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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.204 Lisboa jul. 2012

 

Modos de fazer uma República: demiurgia e invenção institucional na tradição republicana brasileira1

 

Ways of republic making : institutional invention in Brazilian republican tradition

 

Renato Lessa*

*Universidade Federal Fluminense. E-mail: renatolessa5@gmail.com

 

Resumo

O artigo sugere uma interpretação da República brasileira como ­processo de invenção dependente de duas ordens de ficções. A primeira delas, formulada entre outros ensaístas brasileiros, por Francisco José de Oliveira Vianna, sustenta a vigência, no processo de constituição da sociedade e do Estado no ­Brasil desde o período colonial, de um padrão de sociabilidade fragmentado e carente de laços sociais e cívicos permanentes. A segunda ordem de ficções é corolário da primeira: a ausência de nexos sociais acabou compensada pela presença e pela força do direito público e da elaboração constitucional. O artigo analisa dois momentos cruciais de (re)invenção da República brasileira, ambos marcados pelo predomínio do direito público e da invenção constitucional (1932 e 1988). Ao fim, a experiência política brasileira é apresentada como tentativa continuada de criação de uma comunidade cívica e política “contra os factos”.

Palavras-chave: invenção; República; direito público; constituições.

 

Abstract

This article suggests an interpretation of the Brazilian republican State and nation building as a process affected by two orders of fictions. The first and fundamental one was formulated, among several Brazilian intellectuals, by Francisco José de Oliveira Vianna in the beginning of the twentieth century. It was based on the assumption that Brazilian social and political history has been marked, since colonial times, by “insolidarism” and by a lack of social and civic bonds among the population. The second order of fictions is a corollary of the first: the lack of social bonds has been compensated for by the presence and the force of public law and constitution making. The article analyzes two crucial moments of (re)invention of the Brazilian Republic – 1932 and 1988 – marked by a clear predominance of constitution and law making. As a result, Brazilian political experience is presented as an everlasting attempt to build a civic and political community against the facts.

Keywords: fiction; Republic; public law; constitutions.

 

ABERTURA

Os regimes e sistemas políticos, sobretudo em tempos de mutação, são afetados por dinâmicas históricas e sociais que os preparam e antecedem. Mesmo que constituídos por dinâmicas confusas e processos erráticos, vulneráveis aos efeitos do imponderável, vale a seu respeito a máxima de Alexis de ­Tocqueville, expressa nas Lembranças de 1848: a de que o acaso, embora ­urdidor de imensas porções do processo histórico, nada faz para além daquilo para o qual foi preparado (Tocqueville, 1991, p. 84). Sensibilidade semelhante pode ser encontrada na reflexão do historiador William Sewell Jr, em ensaio iluminado no qual considera o estatuto teórico da ideia de evento (Sewell,1996). Se é verdade que um evento, para além de ser reconhecido como “notável” e resultar de “sequências de ocorrências”, produz “transformações duráveis nas estruturas” sociais, ele é algo que resulta do próprio enredo que acaba por alterar.2 Contudo, o nosso principal problema, enquanto analistas e estudiosos da história política, é o de que as tramas que atam o acaso ao que se lhe preparou e antecedeu só ganham alguma visibilidade e inteligibilidade – se tanto – a posteriori.

Do ponto de vista dos sujeitos políticos, imersos no turbilhão das coisas imediatas e presentes, o acaso e o imponderável constituem, a um só tempo, o abismo e o atrator da ação humana. Se, para efeitos académicos, a ideia de cognição é algo que se configura ex post facto, do ponto de vista existencial – isto é, o da vivência da ação – a balança inclina-se para a concomitância, senão para a antecipação. Os sujeitos políticos são seres fixados na sincronia: a própria ideia de ação política só se faz inteligível se pensada como exercício de atribuição imediata de sentidos ao mundo, orientada para a fabricação de eventos. Ao contrário do ideal do conhecimento ex post facto, sustentado na ficção do esclarecimento favorecido e sedimentado pela passagem do tempo, o conhecimento como esforço de sentido orientado para a imediaticidade parte da suposição de que inteligibilidade e sincronia são termos mutuamente necessários.

Por outras palavras, são diversos os regimes possíveis de cognição diante da história: conhecer antes, conhecer durante, conhecer depois. Há, por certo, um suposto otimista na ideia de que o tempo e a distância são ­componentes necessários para o reto conhecimento dos fenómenos históricos, e que as demais modalidades, por antecipatórias ou precipitadas, não obedecem a proto­colos aceitáveis de fixação da verdade histórica. Fenómenos adormecidos pelo tempo prestar-se-iam com maior intensidade à compreensão, enquanto a fixação na sincronia poderia ser considerada como portadora de obstáculos epistemológicos intransponíveis. Para retomar o tema dos eventos, colocado por Sewell, a representação dos mesmos como irrupções fincadas em estruturas e tempos de maior duração, ou séries de ocorrências, exige um modo de conhecimento ­situado na perspetiva do que aqui denomino como conhecer depois. Do ponto de vista da imediaticidade, ou do ator, o sentido do evento é o que é dado e posto na e pela ação. Há mesmo, aqui, uma aproximação possível com o que Hannah Arendt definiu como sendo o sentido próprio e necessário da ideia de uma ação livre (Arendt, 1972). O sentido desta ação é dado pelo que ela acrescenta ao mundo; o índice de liberdade que comporta é dado pela medida em que a ação é livre e independente dos seus próprios motivos. O selo da liberdade vale como garantia de suspensão do princípio da causalidade.

As condições gerais que definem o arco de possibilidades de um ator, por certo o antecedem, se quisermos imemorialmente, mas o que constitui o evento que ele deflagra não é o desdobramento – ou o desabamento, em uma espécie de produtividade natural e necessária – dessa longa cadeia de causalidades sobre o instante. Há algo, pois, na dobra do evento que, ao mesmo tempo em que precipita séries de ocorrências pretéritas, acrescenta o inaudito e inventa novas possibilidades de configuração da vida.

Se apurarmos, contudo, a vista – ou o espírito –, talvez seja o caso de sustentar que o termo conhecimento, associado aos predicados antes, durante e depois, carrega significados diversos. Com efeito, em que medida uma antecipação – ou uma aposta – configuram um ato de conhecimento? Há, de certeza, margem para a objeção, mas, por outro lado, se por conhecimento – de um modo abertamente deflacionado – convencionarmos designar esforços de produção de sentido capazes de sustentar juízos e pautas de ação, o termo pode bem ser rececionado em todas as modalidades aqui indicadas (antes, durante e depois), com distintos protocolos de aplicação.

O conhecimento por antecipação, mais – ou menos – do que profecia esotérica, é passagem para que se diga o que se quer da vida – ou seu oposto, o que não se quer.3 Os operadores dessa passagem são, por maioria de razão, alucinatórios e expressam-se por meio de crenças e imagens do mundo. Conhecer por antecipação não se confunde com a profecia iluminada, mas com a fixação de cursos de ação que podem vir a ser acolhidos e tornados efetivos por jogos complexos de circunstâncias. Não é por outra razão que a ideia de conhecimento por antecipação aparece na tradição da filosofia política como a modalidade mais relevante de fixação da verdade.

