SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número197The struggle for the World. Liberation movements for the 21th CenturyUnfolding Lives: Youth, Gender and Change índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.197 Lisboa  2010

 

Irene Flunser Pimentel, Cardeal Cerejeira: O Príncipe da Igreja, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010, 361 páginas.

Rita Almeida de Carvalho, António Oliveira Salazar, Manuel Gonçalves Cerejeira: Correspondência 1928-1968, Lisboa, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2010, 323 páginas.

 

Paula Borges Santos

IHC/FCSH, Universidade Nova de Lisboa

 

Com um intervalo de poucos meses, foram publicadas duas obras que se ocupam da figura histórica do cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira (MGC), que presidiu aos destinos da Igreja Católica portuguesa durante o período da ditadura militar (a partir de 1928) e do Estado Novo (com excepção dos três últimos anos do regime).

No seu livro, Irene Pimentel traça a biografia de MGC, desenvolvendo o estudo que já publicara na Fotobiografia do Cardeal Cerejeira (Pimentel, 2002), no qual ilustra, com 50 fotografias, os momentos mais significativos do percurso eclesiástico daquela personalidade. Uma breve cronologia da vida de MGC (n. 1888, m. 1977) encerra a publicação. Já Rita Carvalho publica a correspondência trocada entre MGC e Oliveira Salazar, relativa ao período em que ambos são, respectivamente, patriarca de Lisboa e presidente do Conselho de Ministros. No volume, que é uma edição crítica de fontes, resultante de um projecto de investigação sobre “Salazar e os seus correspondentes”, desenvolvido no âmbito do Instituto de História Contemporânea, pode ler-se também uma biografia de MGC e uma cronologia relativa aos anos de 1878 a 1977.

Para além de a reflexão historiográfica em torno do bispo de Lisboa ser comum aos dois livros, também a investigação que lhes subjaz obriga a que sejam relacionados. Logo na p. 14 Pimentel explica que, no seu trabalho, elegeu como fontes principais a obra de MGC e a correspondência trocada entre o prelado e Salazar. A propósito desta última, a autora agradece a Rita Carvalho a “enorme generosidade” com que “se prestou a enviar-me a versão ainda não editada de um livro de sua autoria que está no prelo”. O gesto de Carvalho, que envolveu a obra da sua responsabilidade que aqui se comenta, e a frutífera colaboração, gerada por essa via, entre as duas autoras merecem ser destacados e saudados, quanto mais não seja pela sua raridade no meio académico português.

A questão das fontes utilizadas pelas investigadoras não impediu que os livros sejam, entre si, completamente distintos. Este é, aliás, um caso exemplar de quão importante é a edição crítica de fontes e da sua fecundidade para investigações posteriores sobre as mesmas. Quanto às biografias de MGC contidas num e noutro volume, interessa sobretudo reflectir sobre o que representam individualmente e qual o contributo que acrescentam aos estudos já editados sobre MGC, em particular à biografia do patriarca de Lisboa redigida por Luís Salgado de Matos (Matos, 1999), dado que os restantes trabalhos (com destaque para Neves, 1988, e Mafra, 1997) têm um carácter predominantemente memorialista.

Na sua biografia de MGC, Irene Pimentel assume que lhe importa tratar apenas a vida pública do biografado, em detrimento da sua vida privada e, em particular, do impacto político da sua acção eclesial, donde resulta que é no âmbito das relações entre o Estado português e a Igreja Católica portuguesa que a autora desenvolve a sua reflexão. Privilegia a análise da relação entre MGC e Salazar, dialogando sobretudo com a convicção, tida em vastos sectores da sociedade portuguesa contemporânea e expressa já em vários trabalhos universitários, de que a relação entre aqueles dois actores históricos foi de uma proximidade e cumplicidade que, alegadamente, permitiu a subordinação da Igreja Católica ao Estado durante todo o magistério do cardeal Cerejeira. Destaca, porém, a atitude de independência que presidiu àquele relacionamento, num comportamento mantido de parte a parte, e sublinha que tanto MGC como Salazar eram defensores da separação do Estado da Igreja Católica.

