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Análise Social

versión impresa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.202 Lisboa  2012

 

Ciência para o futuro – a propósito do relatório estratégico do Conselho Científico das Ciências Sociais e das Humanidades1

 

Daniel Melo*

*Centro de História da Cultura, fcsh – Universidade Nova de Lisboa; E-mail: danielseixasmelo@hotmail.com

 

Num momento de crise como o que vivemos, importa ainda mais clarificar o que se considera essencial e debater as soluções possíveis. É consensual a importância da ciência para um desenvolvimento integral; muitos estudiosos consideram-na mesmo prioritária para retirar as sociedades da crise atual. Contudo, os impasses são tais que, se não forem debelados a breve trecho, podem levar a um retrocesso civilizacional.2 Também a ciência que se faz em Portugal não escapa a este contexto crítico. Recentemente, o Conselho Científico das Ciências Sociais e das Humanidades (CCCSH), órgão consultivo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia criado em 2010, elaborou um relatório estratégico sobre o futuro das ciências sociais e humanidades (CCCSH, 2011). Este é uma referência fundamental para abrir o debate.

E é-o por várias razões: por ser um estudo aprofundado, incluindo dezenas de recomendações concretas; por partir da leitura do quadro internacional; por auscultar as 132 unidades de investigação nacionais que abrange; e por contrariar o défice de reflexão estratégica sobre a política científica em Portugal. Tal défice tem especial implicação no papel atribuído à ciência enquanto fator de desenvolvimento sustentável e às vias a seguir para a indispensável renovação científica e rejuvenescimento do pessoal científico, administrativo e técnico.

Durante mais de uma década houve uma política sustentada de aposta na ciência. Deu-se um salto significativo, cujo reconhecimento é unânime. Contudo, a definição de uma avaliação mais equilibrada e aberta ficou aquém do necessário, o mesmo se verificando em relação à renovação do quadro de docentes e investigadores. Ademais, o abuso da figura do bolseiro (para outros fins que não os estritamente formativos) e da figura do docente convidado acentuaram a precariedade na área científica. A encruzilhada atual é pressentida por todos. Por isso, importa usar os fóruns públicos para estimular o debate aberto sobre as políticas públicas, em particular na área da ciência. Ele é essencial para a democracia. E é vital que os decisores continuem a ponderar os contributos avalizados, pois assim se valorizam as políticas públicas. Ignorá-los seria um desperdício e uma irracionalidade política.

Nesse sentido, o relatório do CCCSH sobre o futuro das ciências sociais e humanidades preconiza uma aposta estratégica em seis áreas: 1) internacionalização; 2) salvaguarda do pluralismo; 3) salvaguarda da pluridisciplinaridade; 4) renovação dos processos de avaliação; 5) diversificação da disseminação da produção científica; 6) articulação das políticas científicas nacionais e europeias.

A internacionalização deve apostar na formação avançada, no emprego científico, na qualificação das instituições científicas portuguesas e no financiamento público nacional e europeu. E deve fazê-lo atendendo ao percurso de cada área disciplinar (com as ciências sociais e humanidades mais atrasadas, por défice histórico de apoios públicos). Nesta área, a equipa liderada por José Mattoso realça a importância da promoção do emprego científicode jovens investigadores doutorados, que devia fazer-se mediante incentivos quer à sua contratação por unidades de I&D nacionais, quer à sua integração em redes e parcerias internacionais, quer ainda à sua contratação por empresas intensivas em conhecimento, nacionais e estrangeiras. De igual modo, uma avaliação equilibrada do grau de internacionalização não pode limitar-se à bibliometria (e menos ainda a versões redutoras), mas deverá incluir outros fatores: a meu ver, intercâmbio através de congressos, projetos, publicações, estadias, presença em parcerias e redes internacionais, protocolos interuniversitários para docentes e discentes, presença de autores estrangeiros nas bibliografias insertas nas publicações. Para acentuar tais dimensões, faz sentido reforçar programas oficiais de apoio a alianças preferenciais: por exemplo, com países lusófonos, com o arco mediterrânico, e com países emergentes como a Índia e a China, que têm um longo elo histórico com Portugal. E “facilitar o acesso a infraestruturas internacionais de informação (bases de dados, repertórios bibliográficos, etc.)”.