Por mais que a inauguração de uma República possa ter a sensação de anarquia que traz consigo dissolvida em uma espécie de apaziguamento causal, ainda assim ela pode ser interpelada como evento portador do inaudito e do imaginário. A imanência de processos sociais “objetivos”, embora incancelável, não prefigura as (des)orientações seguidas pelos atores políticos e sociais. O exagero dos tratados de sociologia histórica funda-se, com frequência e em não pequena medida, na suposição de que os atores “sabem” dos seus papéis e que estes, de alguma forma, resultam de – e mantêm pregnância com – movimentos tectónicos da sociedade. Somos, de certeza, afetados por essa confusa e abissal geologia dos processos históricos e sociais, mas, a despeito disso, a ação política constitui-se como acréscimo epidérmico e alucinatório aos imperativos da causalidade.

As Repúblicas, assim como outras erupções de natureza política e institucional, resultam de dinâmicas tectónicas e de longo prazo, por certo; mas, a despeito disso, devem ser inventadas pelo engenho e pela imaginação dos humanos.4 Dois parecem ser os componentes compulsórios desses esforços de invenção: a presença de crenças causais e de atos de “storytelling”, para utilizar terminologia sugerida por Joseph Hillis Miller (Hillis Miller, 1987, p. 3)5. Tais componentes apresentam-se de modo necessariamente imbricado: há que supor a presença de um encadeamento causal entre fenómenos históricos mais ou menos visíveis, cujo modo de apresentação exige que se conte uma história.

Há que, ainda, a isso acrescentar a presença igualmente incontornável de um componente originário nos esforços de invenção aludidos, algo que poderia ser descrito como um exercício de metafísica histórica, a reter no seu interior a ficção de um sentido para a experiência da história. Mais do que ideologicamente afetadas, as narrativas históricas são metafisicamente impregnadas por hipóteses de sentido. O historismo do século XIX não terá sido a última tentativa de varrer a precipitação da metafísica sobre os factos contingentes. Resta saber a medida em que isso deu azo à metafísica do facto contingente. O mesmo se deu com o hiper-positivismo do século XX, apegado aos micro-factos como abrigo seguro para macro-verdades.

 

DA CONDIÇÃO BRASILEIRA ORIGINÁRIA

Já que estou a falar em ficções, e desejo aproximar-me do tópico da invenção da República no Brasil, tomo como ponto de partida uma das mais bem estabelecidas ficções a respeito do que se poderia designar como a condição brasileira originária. Antes que a decline, penso ser importante dizer que tomo a expressão condição brasileira originária como análoga, em termos funcionais, à de condição humana e ao papel por ela exercido no campo mais amplo da filosofia política. Com efeito, tal campo exige como sua condição inerente de possibilidade a definição de um conjunto de atributos constituidores de imagens da condição humana, das quais se seguem desenhos de ordem política e social a elas adequados.

Quer isto dizer que a dimensão antropológica do pensamento político e social – outrora muito mais evidente, antes que a assepsia do cientificismo ocupasse as nossas (in)sensibilidades analíticas – é compulsória. Na tradição da filosofia política são várias as definições do que seja a condição humana, assim como dos desenhos de mundo social que soam como seus corolários. É o que se depreende da seguinte série não exaustiva, constituída por pensadores, com as suas respetivas definições dos atributos que constituem o humano: Aristóteles – o animal que fala; Michel de Montaigne – o animal que crê; T­homas Hobbes – o animal que teme a morte violenta; Bento de Espinoza – o animal que teme a solidão; John Locke – um animal portador de direitos naturais; Karl Marx – o animal laborans; etc… De cada uma dessas definições do que seja a natureza humana resulta uma imagem precisa a respeito do que é e deve ser a vida social, adequada à antropologia que lhe antecede. Neste sentido, o tema da condição humana é parte compulsória do processo de invenção de ontologias sociais.

Não é caso, é evidente, de insistir aqui no tema da condição humana. A referência rápida, creio, é suficiente para indicar a presença de uma ficção originária, absolutamente necessária para a configuração de imagens da vida social e para exercícios de conhecimento por antecipação. É o próprio tema da felicidade pública que exige como condição de consistência mínima a definição daquilo que é próprio da condição humana e do que a ela convém (Lessa, 2008b). Nesse campo preciso procede – como em tantos outros – a terminologia sugerida pelo filósofo Nelson Goodman, que sustentava que as imagens do mundo – e do mundo social y compris – que produzimos são mais depictions do que descriptions (Goodman, 1978, pp. 1-22). Se o argumento procede para as ficções que constituem a condição ou a natureza humanas, penso que se possa aplicá-lo com idêntica força às ficções que fundam interpretações de experiências nacionais ou coletivas.

Se falamos em ficções, a expressão condição brasileira originária não deve, por maioria de razão, ser tomada como índice de algo “realmente existente”, para utilizar vocabulário em desuso; de algo fixado material e objetivamente em alguma “origem” detetável – seja lá o que isso signifique – e que tenha imposto de forma inelutável um determinado destino nacional. Muito menos se trata de uma substância que subjaz intocável e permanente, sob a trama dos acontecimentos, imune à erosão do tempo e à espera da sua deteção iluminada. Para que a expressão faça sentido, é imperativo seguir a célebre prescrição metodológica de Jean-Jacques Rousseau, apresentada no seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens: é necessário “afastar todos os fatos, pois eles não se prendem à questão” (Rousseau, 1978, p. 236).

Em outros termos, as ficções construídas a respeito de condições originárias estabelecem formas de sensibilidade, quadros linguísticos e metafóricos nos quais a experiência de um país, de uma forma antecipatória, passa a ser dotada de sentido. Do ponto de vista de cada um dos autores que empreendem tais esforços ficcionais, manifesta-se uma adesão ao que o mesmo Rousseau denominou como “raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza das coisas” (Rousseau, 1978, p. 236). Isso a despeito da crença – maior ou menor, segundo cada um dos autores dessas antecipações – de que falam de um mundo realmente existente e que praticam atos de desvelamento ontológico, a exibir a natureza objetiva e a substância das coisas, e não atos de alucinação.

Mas de que desenho da condição brasileira originária se trata? É mais do que hora de decliná-lo. Desejo partir da imagem de país que serve de suporte à conceção desenvolvida por Francisco José Oliveira Vianna a respeito do que é e deve ser o poder público – vale dizer, o Estado e a administração – no Brasil, no seu papel de configurador de uma experiência de fabricação e integração social.6

Oliveira Vianna (1883-1951) foi um dos mais importantes intelectuais brasileiros da primeira metade do século XX. Pertenceu a uma linhagem de autores, na qual despontam autores como Paulino José Soares de Souza, visconde de Uruguai – autor de um Ensaio sobre o Direito Administrativo (1862) – e Alberto Torres, autor de dois importantes livros, nas décadas iniciais da República no Brasil – O Problema Nacional Brasileiro (1912) e A Organização Nacional (1914). Trata-se de uma linhagem conservadora que procurou desenvolver uma intepretação “realista” – segundo auto-atribuição – da formação nacional, social e política brasileira.

Tal marca, em Oliveira Vianna, é evidente nas suas duas mais importantes obras de interpretação do Brasil, Populações Meridionais do Brasil (1920) e Instituições Políticas Brasileiras (1949), assim como na sua reflexão crítica a respeito da história constitucional do país, em O Idealismo da Constituição (1927). Oliveira Vianna definia-se como um “idealista orgânico”, em oposição aberta aos que definia como “idealistas utópicos”. Enquanto estes se pautavam pela aplicação ao país de paradigmas “estrangeiros”, de extração liberal, democrática ou socialista, Oliveira Vianna sustentava a necessidade de subordinar o idealismo a um militante realismo histórico e sociológico.

O resultado do esforço foi curioso. Oliveira Vianna foi um pessimista retrospetivo. A sua interpretação da história colonial brasileira é devastadora, posto que ali se constituiu um confortável abrigo para o “insolidarismo”7 e para a aversão à vida civil. Não obstante, tal pessimismo histórico não serviu nele de base para o pessimismo político. Antes pelo contrário, a história do país teria apresentado em chave negativa a agenda necessária para a superação dos problemas nacionais. Tal perceção combinou-se com o papel prático desempenhado por Oliveira Vianna como um dos principais intelectuais do regime implantado no Brasil a partir de 1930. Com efeito, de 1932 a 1940, ­Oliveira Vianna foi conselheiro jurídico do recém criado Ministério do Trabalho. Tal como atesta José Murilo de Carvalho, foi “o principal formulador da política sindical e social do governo até 1940” (Carvalho, 1993, p. 13). Entretanto, publicou dois importantes livros sobre assuntos diretamente ligados às suas atividades no governo, e cujos títulos são auto-evidentes: Problemas de Direito Corporativo (1938) e As Novas Diretrizes da Política Social (1939).

É da lavra de Oliveira Vianna um dos mitos fundadores do pensamento político brasileiro do século passado: a história do país representada pela imagem de um espaço – mais do que de uma experiência nacional – marcado pelo insolidarismo e pela ausência de laços sociais originários e espontâneos entre os seus habitantes. O brasileiro originário, nessa constituição imagética, é um “dendrófilo” – um ser que ama as árvores, que vive dentro delas –; um sujeito que não herdou a tradição comunitarista dos seus antepassados europeus e que no espaço americano configura uma paisagem humana na qual as interações são infrequentes e imperam a fragmentação e a subordinação ao espaço natural:

 

Esta a estruturação ecológica, sob a qual evoluiu a nossa população colonial. Caracterizada pela rarefação e adelgaçamento da massa povoadora, pela dispersão dos moradores por uma base territorial imensa e inculta, apenas percorrida calcante pede pelo povo-massa e carecente quase em absoluto de comunicações espirituais, tinha que acabar, como acabou, por enformar o homem, criando-lhe um tipo humano adequado a essa disposição dispersiva, individualista e atomística. E criou o homo colonialis, amante da solidão e do deserto, rústico e antiurbano, fragueiro e dentrófilo (sic), que evita a cidade e tem o gosto do campo e da floresta [Oliveira Vianna, 1999, p. 135].

 

Efeito mais do que previsível dessa constituição antropológica, para não falar de fatalidade, é o suposto raquitismo cívico do personagem:

 

O que a análise histórica e social dessas populações evidencia é que nada há, nem na sua psicologia política, nem na sua organização social, nem na sua estrutura antropológica, nem no seu meio geográfico, que lhes possa favorecer ou desenvolver a capacidade de luta cívica no terreno material [Oliveira Vianna, 1952, p. 335].

 

O tema, por certo, não é original ou mesmo nacional. Alberto Torres, outro importante intelectual brasileiro de inícios do século passado, já havia indicado algo a respeito, antes que Populações Meridionais do Brasil (1920) e muito antes que Instituições Políticas Brasileiras (1949), duas das mais importantes obras de Oliveira Vianna, tivessem consagrado esse realismo histórico-sociológico que constitui um dos fundamentos mais duradouros do pessimismo nacional. Na Argentina, Ezequiel Martinez Estrada – na sua monumental Radiografía de la Pampa, de 1933 – ressaltou as dimensões do isolamento, do mundo sem experiência, da incomunicabilidade, da descontinuidade e do desmembramento, quando “descreveu” a Argentina profunda (Martinez Estrada, 1933). Há, é evidente, uma forte leitura pessimista e negativa a respeito da ação do espaço sobre as interações humanas, efeito ausente, por exemplo, em Jackson Turner quando pensou a respeito da fronteira norte-americana (Turner, 1996). Temos, pois, dois termos para possíveis comparações: uma ideia de fronteira como abismo do social (Oliveira Vianna e Martinez Estrada) e outra como aventura (Turner).

A dendrofilia dos antepassados sociais brasileiros é a evidência histórica e arqueológica do artificialismo dos idealismos constitucionais. Oliveira Vianna – e antes dele Campos Salles, presidente da República entre 1898 e 1902 e Alberto Torres, nas suas obras O Problema Nacional Brasileiro e A Organização Nacional, – é um crítico acérrimo do constitucionalismo liberal, acusado de irrealismo sociológico:

 

Entre nós, não é no povo, na sua estrutura, na sua economia íntima, nas condições particulares da sua psiquê, que os organizadores brasileiros, os elaboradores dos nossos códigos políticos vão buscar os materiais para as suas formosas e soberbas construções: é fora de nós, é nas jurisprudências estranhas, é nos estranhos princípios, é nos modelos estranhos, é nos exemplos estranhos, é em estranhos sistemas que eles se abeberam e inspiraram [­Oliveira Vianna, 1939, p. 7].

 

A natureza originária do país interdita a sua reconfiguração como experimento civilizatório vazado no idioma e nos valores do constitucionalismo liberal. Há no argumento de Oliveira Vianna o hálito de um naturalismo sociológico que sugere que as condições reais do país devem necessariamente servir de lastro e fundamento para a sua tradução jurídica e normativa.

Mais do que um apego a formas políticas autoritárias e antiliberais, é possível perceber no realismo de Oliveira Vianna uma forte afinidade com motivos centrais do conservadorismo, tal como descritos em ensaio seminal de Karl Mannheim: “a ação conservadora é sempre dependente de um conjunto concreto de circunstâncias” (Mannheim, 1982, p. 108). A passagem para a letra e o lamento de Oliveira Vianna parece ser direta: “Nenhum dos nossos constitucionalistas havia procurado cunhar em metal brasileiro, dentro dos moldes das nossas conveniências nacionais” (Oliveira Vianna, 1930, p. 22).

Argumento difícil, o de Oliveira Vianna. Ao mesmo tempo em que alude à necessidade de realismo histórico e sociológico, diz com clareza que o país – como experimento civilizatório positivo – deve ser criado por atos de demiurgia pública e estatal. Pessimismo da razão histórica e sociológica, otimismo da vontade de demiurgia: posta está, com clareza, a precedência do direito público sobre o direito privado, a exigir a prática de um amálgama que combina realismo e voluntarismo. Na assunção de tal precedência, esvai-se o pessimismo. Em seu lugar, um voluntarismo normativo ocupa o proscénio, o que afasta Oliveira Vianna, e os autoritários brasileiros em geral, de uma perspetiva puramente decadentista ou nostálgica a respeito da história do seu país.

Noutros termos, trata-se de inventar um país a partir dos factos, ou, mais do que isso, contra os factos. Ao fim e ao cabo, o realismo pretendido de ­Oliveira Vianna acaba por inserir-se na tradição utópica e voluntarista do direito público, que chama para si a tarefa de constituir um experimento de país. A condição originária brasileira, enquanto experiência societária, é insuficiente para fixar o seu destino enquanto Estado Nacional. Tal destino dar-se-ia por negação dos seus antecedentes históricos. A dificuldade do argumento inscreve-se exatamente nesta aporia: é necessário partir dos factos reais e da sua história, para que os mesmo sejam reconfigurados em direção distinta à da sua vigência inercial.

 

DO PREDOMÍNIO DO DIREITO PÚBLICO E CONSTITUCIONAL: COMENTÁRIOS SOBRE DOIS MARCOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA BRASILEIRA (1932 E 1988)

Contaminado ou não pelas ficções de Oliveira Vianna e pelo seu pessimismo a respeito das capacidades auto-poiéticas daquilo que Darcy Ribeiro designou como o “povo brasileiro”, o desenho normativo do país ficou marcado pelo predomínio do direito público e constitucional. De certa forma, o diagnóstico da sociabilidade incompleta ou do raquitismo cívico impôs-se. Não seria pelos efeitos sociológicos espontâneos da sua configuração histórica e pelas suas emanações telúricas que o país poderia dispor de instituições ­modernas, de um quadro institucional que não resultasse dos efeitos mecânicos da sociologia política dos clãs (Oliveira Vianna,1999). A reinvenção do país, após 1930, ainda que resultante de uma revolução que na sua origem civil ostentou a marca de “liberal” – a Revolução de Outubro de 1930, que pôs fim à Primeira República, inaugurada em 1889 –, indicou o embarque num roteiro que jamais viria a ser reescrito e reorientado e, creio, jamais o será: o da opção pelo artifício e pela invenção institucional como forma de moldar o país.

A configuração do Brasil moderno, a partir da Revolução de 1930, exigiu atos de demiurgia, emanados de intervenções no campo do direito público e constitucional: 1930 como evento é o contraponto ao particularismo e à autarquia oligárquicas. Ainda que a cultura localista e coronelística não tenha desaparecido, uma nova ideia de espaço público acabou por emergir, inscrita na fisionomia de um Estado unitário que se impôs à nação, como sua condição de inteligibilidade e de consistência. O Estado republicano brasileiro, tal como hoje o imaginamos, é obra posterior a 1930.8

O que desejo ressaltar, nas notas a seguir, é que atos de demiurgia, que resultam da precedência do direito público e constitucional na definição do que é e deve ser o país, possuem claros efeitos positivos e com larga durabilidade na configuração de uma tradição republicana e democratizante. Não desconheço a engenharia institucional e constitucional regressiva e conservadora, também presente na história republicana brasileira, mas penso que se trata, nesse caso, de efeitos de natureza datada e circunscrita, tal como os Atos Institucionais e manipulações constitucionais emanados do regime de 1964. Quais dos seus institutos, afinal, acabaram rececionados pelo regime que lhe sucedeu, depois de 19859? Os atos de demiurgia não regressiva e democratizante aos quais me refiro são, por ordem: o Código Eleitoral de 1932 e a Constituição de 1988.

 

DEMIURGIA 1932

Passada a Revolução de Outubro de 1930, o primeiro exercício de reinvenção do país, através do Decreto 19 459, de 6 de dezembro de 1930, materializou-se na constituição de uma comissão encarregada da revisão de todas as leis então vigentes. Nada mais apropriado para uma Revolução. Os analistas são quase unânimes em aí localizar os germens do autoritarismo e do estatismo que por longas décadas viria a assolar a experiência nacional brasileira. No entanto, é interessante lembrar que numa das vinte subcomissões nas quais se dividia a grande comissão teve grande destaque a figura de Joaquim Francisco de Assis Brasil, veterano tribuno democrata gaúcho.

A subcomissão em questão encarregou-se da Reforma da Lei e do Processo Eleitorais, e deixou como legado um conjunto de atributos centrais para a identidade institucional do país, nos anos vindouros. Refiro-me ao seguinte conjunto, consagrado no Código Eleitoral de 1932, simbolicamente promulgado como uma espécie de refundação republicana, no dia 24 de fevereiro, 41.º aniversário da promulgação da primeira Constituição republicana brasileira, como que a completar a obra de 1891: voto proporcional, sufrágio feminino, voto secreto e justiça eleitoral.10 Assis Brasil, então ministro plenipotenciário na Argentina, exultou com a notícia da emissão do Decreto 21 076:

 

Nunca duvidei da decretação da lei eleitoral. Entretanto, exulto vendo legalizada a maior e mais fundamental reforma necessária à remodelação da República. Temos um sistema eleitoral mais racional e prático até hoje existente ou proposto com independência de juízes. Com o que virá logo, ficará completo o ideal democrático inspirador da revolução e o povo ficará apto para lavrar o seu próprio destino e ter o governo que merece.11

 

A obra viria a ser rececionada pela Constituição de 1934, com a adição do voto obrigatório (a incorporação dos analfabetos, ainda teria que esperar quase 50 anos, posto que introduzida com a reforma constitucional de maio de 1985, após o fim do regime de 196412).

Edgard Costa, ao analisar o Código de 1932, não exagerou ao afirmar que “a revolução política de 1930 deixou, inegavelmente, como a sua maior e melhor conquista, a reforma do sistema eleitoral”, iniciada com aquele instituto (Costa, 1964, p. 53). A interpretação de um dos mais importantes constitucionalistas brasileiros, Pontes de Miranda, indicaria, ainda, o papel preponderante do direito público e constitucional no desenho do país: “o verdadeiro significado sociológico da Revolução de 1930 e da Constituição de 1934 foi o de unificar o processo e o direito eleitoral material, enfeixando-o nas mãos do Poder Legislativo quanto à legislação e da Justiça Federal quanto à aplicação” (Santos, 1937, p. 133).

Coube ao Código de 1932 a invenção do eleitorado brasileiro como figura de um direito público específico. A criação de um ramo especializado da Justiça Federal – a Justiça Eleitoral –, com ramificações estaduais, indica a precedência do direito na configuração do quadro das instituições eleitorais do país. A introdução do voto obrigatório, em 1934, compõe bem a pintura: fixar a participação eleitoral como dimensão compulsória do vínculo dos cidadãos entre si e com a vida pública, num quadro regulado por regras jurídicas claras, aplicadas por um ramo específico do judiciário, em princípio não afetado pelas contendas que deve regular. Se é verdade que a Carta de 1934 introduziu no ordenamento constitucional o princípio da representação corporativa e funcional, não é menos notável que tenha também instituído o voto obrigatório. Ao fim e ao cabo, foi este último legado que acabou fixado como cláusula permanente na tradição republicana brasileira.

A reforma política, introduzida pelo Código de 1932, ainda que os seus efeitos de curto prazo tenham sido mitigados pelos acontecimentos imediatos – a não-realização de eleições presidenciais diretas em 1934 e o golpe de Estado de 1937, que inaugurou o Estado Novo brasileiro –, foi a primeira a indicar uma clara direção democratizante para o país, em 110 anos de história independente. Com efeito, a grande reforma eleitoral feita no Brasil, nos tempos anteriores ao Código de 1932, fora introduzida, durante o regime monárquico, em 1881, pela Lei Saraiva que, a pretexto de estabelecer eleições diretas para a Câmara dos Deputados, eliminou os votantes de primeiro grau e manteve o censo alto para os de segundo, o que implicou em forte diminuição da massa do eleitorado, a cerca de 10% do original.

A regulação introduzida em 1932, e rececionada pela Constituição de 1934, ao contrário, possuía elementos claramente incorporadores. É evidente que uma certa confusão se deveria seguir a isso. Com efeito, em maio de 1935, o presidente da República, em mensagem ao legislativo, reclamava sem disfarce: “basta-se dizer que, em sete meses, de outubro de 1934 a maio de 1935, está ainda por findar o processo das eleições gerais” (Costa Porto, 2000, p. 129).

Mais do que atentar para a complexa e original ourivesaria presente na definição legal do voto proporcional, importa considerar a filosofia política que constituiu a iniciativa de 1932, rececionada pelas Cartas de 1934, 1946 e 1988: tal filosofia política, a um só tempo, reconhece imperativos realistas – e. g., a necessidade de uma justiça específica e federal para garantir a “verdade eleitoral” contra a manipulação localista – e indica a opção por um processo de incorporação eleitoral menos vulnerável aos mecanismos oligárquicos.

É de demiurgia, portanto, que estamos a falar, diante desse exemplo de criação institucional. Em notação distinta, no que diz respeito a uma história natural do eleitorado brasileiro, são os passos dados no domínio do direito público e constitucional que se apresentaram como mais relevantes do que a presença de movimentos independentes e demandas sociais por incorporação eleitoral.

 

DEMIURGIA 198813

As instituições e as regulações que envolveram a criação da política social e a organização do mundo do trabalho, nas décadas de 30 e 40 do século passado, representam o que talvez tenha sido a mais forte evidência brasileira de demiurgia institucional e constitucional. Luiz Werneck Vianna, em livro clássico, fez-lhe análise inspirada e incontornável (Werneck Vianna, 1976). Se voltarmos à letra de Oliveira Vianna, um dos intelectuais desse ato maior de demiurgia, a arquitetura da legislação social e trabalhista pode ser percebida como a resposta mais adequada ao passivo sociológico nacional. O défice crónico de sociabilidade e solidariedade, sugerido nas interpretações daquele autor, teria fixado a urgência da invenção de um macro artifício capaz de configurar identidades e obrigações; um marco de agregação e de configuração nacionais que não resultou da dinâmica espontânea da vida social.

O que desejo aqui, contudo, evidenciar é algo de extração mais recente e portador de combinação nova e singular na tradição republicana brasileira, presente no experimento da Carta de 1988. Ali, a par da tradicional demiurgia constitucional – aliás, inerente a qualquer processo de elaboração de consti­tuições (mesmo as mais minimalistas) – sentir-se-iam os efeitos de alterações fundas na tradição do direito constitucional. Tais alterações fizeram com que a Constituição deixasse de ser pensada como um pacto ou um arranjo de consolidação de experiências e acordos substantivos pregressos, para se afirmar como um horizonte normativo. Em outros termos, o texto constitucional revela-se como roteiro para uma história do futuro e, como tal, um esforço de fixação de ficções a respeito do que o Brasil deve ser enquanto país.

A identidade básica e normativa da Constituição de 1988 deriva de um sistema de crenças normativas e institucionais produzidas e veiculadas por uma corrente do direito constitucional brasileiro, que pode ser designada como constitucionalismo democrático.14 Um dos seus porta vozes mais importantes, José Afonso da Silva, esteve presente no processo de elaboração constitucional, desde a Comissão Afonso Arinos, encarregada pela Presidência da República, em 1985, de elaborar um anteprojeto para ser apresentado à Assembleia Constituinte a ser eleita em novembro de 1986. O próprio José Afonso da Silva foi autor do “pré-anteprojeto”, se assim posso chamá-lo, apreciado pela referida Comissão. Uma das marcas mais fortes da presença desse jurista na elaboração da Carta de 1988 pode ser detetada na semelhança entre o preâmbulo do anteprojeto que elaborou, o que veio a ser proposto pela Comissão Arinos e o, por fim, adotado na própria Constituição (Cittadino, 1999, p. 44). José Afonso da Silva atuou, ainda, durante o Congresso Constituinte como o principal assessor direto do líder do PMBD15, o senador Mario Covas.

Três aspetos fundamentais indicam a presença do chamado constitucionalismo democrático no processo, desde os anteprojetos de José Afonso da Silva e da Comissão Afonso Arinos:

 

i) A definição de referências éticas e metapolíticas como fundamentos da ordem jurídica, tal como revela a definição do Estado brasileiro como Estado Democrático de Direito, cujo objetivo é a dignidade dos brasileiros (anteprojeto José Afonso da Silva) ou a promoção da pessoa (anteprojeto Comissão Afonso Arinos).

ii) A criação e a fixação constitucional de um sistema de direitos constitucionais: um conjunto de direitos compreendidos não apenas como direitos negativos e de proteção dos indivíduos, mas como liberdades positivas, entre as quais sobressaem os tradicionais direitos de participação política, associados a obrigações positivas do Estado em relação aos cidadãos;

iii) A caracterização do Supremo Tribunal Federal como órgão de caráter político, ao qual se atribui a tarefa fundamental da jurisdição e da concretização das normas constitucionais.