Apesar de revelar a divergência das posições entre os dois homens quanto ao papel e ao lugar da Igreja Católica na sociedade e face ao Estado, nomeadamente nas questões relativas à educação, à regulação dos casamentos ou à assistência, e de afirmar que a Igreja portuguesa revelou sempre um perfil adaptativo face às circunstâncias políticas, como forma de garantir influência no tecido social, Pimentel conclui (p. 280) que MGC “tomou realmente o partido do Estado Novo”. E tomou-o ainda que por essa posição tenha conflituado quer com católicos que pretendiam a cristianização do regime, quer com elementos do “progressismo católico” em dissensão com as autoridades políticas e religiosas. Mais do que trazer novos elementos sobre o biografado ou do que propor uma nova leitura sobre o mesmo, a autora faz uma boa síntese sobre uma personalidade controversa, cuidando de integrar os contributos das mais recentes investigações sobre MGC e as relações Estado/Igreja Católica. Ainda que opte por não tomar posição ante algumas questões que têm dividido os investigadores, preferindo fazer um balanço do que foi dito até ao momento presente, a obra de Pimentel tem mérito pela divulgação que faz de uma temática complexa, num formato e numa edição que podem ser atractivos para o público mais generalista. Registe-se apenas que, embora assinale muito bem as diferentes conjunturas em que inscreve a acção de MGC, Pimentel subtrai em excesso a dimensão de conflito que existiu no relacionamento entre as autoridades públicas e religiosas entre 1928 e 1933, quase fornecendo a impressão (não verdadeira) de que a Igreja Católica tinha já praticamente satisfeitas todas as suas reivindicações (face à situação criada pela Lei de Separação de 1911) no começo do Estado Novo.

Rita Carvalho, por sua vez, depois de assinalar que os encontros entre MGC e Salazar não foram frequentes e que a correspondência entre os dois não é abundante, desenvolve uma curta biografia do prelado. A narrativa não se relaciona com a acção do cardeal Cerejeira, que ressalta das cartas que trocou com o chefe do governo. Tão-pouco percorre equitativamente a vida e a obra de MGC, optando a autora por se centrar na problemática da nomeação daquele para patriarca de Lisboa, utilizando fontes do arquivo secreto do Vaticano (que Pimentel também incorporou no seu estudo). Ficam, assim, a conhecer-se algumas posições nesse processo, designadamente da Secretaria de Estado da Santa Sé, da diplomacia vaticana e portuguesa e de alguns bispos portugueses. O valor da investigação não invalida, todavia, que se lamente o facto de Carvalho não ter investido numa caracterização da relação de MGC e Salazar a partir da relação epistolar que estabeleceram, que fica por fazer. Teria também sido interessante que a autora tivesse marcado posição face ao trabalho pioneiro de Duncan Simpson (Simpson, 2009) sobre esse mesmo processo de nomeação de MGC, onde o autor defende, utilizando as mesmas fontes, que o prelado foi escolhido pelo Vaticano dada a sua relação com Salazar. Nesta biografia, MGC figura como um bispo obediente às directrizes de Roma e preocupado com a estabilização das relações entre o Estado e a Igreja Católica, um reformador que perde fôlego no pós-Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, no pós-Concílio Vaticano II e que contribuiu para a “aura providencialista” que rodeou Salazar. A autora não confere destaque à questão do apoio dado ou não por MGC ao regime, preferindo apresentá-lo como um homem que pretendeu defender os interesses da Igreja Católica portuguesa.

Como nota final, seja-me permitido considerar que tanto Irene Pimentel como Rita Carvalho poderiam ter valorizado um pouco mais a biografia de MGC da autoria de Luís Salgado de Matos, sobretudo na medida em que esta é bastante mais completa em informação sobre a acção pastoral do patriarca. Tanto mais que as autoras recuperam a análise de Matos nas principais definições que fornecem daquela figura da Igreja e concluem pelos mesmos marcos (políticos e eclesiais) na vida do bispo de Lisboa.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons