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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.201 Lisboa out. 2011

 

Devi Sacchetto, Fabbriche Galleggianti: Solitudine e Sfruttamento dei Nuovi Marinai, Milão, Jaca Book, 2009, 292 páginas.

 

João Freire

CIES, ISCTE-IUL

 

Toda a gente sabe que gigantescos navios transportam hoje, constantemente, cargas e mercadorias entre o Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul, e é plausível suspeitar-se que, nos últimos vinte anos, o comércio marítimo mundial se tenha intensificado. Porém, mesmo assim, logo a abrir este livro (e em alguns dos quadros anexos que o encerram), surgem cifras que impressionam: o número de contentores movimentados multiplicou-se por três nessas duas décadas, superando os 417 milhões; o comércio marítimo corresponderá actualmente a cerca de 380 biliões de dólares/ano, qualquer coisa como 15% do valor de todas as trocas mundiais; haverá nos mares e portos de todo o mundo mais de 90 mil navios mercantes (de mais de 100 toneladas de arqueação) com uma mão-de-obra que quase atinge um milhão e duzentas mil pessoas; porém, o mega-porta-contentores Emma Maersk, o maior do mundo, navega com uma tripulação de apenas 13 homens.

Eis um livro de sociologia que nos fala de uma actividade que, no fundo, é pouco conhecida e se mantém geralmente fora da actualidade e das controvérsias sociais, salvo quando ocorre um desastre marítimo de grandes proporções (sobretudo no caso de haver fortes impactos ambientais) ou agora, embora ainda só fugidiamente, com o recrudescimento da pirataria em certas zonas do globo.

O italiano seu autor investigou este tema desde o ano 2000 através de uma sucessão de projectos realizados principalmente a partir de Veneza, onde coligiu registos relativos aos navios e tripulações que frequentavam aquele porto, administrou questionários a mais de meio milhar de marítimos e entrevistou 68 profissionais ligados ao mar, incluindo 15 capitães, 12 oficiais náuticos e 14 outros tripulantes, também alguns estivadores e operadores portuários, fiscais e inspectores, trabalhadores sociais e sindicalistas, agentes marítimos, armadores, etc., de diversas nacionalidades mas com predomínio de italianos, turcos e ainda cidadãos de outros países da Europa do Leste, do Próximo e Médio-Oriente. A base teórica (neo-marxista) em que se apoia revela-se por algumas expressões e conceitos utilizados (a “exploração capitalista do trabalho”, a “submissão à mercadoria”, etc.), e pelas referências discretas a autores de ideologia bem marcada (Sergio Bologna, Moulier-Boutang, Ferrucio Gambino).

Um dos temas fortes analisados, sobretudo a partir de técnicas qualitativas de investigação, é, por um lado, o do isolamento da profissão marítima (isolamento da terra e da sociedade múltipla, mas também, nas circunstâncias actuais, isolamento do marinheiro, do oficial ou do técnico face à própria tripulação, outrora uma comunidade de regras bem estruturadas), e, por outro lado, o da masculinidade que todavia parece persistir neste meio semi-desenraizado, onde as mulheres têm dificuldade em vingar. As duas características são comuns a todos os que andam no mar por necessidade, incluindo operadores de plataformas petrolíferas, pescadores e militares (como nós próprios tivemos já oportunidade de aprofundar em Homens em Fundo Azul Marinho, 2003). Mas os respectivos microssistemas sociais variam consideravelmente entre estas diferentes situações. E é decerto nos navios de carga e de pesca que a pressão da concorrência económica e do lucro dos investidores mais tem incidido para compactar os volumes de mão-de-obra, especializar operações e procedimentos técnicos, reduzir os tempos de paragem. E como as velocidades das embarcações estão estabilizadas, por razões técnicas insuperáveis, tem sido a sua escala que tem sempre crescido, apesar dos riscos.

Contudo, o isolamento marítimo é hoje contraditado e parcialmente compensado pela facilidade de comunicação por meios electrónicos ao dispor dos indivíduos (internet, etc.), que neste caso tendem a reforçar a individualização e a obstaculizar o desenvolvimento de relações directas entre os tripulantes. O isolamento, sobretudo em culturas masculinizadas, arrasta também, por vezes, comportamentos nefastos para a saúde e para o equilíbrio psíquico, como a tendência para o abuso do álcool (e certamente das drogas), pouco detectáveis fora das condições de observação directa (que o autor lamenta serem quase impossíveis, na prática), do exame clínico ou da percepção captada, de longe em longe, por íntimos ou familiares desses “embarcadiços”.

Juntamente com a redução das tripulações, a heterogeneidade do seu recrutamento e a diversidade das suas línguas e culturas de origem reforça a dureza das condições de trabalho a bordo, a que acresce a agressividade do meio natural envolvente: a instabilidade da plataforma; os riscos de queda ou desprendimento de objectos; a perigosidade de certos gestos técnicos; o stress da ansiedade em tantos momentos do desempenho profissional; a “fadiga industrial” das rotinas — e nem se pensa no naufrágio ou no afogamento… A tese de F. A. Cavaco (Human Relation on Board Merchant Ships, Liverpool, 1992) analisa bem estes mecanismos e processos.

Tais condições permitem que os grupos profissionais mais bem colocados na hierarquia da organização náutica e no mercado laboral consigam negociar vantajosamente as suas remunerações e restantes cláusulas contratuais. Mas, para os menos ou pouco qualificados, uma cédula de inscrição marítima não é hoje, necessariamente, um passaporte de embarque e uma garantia de remuneração compensatória, sobretudo com a erosão verificada nas convenções colectivas de trabalho negociadas pelos sindicatos.

Neste livro, o autor coloca justamente alguma ênfase nas condições actuais da regulamentação marítima e da sua fiscalização, através das respectivas autoridades nacionais. E é sublinhada a forma como se vão cavando condições standard e condições sub-standard, entre ramos específicos desta actividade económica, tipos de navios, portos de armamento ou de escala, carreiras, etc. Neste aspecto, a principal limitação metodológica deste estudo — algum confinamento ao tráfego mercantil do Mediterrâneo Oriental e do Mar Negro — pode constituir-se num bom estudo de caso particular, o dos “marinheiros sub-standard” que navegam entre o Adriático e o mar fechado de além-Dardanelos (nas palavras do próprio autor), como exemplo de uma dessas várias segmentações desqualificantes do trabalho humano que proliferam pelos “sete mares” do mundo moderno.

É, em resumo, um bom esforço de pesquisa que nos revela um pouco da esfera social dos “homens do mar”, e que merecia ser seguido por projectos e programas de pesquisa talvez mais amplos e certamente mais apoiados.

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