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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.195 Lisboa  2010

 

Da sodomita à lésbica: o género nas representações do homo-erotismo feminino

 

Ana Maria Brandão*

*Departamento de Sociologia, ICS, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057, Braga, Portugal. e-mail: anabrandao@ics.uminho.pt

 

Partindo de uma análise dos discursos jurídicos e clínicos produzidos em Portugal acerca do homo-erotismo feminino na transição do século xix para o século xx, pretende-se dar conta do modo como este começou por ser definido em estreita articulação com o género, desembocando numa representação da lésbica enquanto mulher máscula. À semelhança de outras sociedades europeias, também em Portugal a estabilização dos sistemas classificatórios propostos pela então emergente sexologia foi acompanhada por dificuldades em traçar claramente as fronteiras entre as novas categorias sexuais e as apropriações externas ao seu campo de produção, impedindo uma leitura linear dos seus conteúdos.

Palavras-chave: lesbianismo; identidade sexual; identidade de género.

 

From the sodomite to the lesbian: gender in the representations of female homo-eroticism

Based on an analysis of the juridical and clinical discourses about female homo-eroticism produced in Portugal during the transition from the 19th to the 20th century, this article highlights the way it began to be closely aligned with gender, leading to a representation of the lesbian as a mannish woman. As in other European societies, in Portugal the crystallization of classification systems emerging along with sexology struggled to clearly define the boundaries between the new sexual categories and their use by others outside the scope of their origin, clouding a clear reading of their contents.

Keywords: lesbianism; sexual identity; gender identity.

 

INTRODUÇÃO

As representações dominantes da feminilidade têm-se organizado em torno de duas imagens extremas: a da voracidade sexual e da lascívia da mulher caída e a da assexualidade da mulher respeitável. A actividade sexual tem sido definida como domínio masculino, sendo a sexualidade masculina assumida como modelo universal da sexualidade e o coito como o acto sexual por excelência. Este entendimento da relação entre sexualidade e género e a ideia de que o género se organiza num binário são essenciais para se perceber os modos de representar o homo-erotismo1 feminino. Sendo o género comummente associado ao exercício da sexualidade, as atitudes face ao homo-erotismo feminino parecem ter oscilado sempre entre a condenação de uma luxúria exclusivamente feminina e a descrença na autonomia sexual das mulheres. Paralelamente, a concepção binária do género tem sustentado uma leitura da lésbica como mulher máscula.

Apesar das inúmeras referências históricas a mulheres que mantiveram ligações emocionais fortes com outras mulheres, a possibilidade de haver uma sexualidade específica e exclusivamente feminina parece ter sempre baralhado os observadores. As suas descrições revelam a dificuldade em conciliar a crença no princípio da passividade feminina e a possibilidade de as mulheres se poderem envolver em práticas sexuais na ausência do que é entendido como a sua condição indispensável, o falo.

Neste artigo pretende-se dar conta do modo como o homo-erotismo feminino tem sido definido em estreita articulação com o género, com particular incidência nos discursos jurídicos e clínicos, contribuindo para o aparecimento da categoria social da lésbica, definida pela sua suposta “masculinidade”. À semelhança do que acontece noutras sociedades europeias, é possível verificar que também em Portugal a estabilização das categorias classificatórias propostas pela sexologia entre os séculos xix e xx foi acompanhada por dificuldades em traçar as suas fronteiras de forma clara e por apropriações externas ao seu campo de produção, que impedem uma leitura linear dos seus conteúdos.

 

EXISTIRÁ SEXO ENTRE MULHERES?

Até ao aparecimento do primeiro Código Penal Português, em 1852, as práticas sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, subsumidas na figura lata da sodomia, eram condenadas pelas Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1512) e Filipinas (1603), bem como pelas Leis Extravagantes. À sodomia estavam reservadas as penas mais graves de todos os crimes sexuais contemplados nas Ordenações, que incluíam também o travestismo e o uso de máscaras, a “molícia” e a bestialidade (Aguiar, 1926, 1930; Braga, 1994; Dias, 1989).