 

Contra a corrente positivista, então hegemónica no campo do Direito Constitucional, o constitucionalismo democrático buscava uma referência ético-moral para operar como fundamento da ordem jurídica. Nessa medida, recusa uma vertente exclusivamente liberal, marcada tanto pela defesa de um individualismo utilitarista como por uma conceção negativa de liberdade. Ao contrário, tal fundamento ético-moral implicava a definição das bases de um “constitucionalismo societário e comunitário”, que “confere prioridade aos valores da igualdade e da dignidade humanas” (Siqueira Castro, 2005).16

Do ponto de vista do conteúdo dos valores consagrados no preâmbulo e no título dedicado aos direitos e garantias fundamentais, do texto constitucional, os constituintes, linguisticamente vinculados à prosódia do direito constitucional, acabaram por fixar na Constituição orientações há muito introduzidas pela semântica da filosofia política. Em termos concretos, a Constituição, do ponto de vista daqueles valores, é uma síntese de decantações, na qual estão vigorosamente presentes as vozes da tradição democrática – pelo elogio à liberdade positiva e pelo alargamento das formas de intervenção política, cívica e social dos cidadãos –, da tradição liberal – pelas liberdades clássicas garantidas e pela preocupação com os indivíduos como sujeitos de direitos – e da tradição igualitária e, por que não dizê-lo, socialista democrática.

A carga valorativa do preâmbulo da Constituição de 1988 pode melhor ser avaliada se a comparamos com parte do que a precedeu. Com efeito, o seu correspondente na Constituição de 1967 dizia simplesmente:

 

O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.17

 

O contraste com o preâmbulo de 1988 é gritante.

 

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.18

 

Em primeiro lugar, a designação de autoria. Não uma instituição – o Congresso Nacional –, mas “representantes do povo brasileiro”, reunidos com o propósito de “instituir um Estado Democrático”. Tal finalidade, contudo, não se esgota no desenho de instituições e de formas de organização política e administrativa. Há, de modo claro, a ideia de que o “Estado Democrático”, enquanto arranjo institucional, se justifica pelos seus propósitos de natureza substantiva: “[…] assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça[…]”. Constituem-se, ainda, como itens de uma forma de sociedade que se quer implantar: “uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias[…]”. Em termos resumidos, o preâm­bulo estabelece a autoria da Carta, os seus propósitos mais gerais e indica a forma da sociedade que quer tornar vigente, como condição material para os seus propósitos.

O comentário da edição da Constituição aqui utilizada é preciso: o preâmbulo serve de “instrumento à interpretação dos dispositivos inseridos na Carta Magna […] nessas condições, não é lícito interpretar qualquer norma constitucional em desacordo com o preâmbulo”19. Trata-se de um modo inequívoco de afirmar que o preâmbulo importa para o desenho da Constituição e do tipo de ordenamento social que ela preside. Em outros termos, é um equívoco hiper-realista – frequentemente praticado pelos institucionalistas –, considerar o preâmbulo como peça retórica e vazia.

O passo seguinte da fabricação constitucional do mundo consiste no título dedicado aos direitos e garantias fundamentais, composto pelos quatro primeiros artigos da Constituição. Trata-se, antes de tudo de definir simplesmente o que é o Brasil. Mais uma vez, o laconismo da Carta de 1967 é largamente ultrapassado. No seu primeiro artigo, aquela Carta definia o país nos seguintes termos:

 

O Brasil é uma República Federativa, constituída sob o regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, Distrito Federal e dos Territórios.

 

Nos novos termos, o conceito de país é redefinido. A “República Federativa do Brasil” passa a ser o sujeito do artigo e é apresentada como “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. À tal apresentação descritiva acrescenta-se o modo pelo qual ela se constitui: “constitui-se em Estado Democrático de Direito”, dotado de cinco “fundamentos” apresentados numa série de incisos de igual quantidade: soberania (I), cidadania (II), dignidade da pessoa humana (III), valores sociais do trabalho da livre iniciativa (IV) e o pluralismo político (V).20

Trata-se de uma reconfiguração forte da tradição imediatamente anterior. Suprime-se o atributo “regime representativo” como aquilo que constitui a República e acrescenta-se, em seu lugar e com a mesma função textual, nada menos do que o conceito central da Constituição, a saber, o de “Estado Democrático de Direito”.

Dois aspetos devem ainda ser considerados para que tenhamos uma ideia mais definida do que aqui designo como demiurgia 1988. Em primeiro lugar, há que mencionar a criação, no texto constitucional, de mecanismos práticos que permitem a operação e a precedência dos conteúdos do preâmbulo e do título I (direitos e garantias fundamentais) na interpretação de matérias constitucionais e nas suas aplicações concretas. Em seguida, é importante considerar os efeitos da forma e do conteúdo da Constituição sobre as formas de ação cívica e social.

O primeiro aspeto diz respeito à capacidade de decantação da Constituição sobre a experiência social. Tal decantação será afetada pelo âmbito da interpretação à qual a Constituição está submetida: quanto maior o espectro de intérpretes autorizados, tanto mais largas as possibilidades de interpelação, atribuição de expectativas e, ao fim e ao cabo, de constitucionalização da vida. Trata-se, com efeito, de uma dimensão estratégica da interpretação, como condição de decantação do texto constitucional. Este parece ser o eixo fundamental de inscrição no texto constitucional de uma inovadora e poderosa perspetiva, contida na expressão comunidade de intérpretes. Tal como assinala Peter Häberle, seu criador:

 

[…] no processo de interpretação constitucional estão potencialmente envolvidos todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição” [Häberle, 1997, p. 13].

 

A ideia de comunidade de intérpretes traduz-se no plano prático pela criação de um conjunto de institutos cuja finalidade é a de superar a distância entre o sistema de direitos assegurados pela Constituição e o mundo da vida. Na listagem abaixo, tais institutos aparecem enumerados, assim como os sujeitos dotados da prerrogativa de empregá-los, e que, por esta via, compõem a comunidade constitucionalmente reconhecida de intérpretes:

 

•     Mandato de segurança coletivo (art. 5.o, LXX, b)21: podem ser impetrados por partidos, organizações sindicais, entidades de classe, associações legalmente constituídas, na defesa de seus associados;

•     Ação popular (art. 5.o, LXXIII): qualquer cidadão é parte legítima para postular a anulação de ato lesivo ao património público ou de entidade na qual o Estado participe;

•     Denúncia direta ao TCU – Tribunal de Contas da União – de irregularidades (art.º 74.o, p. 2.º): qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato;

•     Mandato de injunção (art.º 5.o, LXXI) “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”22: pode ser impetrado por qualquer cidadão, grupos, associações, partidos, sindicatos;

•     Ação de inconstitucionalidade (art.º 103): pode ser proposta pelo presidente da República, pelas mesas do Senado Federal, da Câmara de Deputados e das Assembleias Legislativas, pelos governadores de Estado, pelo procurador-geral da República (único designado para tal forma pela Constituição de 1967), pelo Conselho Federal da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil –, por partidos políticos com representação no Congresso Nacional e por confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.

 

O segundo aspeto já mencionado diz respeito às implicações da forma e do conteúdo da Constituição sobre os padrões de ação cívica e social. Como pode ser visto de modo claro, o texto constitucional de 1988 recusa uma ontologia do social fundada em premissas antropológicas e éticas de corte utilitarista. Em seu lugar, emerge uma teoria da agência democrática com tinturas novas. Em outros termos, trata-se de uma ideia de democracia como acesso a direitos constitucionais dotados de implicações positivas sobre a configuração da forma e da substância da vida social. O cidadão democrático, nessa nova chave, é um sujeito constituído por direitos, cuja vigência plena exige a sua atenção cívica e as suas energias políticas e cognitivas para pôr em movimento mecanismos de jurisdição constitucional.

Embora a Constituição não tenha sido restritiva no que diz respeito à organização partidária e à representação política em geral, a perspetiva de concretização dos valores constitucionais parece não transitar por aqueles domínios. A Constituição reveste-se de uma aura emancipatória que pretende representar a vontade geral e definir o horizonte da sua felicidade pública. O que emerge é uma forma de representação simbolizada nos valores da Carta e tornada funcional pela ação dos operadores do sistema de justiça. A demiurgia inscrita na Constituição exige, ainda, a ação contínua de diversos demiurgos de segunda ordem, os operadores do sistema de justiça.

A demiurgia 1988 partiu também de uma ficção a respeito da condição originária brasileira. Ao fazê-lo, pela mão dos constitucionalistas democráticos, afastou-se de duas tradições que antes haviam imposto a sua presença na história republicana. Tradições distintas, mas que por vezes se aproximaram e produziram efeitos combinados.

Refiro-me tanto à já mencionada condição insolidária, aqui simbolizada por Oliveira Vianna, quanto à que se afirma ao longo dos anos 50, em torno da imagem do “povo brasileiro” e da sua particularidade “nacional”. Um rico processo de acumulação, durante aquela década, procurou dar expressão e sentido aos processos de incorporação das massas e de definição da identidade nacional, num quadro mais amplo de modernização social e económica. Traços dessa bela trajetória podem ser encontrados na história do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB – e na obra de intelectuais do porte de Álvaro Vieira Pinto e Guerreiro Ramos. Darcy Ribeiro, nos anos 80, escreveu-lhe a síntese, no seu incontornável O Povo Brasileiro (Ribeiro, 2005).

No plano da política não é difícil perceber a associação entre tal tradição e a linhagem que decorreu de Getúlio Vargas e que nos levou, em 1961, a João Goulart, deposto pelo golpe de 1964. O ex-governador do Rio Grande do Sul (1958-1962) e do Rio de Janeiro (1982-1986 e 1990-1994) Leonel Brizola representou o esforço obstinado em mantê-la viva e operante, para além dos limites do regime de 1964 e na própria República de 1988. O horizonte dessa tradição mobilizou, durante todo o trajeto, a imagem de uma República nacional, popular, e com forte conteúdo decisionista.

A condição originária da qual parte a Constituição de 1988 evita tanto a maldição do insolidarismo como o reconhecimento de algo imanente na experiência brasileira e condensado na expressão “povo brasileiro”. Em outros termos, nem maldição em busca do seu avesso, nem ontologia em busca de expressão direta e verdadeira. O que se trata é de partir de um conjunto de definições de corte deontológico, mais do que ontológico ou arqueológico, que toma como fundamento uma condição originária percebida como um déficit de direitos. Em outros termos, a experiência pregressa a 1988 é percebida como deficitária daquilo que a Constituição de 1988 viria a inscrever no futuro. Isso diz do anacronismo necessário de toda a demiurgia forte. A âncora de realismo presente nos desenhos possíveis da vida futura repousa sobre a ficção da falta: falta-nos o que ainda virá; o que deve vir. Assim, invenção e reparação andam a par.

A condição brasileira pré-1988 é, assim, marcada por um duplo passivo, a incidir nos campos político e social. A falta de liberdade política e o passivo social são o negativo sobre o qual a nova ordem constitucional se viria a instituir. A forma de com ele lidar reinventa os brasileiros como sujeitos de direitos e inscreve na sua experiência ordinária, a um só tempo, um horizonte de valores e a perspetiva da reparação. O Estado é o depositório do passivo social, a Constituição é a sua norma e metrificação. A demiurgia 1988 manifesta-se, assim, numa Constituição que se impõe como uma aceleração no campo dos valores. Não serão os meandros da política ordinária – enfim liberada – que produzirão em tempo hábil os efeitos igualitários exigidos pela condição originária.

A aceleração consiste em partir de uma marca positiva, numa escala na qual a neutralidade de valores ocuparia a posição zero. O que a experiência errática e imprevisível da política poderia – ou não – vir a inscrever na vida social, em função de correlações de força no campo eleitoral, impõe-se agora à partida como momento originário de uma nova experiência republicana, na qual se manifesta e se fixa de modo inequívoco um efeito esquerda. Falo, aqui, do que talvez tenha sido a maior vitória histórica da esquerda brasileira: fixar no centro da tradição republicana, pela letra da Constituição e por suas cláusulas pétreas, alguns dos seus valores fundamentais.

Impõe-se, de modo claro, em tal experiência, a precedência ético-moral e macro-política da Constituição. Esta, pelo seu desenho, arrasta consigo a centralidade de uma comunidade de intérpretes, operadores reais do texto constitucional e instigadores permanentes de sua pregnância no mundo da vida. Tal comunidade, embora não exclua os atores típicos do universo da representação política – v. g., partidos e legislativos – não se limita a eles. Ultrapassa-os em larga medida. Com efeito, o aprendizado cívico exigido pelo marco de 1988 parece exigir um tipo de ativismo social que dispensa os meandros e os rituais da vida partidária e da representação política. A obra de 1988, ainda que tenha deixado intactos os institutos clássicos da representação política, introduz uma não usual coalizão doutrinária entre um liberalismo forte (pela linguagem dos direitos, mais do que pela representação), um vento democratizante (pelas possibilidades de acesso direto ao mundo público), uma conceção de Estado reparador do passivo social e uma não desprezível componente decisionista, presente nas largas atribuições conferidas pela Constituição ao poder executivo.

 

COMENTÁRIO FINAL

No mesmo Discurso, já aqui mencionado, Rousseau decretou que “os estabelecimentos humanos parecem, à primeira vista, fundamentados em montões de areia movediça”. Se perguntarmos sobre os fundamentos dos valores apresentados como fundamentos da demiurgia constitucional de 1988 talvez encontremos algo assemelhado a “montões de areia movediça”. Ali, como em vários momentos da história brasileira pregressa, partiu-se de ficções a respeito da condição originária do país. Se há razões históricas ou fundamentos materiais para tais ficções, não sei dizer. É possível mesmo que aqui, como em tantos outros assuntos humanos, o acaso, pace Tocqueville, tenha feito das suas. Seja como for, a Carta de 1988, assim como o Código de 1932, são inteligíveis pelos seus efeitos, pelas marcas que inscreveram e seguem a inscrever na experiência republicana brasileira.

As novidades substantivas presentes na Carta de 1988, assim como a originalidade do seu ponto de partida, não obliteram o facto de que a tradição de precedência do direito público e constitucional na configuração do país, marca de 1932, ali esteve presente de modo exemplar. Em 1988, assim como em 1932, parece ter operado uma recusa em ver no futuro do país a imagem “daquilo que nos teríamos tornado se tivéssemos sido abandonados a nós mesmos”, em uma transformação do sonho de Rousseau em pesadelo. Para o bem, ou para o mal, segue-se, no Brasil, a inventar o país contra os factos. Trata-se, mesmo, de um país contra-factual.

 

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Recebido a 03-08-2011. Aceite para publicação a 01-08-2012.

 

Notas

1  O presente texto resulta de conferência proferida – sob o mesmo título – durante o ciclo de conferências ICS 2010 – República e Utopia, realizado entre 13 e 15 de outubro de 2010, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Agradeço aos colegas que se ocuparam da apreciação deste texto, pelas valiosas sugestões de correção e aperfeiçoamento.

2 “Historical events tend to transform social relations in ways that could not be fully predicted from the gradual changes that may have made them possible. What makes historical events so importante to theorize is that they reshape history, imparting an unforeseen direction to social development and altering the nature of the causal nexus in whuch social interaction take place” (Sewell, 1996, p. 843).

3  A ideia de conhecimento por antecipação, aqui indicada, distingue-se da apresentada por George Dumézil (1984) em texto, no mínimo curioso, a respeito da profecia de Nostradamus sobre a fuga de Varennes. Para Dumézil, o conhecimento por antecipação assemelha-se à profecia, o que de modo algum é o caso do meu argumento.

4  Procurei desenvolver este ponto, de forma mais extensa, em livro a respeito da invenção da Primeira República brasileira (Lessa, 1999).

5  J. Hillis Miller referiu-se no seu livro, de modo específico, à história da ética: “Whithout storytelling there is no theory of ethics” (Hillis Miller, 1987, p. 3). O ponto, penso, pode ser estendido a todo o esforço narrativo com pretensões fundacionais, tanto no domínio da ética como nos da história política e da filosofia política.

6   José Murilo de Carvalho, após reconhecer, em texto notável, os méritos de Oliveira Vianna como historiador, sugere a presença de uma dimensão ficcional na obra do autor: “Há muito nela de conjectura, de preocupação política, de problemas do presente, de valores, de coração, ao lado do extenso uso de teorias de vária natureza”(Carvalho, 1993, p. 17).

7   O termo “insolidarismo” é uma das marcas conceptuais de Oliveira Vianna. Refere-se à condição original do homo colonialis – dos primeiros ocupantes europeus do país –, imersos em enormes extensões de terra, sem conexões entre si, e sem vida urbana. Tal ecologia social teria favorecido a sedimentação de uma forma social com baixos graus de solidariedade, associativismo e vida cívica. O termo é essencial para o argumento de que o Brasil, pela sua dinâmica social espontânea, não seria capaz de constituir uma comunidade cívica sensível ao tema do interesse público. Tal pessimismo é fundamental, em Oliveira Vianna, para a sustentação da necessidade da demiurgia e da invenção institucional.

8  Não desconheço o traço simplificador e um tanto arbitrário destas marcações na linha do tempo. Jorge Luis Borges, em luminoso ensaio, refere-se ao primeiro homem que teria surgido, não sem acrescentar que muitos o haviam antecipado (Borges, 1970, pp. 31-36). ­Hochman (1998) mostrou de modo persuasivo que as políticas sociais, na esfera do saneamento, desenvolvidas durante a Primeira República brasileira, indicaram um caminho de construção do Estado Nacional distinto dos padrões do particularismo oligárquico e de rarefação da esfera pública. Mas, mesmo levando em conta alguns antecedentes importantes, é possível considerar a Revolução de 1930 como ponto sem retorno na definição da tradição republicana brasileira à qual aludo. A melhor narrativa a respeito da Revolução de 1930 segue sendo a de Barbosa Lima Sobrinho (Sobrinho, 1933).

9  Ainda que haja paralelismo entre os decretos-lei do regime de 1964 e as medidas provisórias da República de 1988, os fundamentos de ambos são bastante distintos.

10  Para uma ótima análise da reflexão de Assis Brasil e do próprio Código de 1932, v. Buarque de Hollanda (2009 e 2012).

11  Telegrama de Assis Brasil, publicado em A Federação, ano XLIX, # 48, 01-03-1932, apud, AITA (2006).

12  Refiro-me à emenda constitucional 25, de 15/05/1985, que realizou uma das mais abrangentes reformas políticas da história recente do país. Além da extensão do direito de voto aos analfabetos, o seu artigo 1.º restabeleceu o princípio das eleições diretas para presidente e vice-presidente e eliminou as restrições à livre organização partidária. O artigo 2.º extinguiu a figura dos “municípios de segurança nacional” e neles restabelece eleições diretas para todos os postos. O artigo 3.º concedeu representação política nacional ao Distrito Federal. O artigo 8.º eliminou o princípio da fidelidade partidária, introduzido pela emenda constitucional de 1969 (art. 35.º, item V) para fins de perda de mandato, e modificou o sistema eleitoral introduzido pela emenda constitucional 22, de 1982, que introduzira o sistema distrital misto. Pela emenda 25, o sistema manteve-se como proporcional, na tradição iniciada em 1932.

13  Retomo, nesta secção, os termos da análise desenvolvida em Lessa (2008a).

14  O termo foi empregado por Luis Werneck Vianna em Werneck Vianna (2002) e por ­Cittadino (2002). A expressão adotada nesse último texto – constitucionalismo democrático – substitui, com vantagens, a de constitucionalismo comunitário, adotada em excelente e incontornável livro, da mesma autora (Cittadino, 1999).

15  Partido do Movimento Democrático Brasileiro, herdeiro do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), partido de oposição legal ao regime militar. Na Constituinte eleita em 1986, o PMDB foi o partido largamente maioritário, com mais de metade das cadeiras.

16  A expressão constitucionalismo societário e comunitário foi utilizada por Carlos Roberto de Siqueira Castro (2005).

17  Cf. A Constituição do Brasil de 1988 Comparada com a Constituição de 1967, São Paulo, Price Waterhouse, 1989, p. 147. O preâmbulo de 1946 não é muito mais extenso – ou denso – do que o de 1967: “Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL”. De qualquer modo, é notável a supressão do propósito de “organizar um regime democrático”.

18 Idem, p. 147.

19 Ibidem, p. 147.

20 A ideia de “fundamento”, tal como definida, não está presente na Carta de 1967.

21 Ao contrário da Constituição de 1967 que restringia o mandato de segurança à proteção de direito líquido e certo, a Carta de 1988 consagra o instituto do mandato de segurança coletivo.

22 Cf. A Constituição do Brasil de 1988 Comparada com a Constituição de 1967, op. cit. p. 190.

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