A garantia do pluralismo de paradigmas, temas de pesquisa e metodologias de análise, mesmo que “contra o poder dos paradigmas mainstream” e os modismos, é condição sine qua non para a liberdade, diversidade e inovação científicas, devendo estar expressamente assegurada aquando da distribuição do financiamento público.

A complexidade dos problemas enfrentados pela “Europa contemporânea” justifica o repto pela pluridisciplinaridade e pelo maior protagonismo das unidades de I&D na candidatura a concursosprojetos desse teor, que mobilizem redes europeias e globais. Nesse quadro, urge reforçar o potencial intramuros com “concursos para temas considerados candentes da sociedade portuguesa” e avaliar os projetos (e centros) em 2 painéis ou num novo painel interdisciplinar (cessando a atual situação penalizadora).

Os processos de avaliação devem ser renovados no sentido de melhorar o aconselhamento no desempenho científico, de definir áreas estratégicas (com concursos próprios), de estimular o impacto socioeconómico do conhecimento gerado, e de valorizar a pesquisa interdisciplinar e a investigação de qualidade publicada em língua portuguesa. Têm igual pertinência as propostas de clarificar a seleção dos painéis da fct, e de lhes conferir maior rotatividade, com a inclusão de “pessoas mais jovens”.

A produção científica deve ser mais disseminada: na divulgação da cultura científica e na transmissão do conhecimento, “estimulando tanto o seu impacto social e económico quanto o seu papel como fator de inovação social”.

A articulação da política científica nacional com a europeia é condição vital para conseguir aprofundar algumas das áreas anteriores, em especial a internacionalização, a pluridisciplinaridade, mas também a diversificação de fontes de financiamento.

Nos seus traços gerais, este texto é suscetível de gerar amplo acordo, permitindo estabelecer um bom quadro de referência para a definição de uma política pública de consenso alargado. Mas outras medidas concretas podem e devem ser acolhidas e debatidas. Avanço com cinco, que de igual modo considero cruciais para o futuro da ciência.

1.Os projetos de I&D financiados anualmente pela fct deviam contemplar a existência de um ou mais investigadores a tempo inteiro à frente dos mesmos. Essa é a via seguida pelo European Research ­Council. Assim se abriria outra porta de emprego científico, se reforçaria a capacidade de planeamento, a estabilidade laboral e, last but not the least, se ampliariam as oportunidades e experiência dos jovens investigadores.

 

2. É da mais elementar justiça pôr termo ao abuso da figura do bolseiro de investigação, limitando a atribuição de bolsas exclusivamente à fase de formação (aí se justificando plenamente, incluindo no grau de mestrado, agora em desinvestimento público); quanto aos pós-doutorados, deviam ter necessariamente um contrato, ainda que a termo certo, pois já desempenham funções equivalentes às dos seus pares, sejam investigadores ou docentes de carreira. Para assegurar um mínimo de proteção social, tanto uns como outros deveriam ter direito ao subsídio de desemprego, em caso de necessidade.

 

3. O investimento na recolha, tratamento e disponibilização de documentação (fundos de entidades públicas, associativas ou privadas, espólios de intelectuais, cientistas ou outras pessoas com fundos considerados de valor) devia ser apoiado do mesmo modo que a construção e manutenção de laboratórios para as ciências naturais. A equiparação destas infraestruturas abrangeria, assim, o apoio financeiro ou logístico a instituições vocacionadas para a recolha e tratamento arquivístico de fundos documentais, em especial de entidades públicas (como a Torre do Tombo, o Centro de Documentação 25 de Abril ou a Biblioteca Nacional de Portugal), as quais necessitam de financiamento complementar para poderem levar a cabo tais tarefas. Também o acesso a bases de dados oficiais como as do ine deveria ser agilizado para efeitos de pesquisa académica justificada, no quadro de uma política de apoio à troca científica entre instituições académicas e outros organismos públicos, associativos e privados.

 

4. Em conexão, e dado que o estado dos arquivos é percecionado como um dos principais entraves à pesquisa nas ciências sociais e humanas3, urge que a fct firme um protocolo com as entidades supervisoras da política arquivística para a elaboração de instrumentos básicos de descrição documental – um guia geral de fundos da administração pública (até hoje inexistente), inventários da documentação intermédia e histórica de cada organismo –, e para se assegurarem as condições mínimas de acesso e consulta, segundo o princípio do arquivo aberto consagrado na Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (de 1993).4

 

5. Também deveria existir mais apoio à proposta de artigos a revistas com arbitragem científica, incluindo a criação de redes de circulação de informação (quais os perfis editoriais, quem são os editores, aviso sobre números temáticos, convites para integração de conselhos redatoriais ou editoriais) e internacionalização de parte das revistas portuguesas (programa próprio de apoio visando todo o tipo de bases de referência: esf, scielo, capes, Aeres, Ceres, Scopus, isi, etc.). Este último ponto é vital para o próprio futuro destas revistas e para dar sentido ao justo investimento que nelas se tem feito ao longo dos últimos anos.

 

Bibliografia

Castelo, C. (2004), “Investigação em ciências sociais e acesso aos documentos da administração pública”, VIII Congresso Nacional de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas, Lisboa, APBAD, comunicação n.º 37.         [ Links ]

CCCSH (2011), Ciências Sociais e Humanidades: Mais Excelência, Maior Impacte, Relatório Final de 28/XII. Disponível em http://www.fct.pt/conselhos_cientificos/docs/rel_final_CCCSH_2011.pdf        [ Links ]

Ferreira, N. (2012), “Se não sairmos da crise em dois anos, vai haver problemas com a ciência portuguesa”. Público, 7-i, p. 10. Disponível em http://www.publico.pt/Ciências/se-nao-sairmos-da-crise-em-dois-anos-vai-haver-problemas-com-a-ciencia-portuguesa-1528040?all=1        [ Links ]

Santos, M. de L.L. dos, pereira, M.H. (coord.) (2003), Diagnóstico aos Arquivos Intermédios da Administração Central, Lisboa, Observatório das Actividades Culturais e Instituto dos Arquivos Nacionais.         [ Links ]

 

Notas

1 Versão revista de texto apresentado na sessão dos 20 anos do Prémio de História Contemporânea Victor de Sá, da Universidade do Minho, em dezembro de 2011.

2 V., por exemplo, a opinião do físico e conselheiro de ciência e tecnologia Jean-Pierre ­Contzen (Ferreira, 2012).

3 Um estudo público com dados de 2001 traça um cenário de grave atraso do Estado central: a esmagadora maioria dos seus organismos não refere na sua lei orgânica que documentação está em fase intermédia (i.e., aquela ainda suscetível de consulta esporádica pela entidade produtora, e em boa parte passível de integrar arquivo definitivo); quase metade não integra a função arquivo nessa mesma lei; ¾ não adjudicam verbas para serviço de arquivo; mais de 70% não têm regulamento arquivístico; perto de 50% não têm inventário da documentação em depósito; e em 74% dos organismos a documentação de conservação permanente mantém-se em depósito, i.e., em local onde não pode ser consultado (Santos e Pereira, 2003). Nesse mesmo ano foi solicitado acesso a mais de metade destes depósitos, em ¾ dos casos pelos próprios serviços e só em 5% dos casos a pedido de investigadores científicos (idem). Porém, os pedidos destes foram maioritários nos arquivos dos ministérios da Defesa Nacional (83%), Negócios Estrangeiros (62%), Ciência e Ensino Superior (56%) e Cultura (45%).

4 Assim se impossibilitando recusas com base no alegado tratamento em curso dos arquivos, uma das desculpas mais em voga, e que sempre serviu apenas para aumentar a arbitrariedade no acesso. Para um aprofundamento destas questões v. Castelo (2004).

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