás nem sequer podia ouvir falar em sociologia. Quando chegou o 25 de Abril, eu era professor no ISCTE de uma cadeira que se chamava “Aspetos Sociais do Desenvolvimento”. Na verdade, era uma cadeira de sociologia do desenvolvimento, mas não se podia chamar assim porque a sociologia era uma disciplina proibida. No entanto, eu beneficiei do facto de haver já uma certa liberalização do regime português na altura do Marcello Caetano. Com o ministro Veiga Simão podíamos já dar as aulas que quiséssemos. Eu dava também aulas em Económicas, e recordo-me que a atmosfera de contestação ao regime era crescente. De facto, a opressão política e cultural a que estávamos sujeitos era extremamente violenta.

 

LV - Quando chegaste de Paris foste logo para o ISCTE?

MPL - Sim. Primeiro chamava-se IES. Entretanto, o GIS transformou-se em Instituto de Ciências Sociais, constituído pelo grupo antigo do GIS: o Adérito Sedas Nunes, o Mário Murteira, enfim, essa geração. A Eduarda Cruzeiro, por exemplo, pertence tal como eu a uma segunda geração.

 

LV - E como surgiu, no teu caso, o interesse pela sociologia do trabalho?

MPL - Eu já tinha estado, casualmente, durante alguns meses no Ministério das Corporações onde havia o Centro de Estudos Sociais e Corporativos, que chegou a ser dirigido pelo Adérito Sedas Nunes. Havia aí uma certa predominância das questões do trabalho: trabalho, emprego, transformações sociais, movimentos sociais, portanto havia essa dominância do trabalho que me levou a continuar na minha carreira pelo estudo dessas temáticas.

Depois do 25 de Abril comecei a fazer trabalho empírico na Lisnave, que foi realmente o sítio onde desenvolvi uma espécie de observação participante. Ia para lá praticamente todos os dias ver como é que funcionavam as diferentes secções, a caldeiraria, a mecânica, os trabalhos de bordo, tudo isso. Era um trabalho duro, mas era, ao mesmo tempo, onde estava a vanguarda do movimento operário, porque a Lisnave era e continuou a ser durante muitos anos a vanguarda. Recordo-me, por exemplo, de uma manifestação no dia 28 de setembro que só arrancou do Terreiro do Paço quando os operários da Lisnave partiram para a manifestação, que era ainda proibida porque a lei da greve não tinha sido modificada. No entanto, quando eles chegaram aquilo arrancou mesmo pela força desses operários.

Na Lisnave desenvolvi um trabalho de observação participante dos operários, quer para analisar a parte mais tecnológica, mais organizacional, especificamente a parte da introdução do taylorismo, quer a parte mais política das relações com o patronato, em que os operários da Lisnave eram também uma vanguarda, querendo, inclusivamente, sanear os patrões menos modernos. A Lisnave tinha uma característica positiva, que era o facto de ser, em parte, constituída por capital estrangeiro. Era capital sueco, nórdico, e havia, portanto, um grande modernismo na forma de organizar o trabalho e uma grande modernização também na maneira de os trabalhadores se relacionarem com os patrões, porque havia uma comissão interna da empresa onde participavam os operários. O grupo CUF era também uma espécie de vanguarda patronal, não era como a maior parte do patronato português tradicional da indústria têxtil portuguesa ou da construção civil.

 

LV - E o que é que te levou a escolher a Lisnave?

MPL - Foi também um conselho do Sedas Nunes, porque era a maior empresa industrial portuguesa. Tinha dez mil operários naquela altura; entretanto, diminuiu até aos dois mil e depois desapareceu. Escolhi a Lisnave precisamente por causa da sua dimensão e por causa da sua modernidade. Felizmente travei conhecimento com um administrador da Lisnave que simpatizava com o meu trabalho (o Afonso Howell), era um homem bastante progressista, ­bastante de esquerda, e deixou-me de facto viver ali com toda a liberdade. Eu fazia as entrevistas que queria, fazia as observações que entendia, falava com a comissão de trabalhadores e dos sindicatos quando queria, e portanto tive uma facilidade enorme em fazer trabalho de campo, o que realmente nem sempre é fácil nas empresas. Concretamente, a minha inspiração principal era a tese de doutoramento do Touraine sobre as fábricas Renault em 1955. Segui as orientações dele em termos de observação participante dos sistemas de trabalho, das tecnologias, de organização do trabalho, do taylorismo e do fordismo.

