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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.201 Lisboa out. 2011

 

Ana Cabana Iglesia, Xente de Orde. O Consentimento ao Franquismo en Galicia, Santa Comba (A Coruña), tresCtres Editores, 2009, 303 páginas.

 

Guya Accornero

CIES, ISCTE, IUL

 

Ana Cabana Iglesia doutorou-se em história na Universidade de Santiago de Compostela (USC), instituição em que é actualmente professora de história contemporânea e da América. Este livro representa uma parte da sua tese de doutoramento intitulada Entre a Resistência e a Adaptacion. A Sociedade Rural Galega no Franquismo 1936-1960, tese como a qual recebeu o “Prémio Extraordinario de Doutoramento”.

O trabalho de Ana Cabana insere-se num projecto de investigação conduzido pelo grupo de história agrária da USC, começado no início dos anos 90, cujo objectivo principal é, por um lado, o de investigar os fundamentos da estrutura franquista, como as hermandandes, e, por outro, o de analisar os mecanismos utilizados na construção do consenso e os conflitos latentes, indicativos de algumas formas de resistência. Como salienta Lourenzo Fernando Prieto no prefácio do livro, este programa, para o qual Ana Cabana Iglesia contribuiu de forma decisiva, visa sobretudo reconstruir a forma como a ditadura se implantou “depois da repressão que seguiu a um golpe que em Galícia não foi guerra aberta”.

Uma das vantagens evidentes do texto é a sua clareza expositiva, quer na explicação dos conceitos, quer na própria estrutura e organização dos assuntos. Antes de mais, a autora traça uma panorâmica dos estudos sobre repressão e consenso relativos a outros casos (alemão e italiano, sobretudo) e dos conceitos que estão na base destas análises, chegando a considerar que o termo “consenso”, elaborado para estudar regimes democráticos, apresenta algumas dificuldades de aplicação no caso de regimes autoritários. Ana Cabana Iglesia considera mais apropriado o emprego do termo “consentimento”, especificando que “o conceito de consenso está mais próximo ao que podemos denominar ‘afinidade ideológica’, ou ‘acordo’ com o sistema político”, enquanto a expressão “consentimento” compreende também “aspectos como a obediência habitual, os custos de oportunidade, os incentivos e as pressões” (p. 42).

Na debate italiano sobre o consenso no fascismo, o primeiro estudioso a “abrir as portas” à análise sobre as atitudes populares face ao franquismo foi mesmo um italiano, Francesco Barbagallo, no final dos anos 80. Na perspectiva de que o consenso (neste caso, o consentimento) e a violência política representam as duas principais formas de um regime construir a sua própria legitimação, como já evidenciava Weber (1994) indicando os dois pólos de Macht e Herrschaft, a autora introduz o seu estudo sobre o consentimento na Galiza com um quadro da repressão vivida pela população na fase de instalação do regime franquista. Ana Cabana Iglesia evidencia que o embate da violência nesta região foi também mais incisivo por não ser compensado pela presença de formas de militância ou de resistência organizada, pelo que a população passou quase directamente da repressão à adaptação.

Esta adaptação assumiu várias formas, que a autora estuda sobretudo através de entrevistas e arquivos dos governos civis. A primeira forma, chamada “colaboração-realismo”, é explicada com a exigência de regresso à “normalidade” da população, depois das violências e dramas da guerra civil, embora baseada na vigilância contínua e na permanência de um clima de terror e controlo. Todavia, esta adaptação podia esconder em si um mecanismo de resistência, ainda que, tratando-se de “resistência individual”, dificilmente pudesse dar lugar a uma acção de oposição organizada.

A segunda forma é a “colaboração-conveniência”, típica dos que, aproveitando a situação, conseguem alguma vantagem. É o caso, por exemplo, dos grandes contrabandistas, que, com alguma protecção do regime, alcançaram grandes fortunas aproveitando-se das condições de fome, pobreza e falta de alimentos.

Enfim, há ainda a “colaboração-providência”, caracterizada por uma qualquer adesão aos valores do regime. Esta colaboração é conseguida pelas instituições através de três diferentes estratégias e pode efectivar-se (ou não) em atitudes de verdadeira participação nas fileiras do regime. A primeira estratégia é a manipulação ideológica, ou seja a propaganda, com vista a recriar a realidade e a destruir a imagem dos inimigos. A segunda é a inculcação de modelos, sobretudo através da educação; e a terceira a promoção de “obras sociais”. Outros caminhos através dos quais os cidadãos podiam chegar a acreditar no regime podia ser a participação na guerra, que favoreceu o enraizamento de uma visão dicotómica amigo-inimigo e, enfim, a dificuldade por parte dos cidadãos desprovidos de cultura política de se porem em contraste com a “legalidade”, ainda que se tratasse de uma legalidade que transgredia os direitos fundamentais.1

Por último, é analisada a atitude de colaboração mais extrema, ou seja a “denúncia”. A autora observa que este tipo de comportamento, bastante frequente, raramente era baseado em convicções ideológicas. Muitas vezes, os delatores eram motivados por questões de vingança pessoal (relacionadas com outros casos), tratando-se de cidadãos que tiveram alguma ligação com a “esquerda” e que procuravam desta forma “limpar” a sua própria posição a respeito do regime e do próprio passado, chegando mesmo a denunciar excamaradas. Neste quadro, como salienta a autora nas conclusões, no domínio do consentimento não parecia existir espaço para à oposição, mas apenas para formas individuais de mal-estar.

Ana Cabana Iglesia mantém uma atitude atenta às nuances e às sombras da realidade, em que a análise dos fenómenos é olhada na sua complexidade e nunca de forma unívoca. Assim, por exemplo, o interesse pelas temáticas relativas à violência política “de cima para baixo”, que foram determinantes na instalação do franquismo e na sua consolidação, entrelaçam-se com a atenção concedida às questões sobre as formas como a sociedade reagiu e as suas várias atitudes de consenso (o melhor, “consentimento”, para usar o conceito da autora) e de resistência. Mas não só: todos estes conceitos se ligam, de um nasce o outro, sem que se possa desligar completamente o momento da repressão, do consentimento e da resistência. Todos estes mecanismos, repressão, consentimento, resistência, são analisados na sua real fenomenologia, descrevendo um espectro de comportamentos sociais multifacetado e complexo. A análise da tentativa por parte das instituições de “penetrar” a sociedade civil, através da construção do consenso ou da violência, corre assim paralela à análise do modo como a sociedade civil desenvolveu formas de resistência ou de consentimento, sendo esta resposta social sempre colocada, também, em relação com as condições preexistentes, como a cultura política ou outras condições ambientais de cariz social ou económico.

Embora a autora não acene a esta literatura, o seu trabalho reflecte, de facto, a evolução que a teoria dos movimentos sociais tem conhecido nos últimos anos. Se um dos conceitos-chave para estudar a emergência da acção colectiva, ou da resistência individual, foi durante muitos anos o de “estrutura das oportunidades políticas” (EOP) — que, na sua versão clássica, vê as instituições e os movimentos como dois elementos separados e em oposição — a nova geração que se dedica a estas temáticas tem uma visão mais matizada e complexa e, com efeito, o conceito de EOP, normalmente aplicado a sistemas democráticos, começou também a ser utilizados para analisar contextos autoritários.2

Este livro é, portanto, um trabalho muito original e que utiliza de forma ecléctica, mas pertinente, instrumentos teóricos-metodológicos de diferentes disciplinas, como a sociologia dos movimentos sociais, a ciência política, a teoria historiográfica. Por outro lado, é mesmo no plano historiográfico que se evidenciam, na nossa opinião, algumas fraquezas relativas. Antes de mais, parece em parte superficial a reflexão sobre o debate historiográfico italiano em relação à questão do consenso no fascismo. Se a autora afirma que em Itália existe uma concordância entre os historiadores em conferir um papel preponderante ao elemento do consenso em relação ao da violência durante o vinténio, sobretudo a partir dos estudos de De Felice, de facto a situação é muito mais complexa e existe um debate aceso sobre este ponto que não envolve apenas os historiadores, mas sim também a sociedade civil e os media. Por outro lado, a própria definição de De Felice como “revisionista” é muito problemática e não é partilhada por todos os historiadores. É claro que dada a natureza do seu trabalho, a autora não podia aprofundar esta discussão, mas uma vez que conferiu às questões aí debatidas um papel importante, também em relação à historiografia espanhola nos parece que transmitir uma visão menos estereotipada teria sido mais frutuoso.

Por outro lado, na nossa opinião, o trabalho da autora podia ter em maior consideração os estudos desenvolvidos sobre o caso português, como, por exemplo, o trabalho de Goffredo Adinolfi (2007) sobre a propaganda e o consenso no salazarismo, que utilizando instrumentos analíticos e fontes semelhantes, podia fornecer uma boa base de comparação.

 

Bibliografia

Adinolfi, G. (2007), Ai Confini del Fascismo Propaganda e Consenso nel Portogallo Salazarista (1932-1944), Milão, Franco Angeli.         [ Links ]

Dorronsoro, G. (2005), La Turquie conteste. Mobilisation sociales et régimes sécuritaires, Paris, CNRS Éditions.         [ Links ]

Maravall, J. M. (1975), Dictadura y Disentimiento Político: Obreros y Estudiantes Bajo el Franquismo, Alfaguara, Madrid.         [ Links ]

Weber, M. (1994), Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva, Brasília, DF, Editora Universidade de Brasília.         [ Links ]

 

Notas:

1 Os custos morais e sociais, inerentes à assunção de uma posição de dissidência num contexto autoritário, foram também salientados claramente por José Maria Maravall (1975, p. 191), que afirma: “converter-se num dissidente político num contexto político nãodemocrático pode ser interpretado como um processo semelhante ao de se converter em ‘desviado’”.

2 V., por exemplo, o estudo de Dorronsoro (2005) sobre o caso turco.

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