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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.201 Lisboa out. 2011

 

Maria Inácia Rezola, 25 de Abril. Mitos de uma Revolução, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, 436 páginas.

 

Marco Lisi

FCSH – UNL

 

Não é fácil escrever um livro sobre a transição para a democracia em Portugal, oferecendo um contributo inovador e um olhar diferente sobre os acontecimentos que inauguraram a “terceira vaga” de democratizações. Inúmeros são os estudos que se debruçam sobre o tema, abordando uma pluralidade de aspectos e de tópicos que tornam árdua a tarefa de oferecer algo de novo ao público português. No entanto, o livro 25 de Abril. Mitos de uma Revolução, de Maria Inácia Rezola, responde ao desafio e revela qualidades notáveis sobretudo pela forma como consegue transmitir os principais resultados e divulgar o essencial acerca do conturbado período da instauração democrática.

O livro baseia-se na investigação desenvolvida pela autora durante a sua tese de doutoramento relativa ao papel dos militares na transição para a democracia. A tese foi depois adaptada, dando origem ao livro Os militares na Revolução de Abril (Campo da comunicação), publicado em 2006. É a partir desse texto que a autora publica este novo livro com o objectivo explícito de alargar os potenciais leitores, destinando a obra a um público menos familiarizado com os acontecimentos da transição portuguesa. Neste sentido, o livro combina de forma eficaz novos dados —baseados nos documentos do Conselho da Revolução e nas entrevistas realizadas pela autora aos militares — com uma revisão da literatura existente, e com uma consulta extensiva à imprensa da época, fazendo o “ponto da situação” dos estudos sobre a instauração da democracia em Portugal.

O título do livro remete para um questão recorrente nos períodos de “fundação” de novos regimes: muitas vezes a interpretação sobre determinados acontecimentos dá origem a mitos sem correspondência directa com a realidade histórica, mas que funcionam apenas como legitimação de actores, forças políticas ou instituições. Só através de um maior número de documentos e investigações, por um lado, e de uma maior distância histórica sobre o passado, por outro,>  se torna possível finalmente separar o mito dos factos reais. A este livro subjaz a ideia de que chegou a altura de fazer um “novo” balanço da transição portuguesa. Através dos testemunhos recolhidos e da maior disponibilidade de documentos, torna-se agora possível rever alguns mitos sobre a instauração da democracia portuguesa.

Ao fazer uma apreciação geral desta obra, é oportuno, antes de mais, sublinhar o contributo do livro em relação à obra anterior da autora. Em primeiro lugar, este livro tem o mérito de apresentar de forma mais sintética e analítica as principais etapas do processo de transição democrática sem, contudo, perder o rigor científico e a profundidade da análise que caracterizam a obra anterior. Em segundo lugar, para além da ênfase atribuída ao papel dos militares e aos acontecimentos que estes protagonizaram, o livro apresenta ainda outro aspecto positivo, que consiste na apreciação e discussão de outros elementos da transição não directamente tratados na obra anterior. Neste sentido, é atribuído mais espaço ao papel dos partidos na democratização e, em particular, à relação destes com a elite militar. Mas considera-se também o papel dos actores da “sociedade civil” propriamente dita, como, por exemplo, o amplo movimento das massas. Deste ponto de vista, embora esta análise seja inevitavelmente mais superficial, limitando-se a poucos (mas essenciais) contributos, esta escolha permite-nos ter um quadro mais global e completo do processo de transição. Este contributo emerge sobretudo na segunda parte do livro, onde é feita uma síntese dos principais acontecimentos não directamente relacionados com a esfera político-institucional.

A lógica da narrativa segue uma ordem essencialmente cronológica. Neste sentido, o texto acompanha a evolução dos acontecimentos, estruturando-se em três partes. A primeira vai do 25 de Abril até ao 28 de Setembro, a segunda abrange o período que vai da demissão de Spínola até ao 25 de Novembro, enquanto a última parte se estende até às primeiras eleições presidenciais. A decisão de alargar o período em exame face à obra anterior — que termina com o 25 de Novembro — parece-nos legítima e oportuna. Se, por um lado, é com o 25 de Novembro que se fecha o período revolucionário, por outro, é apenas com a entrada em vigor da Constituição que se realiza a plena instauração do novo regime democrático. Porém, este é um período normalmente negligenciado — senão completamente ignorado — pela maioria dos estudos sobre a transição portuguesa.

Quais, então, os mitos da revolução que o livro procura analisar e clarificar? É impossível debruçar-nos sobre todos os pontos controversos que a autora elucida ao longo da sua investigação. Iremos, portanto, abordar algumas questões que nos parecem mais salientes e mais inovadoras à luz da historiografia e dos testemunhos disponíveis sobre este período crucial. Ao fazer uma selecção dos principais tópicos, deixaremos de lado sobretudo a terceira parte do livro, que se ocupa do período entre o 25 de Novembro e as primeiras eleições presidenciais. Esta é a fase da transição relativamente menos controversa, mas nem por isso menos importante. Aqui convém apenas sublinhar que o contributo principal do livro se refere à elaboração da arquitectura institucional, sobretudo no que diz respeito aos poderes do Conselho da Revolução e do Presidente da República.

A primeira parte debruça-se sobre os cinco meses que se seguiram à queda do regime autoritário. O ponto central que a autora sublinha várias vezes é que a principal característica do programa do MFA era a sua indefinição. Por outras palavras, para além do derrube do regime autoritário não havia uma ideia clara do tipo de regime a instaurar. Este facto foi obviamente explorado por Spínola na tentativa de influenciar a distribuição interna do poder a seu favor, como emerge claramente com o fracassado “golpe de Estado constitucional”. Apesar do controlo sobre a Junta de Salvação Nacional, Spínola terá vários episódios de conflito com a Comissão Coordenadora do MFA até à sua demissão, no seguimento da manifestação da “maioria silenciosa”. Sem ter nenhuma pretensão de exaustividade, a autora reconstrói sinteticamente os principais acontecimentos, privilegiando a descrição da arquitectura institucional em detrimento das questões mais estritamente políticas como, por exemplo, o processo de descolonização.

A segunda parte do livro ocupa-se do período crucial da transição, apresentando vários pontos controversos que ainda hoje permanecem objecto de debate e de interpretações divergentes. Um dos pontos mais interessantes — já abordado no livro anterior — diz respeito ao processo de institucionalização do MFA. A tese predominante na historiografia é a de que o MFA garantiu o seu papel a nível institucional em troca da realização das eleições para a Assembleia constituinte. Deste ponto de vista, os partidos teriam sido obrigados a aceitar a permanência dos militares na vida política para poderem disputar as primeiras eleições. Esta tese é matizada pela autora, que afirma não ter sido este o factor essencial. É preciso ter em consideração “o facto de, publicamente, o MFA sempre ter garantido o cumprimento da sua promessa relativamente à realização das eleições” (p. 153). Por outro lado, os principais partidos não se manifestaram contra a hipótese de os militares continuarem na vida política do país. O caso mais evidente é o do PCP que sempre apoiou as propostas de institucionalização avançadas pelos militares. Neste ponto, porém, ficou por explorar a orientação das outras forças políticas que apresentavam posições de longe menos consistentes e mais conflituais.

Há outros momentos do processo revolucionário que ainda ficaram na sombra ou com interrogações. O objectivo do livro não é, propriamente, “desvendar” todos os mitos criados sobre a transição portuguesa, mas simplesmente oferecer uma panorâmica das diferentes interpretações e confrontá-las, para depois avaliar melhor as teses existentes. É neste sentido que a autora lida com alguns episódios cruciais do processo revolucionário, nomeadamente os casos do jornal República e da rádio Renascença. Através da ampla documentação consultada, temos neste livro uma visão sintética e, ao mesmo tempo, exaustiva, dos argumentos que foram avançados pelos vários autores que se ocuparam destes temas.

Neste contexto, um lugar de particular destaque é atribuído, justamente, aos acontecimentos em torno do 25 de Novembro. Justamente porque ainda hoje não há uma versão definitiva que esclareça o papel dos diversos actores envolvidos neste episódio. O livro não dá uma interpretação particularmente original em relação a estudos anteriores, mas tem o mérito de apresentar os diversos — e, por vezes, contraditórios — argumentos e confirmar as interpretações que dificilmente parecem discutíveis. A primeira evidência é o papel fundamental desempenhado por Costa Gomes ao evitar a radicalização dos conflitos entre as forças político-militares. O segundo ponto que parece evidente é a preparação de um plano bem definido por parte do “grupo dos nove”. Há aqui, contudo, uma revisão da tese prevalecente na literatura até hoje: o plano accionado pelos militares moderados não terá sido apenas defensivo, mas também ofensivo, com o objectivo de restabelecer o ordem militar interna e marginalizar as forças mais radicais.

Ainda em relação ao 25 de Novembro, a controvérsia mais interessante permanece, até hoje, a que diz respeito ao papel desempenhado pelo PCP e pelas forças da esquerda radical nas movimentações daquelas horas dramáticas. Se, por um lado, parece evidente que a estratégia não foi sempre isenta de ambiguidades, a autora podia ter ido mais longe, avançando hipóteses alternativas que permitissem explicar a acção deste partido. Qual a relação do PCP com os diferentes actores militares que participaram no 25 de Novembro? Houve dentro do partido sectores mais difíceis de controlar que podem explicar a ambiguidade da sua estratégia? Qual é a origem da falta de coordenação entre o PCP e a esquerda mais radical? Há, portanto, “mitos” que ainda permanecem ao percorrer a história da instauração da democracia portuguesa.

Dois pontos em particular podem ser referidos como exemplos das controvérsias que dividem os autores sobre este período. O primeiro refere-se à interpretação dos vários documentos surgidos durante o “Verão quente”. Qual é o sentido e a lógica dos diferentes textos apresentados pelos militares? Quais as suas consequências ao nível político-militar? Neste aspecto a autora, para além da apresentação do conteúdo destes documentos, podia ter oferecido uma visão mais crítica e aprofundada. O argumento principal parece basear-se na ineficácia e incapacidade de acção do Conselho da Revolução (p. 176). Mas há causas mais profundas que podem ter determinado esta situação como, por exemplo, a influência de algumas forças políticas ou das movimentações populares daquele período. Uma análise mais detalhada sobre a formulação destes documentos, sobre o processo de negociação entre militares e partidos, e sobre as suas consequências seria oportuna para explicar não apenas o conteúdo mas também o momento particular em que surgiram. Este seria um contributo importante para uma compreensão mais aprofundada do processo revolucionário.

O segundo ponto que ainda oferece interpretações divergentes prende-se com o papel dos partidos. Apesar da crescente disponibilidade de documentos e testemunhos, há muitos aspectos que ainda permanecem por esclarecer. Por exemplo, a influência do PCP (mas também das outras forças políticas) sobre os diferentes sectores militares, ou a evolução da relação entre comunistas e socialistas. Neste sentido, talvez o ponto mais controverso seja o papel desempenhado pelo MDP ao longo da transição para a democracia. Este é um aspecto constantemente negligenciado pelos estudos sobre este período, apesar da importância deste partido, não apenas em relação a determinados grupos militares, mas também ao PCP.

Independentemente destas limitações, este estudo contribui não apenas para esclarecer alguns aspectos essenciais do processo de transição democrática, mas também para apontar alguns tópicos que podem ser explorados em investigações futuras. Um, por exemplo, incide sobre a relação entre a Igreja e os grupos da extrema-direita e a acção desenvolvida sobretudo no Norte do país durante o período do “Verão quente”. A interacção entre grupos organizados, militares e membros da Igreja pode elucidar melhor não apenas o processo de mobilização, mas também a relevância da questão religiosa na sociedade portuguesa, e a sua articulação entre a sociedade e as elites políticas.

A intervenção da Igreja e a mobilização nas zonas rurais do país estão relacionadas também com outro aspecto que falta explorar. Trata-se da ligação entre os movimentos populares e as organizações político-militares. Como reconhece a autora, estas dinâmicas constituíram um dos traços essenciais do processo revolucionário português. Se a literatura tem evidenciado a autonomia destes movimentos na primeira fase da transição — que se estende, grosso modo, até ao 11 de Março —, mais complicado é estabelecer o tipo de interacção entre movimentos sociais e forças político-militares no período sucessivo. Este é um campo em que ainda são escassos os estudos sistemáticos e inovadores que possam caracterizar a experiência portuguesa. É certo que o poder popular constituiu um aspecto fundamental (e original) do processo revolucionário, mas não existem indicações das consequências deste tipo de mobilização ao nível do poder político e militar, nem do seu impacto sobre as características do novo regime democrático (por exemplo em termos dos direitos sociais consagrados na Constituição).

Por fim, o livro constitui uma obra de referência para os leitores que querem ter uma análise global e exaustiva da transição democrática em Portugal, sobretudo pelas informações e pelas fontes utilizadas. Uma breve contextualização deste processo à luz das democratizações da “terceira vaga” constituiria talvez um ulterior contributo do livro. A comparação com outros processos de transição poderia ter ajudado a perceber melhor o papel dos militares e a trajectória da instauração do novo regime. Trata-se, contudo, de uma excelente obra para a compreensão de um dos mais agitados períodos da história contemporânea portuguesa e de um processo bem sucedido de instauração de uma nova democracia.

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