Além das Ordenações, as práticas sexuais eram reguladas pelos regimentos da Igreja, aplicados pela Inquisição, que parecia ter especial interesse na perseguição do “pecado nefando”, expressão aplicável a diversas práticas não reprodutivas contidas na noção de sodomia. A pena de morte seria aplicada aos condenados por sodomia apenas quando ocorresse “grave escândalo público” e à terceira reincidência, a partir da qual os indivíduos eram considerados “incorrigíveis”. Em alternativa, havia penas de degredo e açoite, mas, ao contrário dos homens, em princípio as mulheres condenadas “ouviria[m] a sentença na sala da Inquisição, não indo ao auto público de fé pelo grande escândalo que daí resultaria” (Aguiar, 1930, p. 9). Segundo Mott (1987, p. 30), são raros os processos contra mulheres por práticas homossexuais existentes na Torre do Tombo, não havendo registo de nenhuma condenada que tivesse sido queimada pela Inquisição.

Com as Ordenações Manuelinas estabelece-se, pela primeira vez, uma pena expressamente dirigida às práticas sexuais entre mulheres, na sequência de incertezas quanto ao texto das Ordenações Afonsinas, que as não mencionava explicitamente (Aguiar, 1926, pp. 520-521). Com efeito, em 1499, no reinado de D. Manuel, havia já sido promulgado um assento régio com o objectivo de esclarecer se as penas estabelecidas nas Ordenações para a sodomia se aplicariam ou não aos actos sexuais entre mulheres e a ambas as envolvidas (Aguiar, 1930, p. 15). As dúvidas dos juízes incidiam sobre duas questões fundamentais: primeiro, saber se duas mulheres podiam, realmente, ter sexo juntas; segundo, se ambas deviam ser condenadas ou apenas aquela que, supostamente, usurpava o papel masculino.

A sodomia entre mulheres deixou de ser perseguida em 1646, por decisão do Conselho Geral da Inquisição de Lisboa, embora se tivesse mantido a pena de degredo para as condenadas por esse crime (Mott, 1987, pp. 30-31). Na óptica dos juízes, as práticas sexuais entre mulheres enquadravam-se melhor no conceito de “molícia”, que abrangia toques sexuais de natureza vária, incluindo a masturbação, a que estavam reservadas penas mais leves. A Inquisição considerava só estar verdadeiramente perante o “pecado nefando” cometido entre mulheres quando havia penetração com recurso a pénis artificiais (Braga, 1996, p. 87). Ainda assim, tratava-se de uma modalidade excluída da categoria da “sodomia perfeita”, definida como penetratio cum seminis effusione (penetração com ejaculação de sémen) (Mott, 1987). A impossibilidade desta prática no caso das mulheres terá sido a principal razão pela qual, segundo Mott (1987, pp. 141-142), os inquisidores portugueses de meados do século xvii deixaram de considerar as práticas sexuais entre mulheres como um crime, apesar de as continuarem a englobar na categoria do pecado mortal da concupiscência.

Embora o homo-erotismo feminino tenha sido conhecido em Portugal quer entre mulheres comuns, quer entre a aristocracia2, poucas terão, portanto, chegado às barras dos tribunais. Mas, se a ideia de uma maior brandura na punição do homo-erotismo feminino é parcialmente suportada pela leitura dos regulamentos, o menor número de condenadas pode ter decorrido, igualmente, da sua difícil inteligibilidade para uma parte dos seus contemporâneos e da presença de valores e representações que o encaravam como uma infracção “menor”.

As ligações emocionais intensas entre mulheres — as “amizades românticas” particularmente emblemáticas da burguesia — são outro exemplo paradigmático dessas representações. De acordo com Faderman (1992), num contexto apostado em reprimir a expressão da sexualidade, especialmente a feminina, essas amizades foram durante algum tempo encaradas como uma espécie de iniciação à “verdadeira” relação amorosa, que devia ser heterossexual e consagrada pelo casamento. As jovens eram incentivadas a manter uma relação próxima com uma amiga “especial”, com quem trocavam não só confidências, mas também promessas ardentes de devoção eterna, desde que a sua conduta permanecesse no limiar da decência. Entre as mulheres que permaneciam solteiras, parece ter sido também louvado o relacionamento íntimo com uma amiga que era, por vezes, encarada como uma companhia alternativa a um marido enquanto não aparecesse pretendente à altura. Mesmo quando casavam, as amigas especiais mantinham, frequentemente, a sua centralidade emocional. Muitas mulheres da chamada primeira geração de “mulheres novas”3, profissionais escolarizadas e financeiramente independentes, parecem, todavia, ter optado durante toda a vida por este tipo de relacionamento (Newton, 1984; Faderman, 1992; Vicinus, 1982).

Como se esperava que as mulheres fossem assexuadas, não é de excluir que muitas delas também se vissem dessa forma e não chegassem a reconhecer a natureza erótica que o olhar actual detecta nas suas amizades. De acordo com Katz (1996, pp. 46-47), esta crença era sustentável no quadro de um mundo pré-freudiano, onde o amor não implicava o eros, permitindo tanto aos homens como às mulheres respeitáveis mencionarem explicitamente os seus sentimentos apaixonados sem os associarem directamente à sensualidade. Como nota o autor, num mundo que resumia o sexo ao coito, muitos actos de prazer que não envolvessem a penetração vaginal não eram proibidos e podiam nem sequer ser considerados “sexuais”.

Parece, no entanto, que o incentivo familiar e social às amizades femininas não impedia uma vigilância atenta, o que significa que havia sempre o risco de as fronteiras social e moralmente aceites serem transgredidas (Diggs, 1995; Moore, 1996; Vicinus, 1982 e 1996). Muitas dessas mulheres terão, aliás, reconhecido o carácter erótico das suas amizades, o que terá constituído uma fonte de tensão permanente entre elas, existindo, igualmente, registos que indiciam a presença de envolvimento sexual (Bullough e Bullough, 1977; Edwards, 1995; Vicinus, 1982).

A ansiedade em torno das “amizades românticas” parece ter recrudescido precisamente quando começam a deixar de ser vistas como uma moratória, ou uma solução de recurso, para passarem a constituir uma alternativa ao casamento (heterossexual) e, consequentemente, uma recusa da submissão aos papéis de esposa e mãe. Não por acaso, isto torna-se notório mais ou menos simultaneamente ao surgimento do feminismo da primeira vaga, à formulação pelos médicos da categoria da “invertida” e à sua progressiva aceitação social (Edwards, 1995; Faderman, 1992; Vicinus, 1982). Em Portugal, no início do século xx, Aguiar (1926) chama a atenção para o que pode residir por trás de uma ligação aparentemente inocente. Defendendo que “a homossexualidade feminina não é rara, mas é menos pública e menos aparente do que a masculina”, denuncia a possibilidade de se poderem “mesmo realizar diante de outras pessoas, certas práticas homossexuais que, desde que se não esteja prevenido, passarão despercebidas, como beijos, carícias várias, etc.” (Aguiar, 1926, p. 359).

Assim, se os poucos julgamentos conhecidos de mulheres acusadas de manter práticas sexuais com outras mulheres mostram a dificuldade dos especialistas, em especial dos juízes, em perceberem o que podiam elas fazer em termos sexuais, a partir do momento em que os sexólogos criaram a categoria da “invertida”, tornou-se claro que, qualquer que fosse a forma como fossem encaradas, existiam mulheres que preferiam outras mulheres como parceiras amorosas e sexuais. Os novos sistemas de classificação sexual complicavam o afastamento da suspeição face às relações íntimas entre mulheres e a ignorância do seu eventual carácter erótico e/ou sexual. Simultaneamente, para as mulheres envolvidas tornava-se mais difícil escapar à classificação social de que podiam agora ser alvo e às suas consequências, retirando-lhes a protecção de que haviam gozado até aí.

Como nota Abranches (2001, p. 272), é precisamente na transição do século xix para o século xx que em Portugal tanto a figura da ainda não sexuada miss angélica como a da assexuada preceptora inglesa são substituídas pela imagem da abominável inglesa, autónoma e feminista, cuja “masculinidade” podia, enfim, “esconder outro tipo de deboche só sugerível — o lesbianismo”. Daqui decorreria, segundo a autora, a recrudescência das denúncias do perigo de “britanização” das mulheres portuguesas, menos associado ao vestuário “masculino” do que às suas ideias emancipadoras (Abranches, 2001, p. 277).

Os primeiros estudos nacionais dedicados à análise do homo-erotismo feminino enquadram-se, quer em termos de modelos explicativos, quer dos procedimentos de diagnóstico, na linha das obras dos sexólogos europeus da época. As teses dos autores portugueses reflectem tentativas de articulação mais ou menos conseguidas de contributos associados aos paradigmas da degenerescência e do darwinismo social e ao mais recente modelo da psicanálise (cf. Aguiar, 1926, 1930 e 1932, Moniz, 1901 e 1906, e Silva, 1896). À semelhança dos seus congéneres europeus, os médicos portugueses oscilavam entre a procura de sintomas físicos, anatómicos e morfológicos da “inversão sexual” e a identificação dos seus sinais psicológicos e/ou sociológicos. Esta preocupação dupla, como nota Terry (1990), parece traduzir dois embaraços reconhecidos a custo pelos próprios: a dificuldade de encontrar provas inequívocas de que o homo-erotismo radicava em “falhas” com expressão antropométrica visível e a de fazer coincidir uma realidade diversificada com um modelo explicativo bastante rudimentar.

As teorias dominantes sobre a “inversão”, ou a homossexualidade — os termos são já usados como sinónimos —, assentam no pressuposto central de que o exercício da sexualidade está directamente associado ao género e de que este se organiza num binário que opõe o masculino ao feminino. Neste quadro, o homossexual “verdadeiro” era sempre efeminado e a lésbica “verdadeira” era sempre máscula (Terry, 1990, p. 318). Apesar de a realidade frequentemente não encaixar nas suas construções teóricas, muitos médicos assumiam que o comportamento sexual estava ligado à expressão da masculinidade ou da feminilidade e que estas se traduziam tanto na configuração como nas formas de ter e apresentar o corpo. Quando, porém, como frequentemente acontecia, os testes antropométricos não confirmavam a teoria, recorriam à psique como variável explicativa complementar, e é a este nível que as concepções dominantes acerca do género surgem mais claramente como explicação para as diferentes formas de erotismo.

 

A EMERGÊNCIA DA “INVERTIDA”

As obras de Aguiar (1926, 1930 e 1932) e de Moniz (1906) mostram que no início do século xx, em Portugal, está também em curso aquilo a que Foucault (1994, p. 46) chamou a transformação do homossexual numa espécie. Nelas é possível encontrar um conjunto de termos aplicáveis especificamente às práticas sexuais entre mulheres (incluindo expressões como “homo-sexualidade”, “lesbismo”, “safismo” e “tribadismo”), bem como às suas intervenientes (“lésbicas”, “sáficas” e “tríbades”), por vezes utilizados de forma intercambiável, mas não absolutamente idêntica4.

Além dos típicos alvitres de teor dramático sobre o alastramento da luxúria e da “anormalidade” sexual na Europa e em Portugal, os médicos defendem a sua especial prevalência entre certas categorias sociais. Para Aguiar (1926, p. 359), “as depravações nas mulheres são frequentes em todas as classes sociais, mas principalmente entre a nobreza, entre a alta burguezia, nas prostitutas, nas empregadas do comércio e indústria, nas actrizes, etc.”, enquanto Moniz (1906, pp. 159-160) defende que estas se evidenciam “no mundo da prostituição, entre as actrizes e no meio da aristocracia”.

O homo-erotismo é associado, portanto, especialmente às mulheres dos estratos sociais mais altos e às que exercem uma actividade profissional, referências que recordam imputações comuns quer às mulheres das elites degradadas pelo “vício”, quer àquelas cuja esfera de actuação se situa fora do lar. Aguiar (1926, p. 360) defende mesmo a existência de uma espécie de relação de patrocínio entre estes dois tipos de mulheres: “certas actrizes”, “modelos obscuros”, “determinadas damas de companhia e várias artistas sem categoria” seriam “os objectos de predilecção amorosa de algumas solteironas, de grandes senhoras, de ricas burguesas, de requintadas mundanas e semi-mundanas”, a quem “se vendem”. Em causa podia estar quer uma troca pecuniária, quer a obtenção de determinados confortos e bens aos quais as mulheres de origens mais modestas dificilmente teriam acesso se não por esta via.