 

LV - Depois enveredaste por outras questões…

MPL - Sim, fui desenvolvendo outros temas, porque como tinha estudado a indústria metalúrgica durante vários anos, interessei-me pela siderurgia e pela indústria automóvel, até porque a indústria automóvel era também uma espécie de vanguarda, muito ligada ao taylorismo e ao fordismo. Escolhi a Renault, e quando a Autoeuropa foi fundada resolvi estudar aquilo que era uma empresa de vanguarda, em que também os trabalhadores se envolviam na própria direção e controlo da empresa. Os encarregados, os chefes de secção e os delegados de oficina eram escolhidos, em parte, pelos próprios operários, e ainda hoje a Autoeuropa tem uma cultura de empresa forte que lhe permite que os operários participem fortemente na sua organização. Esta modernidade patronal era uma coisa relativamente rara em Portugal.

Estive também na CUF, portanto estudei ainda um bocadinho a indústria química. Quis conhecer os poucos casos excecionais no nosso mundo industrial.

 

LV - No fundo é isso também que te fascina. Tentar encontrar os bons exemplos, se assim quiseres.

MPL - É: as boas práticas, porque são exceções no nosso mundo industrial, marcado pelo condicionamento industrial e por toda uma série de práticas tradicionais e repressivas. Só existiam práticas modernas justamente nestas empresas, daí a minha atração por estudar estas boas práticas. E eu estudava estas empresas do ponto de vista das relações do trabalho. As comissões de trabalhadores tinham um papel quase tão importante como os sindicatos, porque os sindicatos ainda estavam numa fase de criação. Durante 50 anos nós não tivemos sindicatos, nem tivemos direito à greve, nem tivemos liberdades sindicais, e portanto era esse mundo diferente que me atraía para ver aquilo que realmente era original e novo em Portugal.

Mais tarde decidi optar por uma perspetiva mais comparativa por meio da internacionalização. Entrei em contacto com colegas que, em São Paulo e no Rio de Janeiro, estudavam a indústria naval e a indústria automóvel, e fiz também observação participante em São Paulo durante seis meses.

 

LV - E depois foste encontrando os teus colaboradores?

MPL - Fui encontrando os meus colaboradores, que aliás fui mantendo durante vários anos, e fui fazendo outros estudos mais internacionalizados. Fui o delegado português durante alguns anos do Eurofound, da Fundação de Dublin, e comecei a fazer projetos sobre relações de trabalho e sistemas de trabalho com colegas ingleses, franceses e belgas, que em parte tinha conhecido através da rede Erasmus e com quem comecei a fazer estudos internacionais, comparativos.

 

LV - E que temas é que trabalhavam?

MPL - Os temas normalmente eram os diferentes sistemas de trabalho, os mais tradicionais, os mais modernos, a parte da organização do trabalho, a parte da tecnologia, a parte do taylorismo e do fordismo, a parte da modernização da empresa. Foi principalmente isso que eu fiz. Tive a possibilidade não só de dar aulas, mas também de fazer investigação com colegas brasileiros. Isso durou vários anos.

 

LV - E depois saíste do ISCTE para o ICS?

MPL - Sim, depois tive de optar. Mas houve sempre ligações entre o ISCTE e o ICS. Portanto foi realmente uma articulação entre as duas instituições, em que alguns professores eram comuns, outros não. Principalmente eu podia aproveitar a investigação para ensinar, porque dirigi teses de licenciatura e de mestrado, passei pelo mestrado de sociologia do trabalho do ISCTE, e por isso mantive mais ou menos as mesmas orientações, só que com a predominância da investigação. Fixei-me no ICS, e mantive-me aqui até à jubilação. Portanto, o meu contacto com esta instituição vai praticamente desde 1966, quando fui para Paris, até hoje.

 

LV - E foste desenvolvendo outros temas na sociologia do trabalho, para além daqueles que referiste?

MPL - Atualmente estou com um projeto sobre a banca, que já dura há alguns anos, em que estudo as transformações ocorridas na banca portuguesa e que a transformaram em poucos anos numa das bancas mais modernas da Europa. Estou agora a escrever um artigo, que depois eventualmente se transformará em livro, exatamente sobre os quadros bancários, sobre a tecnologia, sobre a organização do trabalho, sobre a maneira como o trabalho foi evoluindo com os quadros bancários e os técnicos bancários, porque praticamente os bancários são quase todos técnicos ou quadros.

Outro aspeto importante foi ter utilizado por duas vezes a metodologia da intervenção sociológica.

 

LV - Estes temas, essas realidades sociais que foram marcando o teu trabalho também foram mudando, começando por exemplo pelo operariado. Como é que perspetivas esses processos?

MPL - Para começar houve um aumento do desemprego. Em segundo lugar, houve um aumento da precarização. Os contratos a prazo são frequentes, depois os contratos não são renovados, ou se o são é para começar outra vez do princípio. Em suma, é realmente necessário fazer um trabalho sobre as mudanças no mundo do trabalho: a precarização, os contratos a prazo, o trabalho feminino precarizado e uma certa exploração do mundo do trabalho levada a cabo pelos patrões.

 

LV - Isso também quer dizer que os operários que tu estudaste nos anos 60 e 70 já não são os de hoje. Não é só a questão da transformação do mundo do trabalho, é também a transformação da própria classe?

MPL - É sim, porque nessa altura, nos anos 70, era o setor secundário e a indústria pesada que dominavam. Hoje não, hoje é o terciário e o quaternário. Com as novas tecnologias de informação, com a robótica e a informática, o próprio trabalho fabril também se modificou. A evolução do mundo do trabalho tem de ser acompanhada e revisitada com outros métodos. Aliás, é interessante notar que Lazarsfeld, que é um dos grandes autores da análise multivariada, tem um livro prefaciado pelo Bourdieu, Les chômeurs de Marienthal, que mostra exatamente o efeito do desemprego no mundo do trabalho, os efeitos sobre o atraso dos salários, sobre a precarização do trabalho da mulher, a precarização em geral do trabalho e as dificuldades, os dramas, e às vezes as tragédias do mundo do trabalho precarizado.

 

LV - Portanto, se fizesses uma caracterização daquilo que achas que é hoje a classe operária, o operariado, quais seriam as grandes diferenças que apontarias?

MPL - Além da passagem do setor secundário para o setor terciário, as grandes diferenças radicam num certo “salve-se quem puder”, por força do desemprego. Em Portugal existe o que Boaventura Sousa Santos chama a “sociedade providência”. Setúbal é um bom exemplo: muitas famílias só conseguiram sobreviver aos salários em atraso, às vezes durante seis meses, por causa da ação da igreja, da Cáritas.

 

LV - E o sindicalismo também mudou muito, que é outro grande tema do teu trabalho.

MPL - Sim, o sindicalismo mudou. Ainda há bocadinho estava a ler uma revista da CGTP (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses), a Alavanca, em que o Carvalho da Silva faz uma evolução muito significativa do mundo do trabalho. Tive sorte em tê-lo como interlocutor nas minhas aulas, porque de facto o Carvalho da Silva é um tipo excecionalmente inteligente, culto, aberto, e também heterodoxo do ponto de vista político, ao contrário da atual dominância da CGTP.

 

LV - E o que pensas sobre o papel dos sindicatos em Portugal desde que começaste a estudar?

MPL - Na época do 25 de Abril pode-se dizer que havia um movimento operário no sentido de movimento social, porque o movimento operário teve um papel decisivo nas transformações ocorridas, e o mundo agrário, o mundo urbano, a reforma urbana e a reforma agrária, no fundo seguiram aquele modelo que era o modelo inspirado, digamos assim, no radicalismo operário. Bom, isso praticamente terminou ou pelo menos transformou-se profundamente. E porquê? Porque passou a haver muito mais individualismo, muito mais precarização, e portanto hoje a concorrência faz com que o mundo operário tenha sido influenciado também pela concorrência fortíssima que existe a todos os níveis. As pessoas têm de saber línguas, têm de se adaptar realmente a uma abertura de fronteiras.

Em vez da ação operária radical do 25 de Abril, os sindicatos passaram a ter uma ação muito mais institucionalizada, passaram a ter conselhos de concertação social, comités económicos sociais, conselhos de empresa; passaram a ter aquilo a que se chama “concertação social”. No fundo, o que está em causa é a ideia de que todos têm a ganhar com a cedência recíproca, em vez de optarem por uma radicalização em que aquilo que uns ganham perdem os outros. Por exemplo, na Autoeuropa há um banco de horas e, com base nele, é possível negociar certo número de pausas no trabalho e pausas inclusivamente de férias ao longo do ano, que era uma coisa que dantes era impensável. Curiosamente, encontrei isso no Brasil que é um país menos desenvolvido que o nosso desse ponto de vista.

 

LV - E ao nível da organização do trabalho, que outro tema estudaste tu? O que é que achas que foi mudando nas empresas que analisaste?

MPL - Aquilo que mudou mais foi realmente a passagem do taylorismo e do fordismo, que hoje estão em vias de transformação profunda (ou desaparecimento mesmo), para os círculos de qualidade, por exemplo, que é um outro modo completamente diferente de trabalhar, em que os trabalhadores participam na organização dos comités de empresa. A forma de trabalhar é muito mais participada, o que quer dizer que obriga a uma implicação maior dos trabalhadores no mundo do trabalho e a uma formação profissional maior, mais polivalente, mais aberta. Participei também num projeto dirigido por uma universidade inglesa sobre precarização e individualismo nas novas formas de gestão em seis países diferentes. E um outro do Eurofound que procurava comparar a realidade portuguesa com a realidade dos outros países europeus, por vezes muito diferentes.

 

LV - Também criaste, desde 1984, um arquivo de sociologia do trabalho. Em que consiste esse arquivo?

MPL - O arquivo tem como objetivo preservar documentos com interesse para a sociologia do trabalho. Os documentos são muitas vezes destruídos, porque a tradição em Portugal não é como em Inglaterra, onde existem arquivos e museus de arqueologia industrial. Em Portugal dá-se pouca importância à história, por isso decidi salvaguardar diversos documentos da Lisnave e da indústria automóvel. De facto, para fazer a história do mundo do trabalho em Portugal é preciso ter bons arquivos, e para ter arquivos bons é preciso conservar a documentação. Este arquivo aqui no ICS vai sendo alimentado pelos anexos documentais das teses e por entrevistas, que constituem a base empírica justamente deste trabalho de conservação. Inclui também arquivos de empresas, como os da CUF, por exemplo.

 

LV - Estiveste também na base da criação da Associação Portuguesa de Sociologia (APS) e da Associação Portuguesa de Profissionais em Sociologia Industrial, das Organizações e do Trabalho (APSIOT)?

MPL - Sim, fui um dos fundadores das duas. Curiosamente a industrial é mais antiga. Lá está, a tradição do mundo do trabalho em Portugal. A criação destas associações foi um processo difícil. Foram criadas com a preocupação de manter o trabalho de investigação vivo, nomeadamente através dos colóquios. Verificou-se um aumento grande e significativo de gente e uma progressiva mudança de gerações. Digamos que entre a geração dos gestores, os que vão para gestão de empresas, e a geração dos sociólogos, existe a geração dos economistas. Quer dizer, há uma certa separação entre o mundo dos gestores, mais individualista e fortemente centrado sobre a carreira profissional, e o mundo da sociologia, que continua a ser muito centrado na investigação. Nestas associações cruzam-se estes profissionais, estes diferentes mundos.

 

LV - E em termos da evolução do conhecimento das ciências sociais em Portugal, o que é que destacarias mais recentemente?

MPL - Destacaria além do ICS e do ISCTE, os dois grupos do Porto, portanto o do ­Carlos Gonçalves e o do José Madureira Pinto, e destacaria o grupo de ­Coimbra, evidentemente, que é muito dinâmico, o CES – Centro de Estudos Sociais, do Boaventura de Sousa Santos. Verifica-se também um aumento do número de temas. Dantes não se estudava tanto a precarização nem o individualismo, nem os círculos de qualidade, nem estas formas de gestão modernas.

 

LV - Como é que encaras agora neste cenário o panorama em Portugal da inves­tigação?

MPL - Com exceção daquilo que hoje se passa, que é uma diminuição de fundos, no domínio da investigação o panorama é de diversificação. Já começa a haver uma certa generalização, não só no Porto, mas também na Covilhã e em ­Setúbal. Mas no atual contexto é complicada a atividade de investigação, até porque a investigação fundamental foi, no tempo do primeiro governo de Cavaco Silva, um bocadinho desvalorizada em favor da investigação aplicada. Com exceção do mundo universitário, quase não se encontra trabalho hoje de investigação.

 

LV - E como é que articulas, do ponto de vista pessoal, o teu papel profissional enquanto investigador e professor, e o teu papel enquanto cidadão, como é que encaras isso na relação entre a ciência e a sociedade?

MPL - Para já, fui muito influenciado por uma formação de cidadania e pela globali­zação. Portanto, não deixei nunca de acompanhar de perto o mundo da ­política. Só que o mundo da política hoje está fortemente hegemonizado por uma política e uma gestão neoliberal. Se não fosse a FCT estávamos desgraçados. Eu estive envolvido em alguns movimentos em 1974, claro, quando as ­pessoas da minha geração formaram o MES (Movimento de Esquerda Socialista), e depois dentro do Partido Socialista – o chamado socialismo democrático. É aí que me situo.

 

LV - O que é que achas que é a nossa responsabilidade cívica enquanto investigadores?

MPL - É precisamente evidenciar a quantidade de temas e de problemas que só as ciências sociais, a sociologia em particular, podem abordar. Mas dou também importância à antropologia do trabalho. Acho que temos de mostrar aquilo que não é imediatamente acessível ao público em geral.

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