A relação entre homossexualidade e prostituição parece ser um tema recorrente. Um estudo realizado em 1908 por Tovar de Lemos (v. Bastos, 1997, p. 230), que traduz para o caso português as teses dominantes acerca da prostituição, menciona como traços distintivos de certas prostitutas “a ‘physionomia viril’ e as ‘tatuagens’”, que, juntamente com “as ‘práticas lésbias’”, eram considerados “degenerativos funcionais”. Na verdade, a ligação pode ter sido ilicitamente estabelecida, ainda que alguns elementos factuais possam ter sustentado tal confusão. Referindo-se ao caso anglo-saxónico, McIntosh (1997) nota que, em geral, os principais clientes das prostitutas eram homens, embora as casas de prostituição pudessem também alojar rapazes, e os poucos casos de prostituição lésbica parecem ter-se situado fora do contexto da subcultura lésbica. As prostitutas terão sido, todavia, uma presença importante nos espaços e subculturas lésbicos da classe trabalhadora que se começavam a formar. A autora sugere que, sendo a prostituição uma das formas de as mulheres mais pobres garantirem a sua independência e escaparem à heterossexualidade, terá sido esta coincidência a levar alguns observadores a associar o homo-erotismo feminino à prostituição. Moniz (1906, pp. 168-169), aliás, parece intuir tal relação. Apesar de se referir à existência de lupanares dedicados à prostituição lésbica, acrescenta que “em alguns casos é o fútil motivo de poderem viver juntas e sem difficuldades que as determina [as lésbicas] a arregimentar-se entre essas desventuradas [as prostitutas]”.

Na linha dos grandes sexólogos, os dois médicos defendem a existência de várias formas de homossexualidade feminina. As principais distinções propostas por Aguiar (1926) são entre a homossexual “activa” e “passiva”, entre “as sáficas” e “as tríbades” e entre a “verdadeira” e a “falsa” homossexual. Estas dimensões apresentam uma certa sobreposição. A primeira estabelece uma linha divisória entre quem faz e quem deixa fazer. Ao autor — como a grande parte dos seus contemporâneos — não ocorre que pudessem estar em causa papéis intercambiáveis, visto que o modelo de que se serve é o do coito heterossexual convencional, onde o homem (princípio activo) supostamente “faz”, isto é, penetra, e a mulher (princípio passivo) supostamente “deixa fazer”, isto é, é penetrada. Existiriam, assim, sáficas activas ou passivas, bem como tríbades activas ou passivas, de acordo com aquilo que é lido como iniciativa ou receptividade sexual, respectivamente. A segunda demarcação, que distingue as sáficas das tríbades, reenvia directamente para a distinção entre homossexualidade “falsa” e “verdadeira” e indirectamente para o binómio passiva/activa. A diferença entre sáficas e tríbades é que as primeiras “são arrastadas ao amor anti-físico5 pelas dificuldades encontradas nos amores com homens ou levadas pelas companheiras corrompidas” (Aguiar, 1926, p. 365). Em suma, as sáficas são homossexuais porque foram seduzidas por uma mulher degradada, porque foram rejeitadas pelos homens, ou porque foram infelizes com eles, explicações que, curiosamente, continuam a ser predominantes entre os clínicos portugueses (Moita, 2001)6. Como nota Terry (1990, p. 321), o homo-erotismo de muitas mulheres, especialmente daquelas que os médicos não podiam classificar como “masculinas”, era explicado por uma fragilidade da vontade que as tornava presas fáceis da mulher “máscula”, ou por um narcisismo e um egocentrismo excessivos que tornava inebriante qualquer atenção que lhes fosse concedida, independentemente do sexo da outra parte. Por isso, eram mais frequentemente classificadas como bissexuais ou, simplesmente, narcisistas, do que como homossexuais. Eram as “falsas” homossexuais ou, quando muito, homossexuais cuja homossexualidade era “adquirida” e não “congénita”. Já o caso das tríbades se afigura bem diferente. Estas, sobretudo as que Aguiar (1926) classifica como “activas”, eram a personificação da virago e tinham nascido assim.

A perspectiva de Moniz (1906) destaca-se da de Aguiar justamente pela sua recusa em aceitar tão claramente as teses da hereditariedade. Assim, não só defende que o binómio activa/passiva se refere a papéis que podem ser permutáveis, como também que não existe uma relação directa entre masculinidade/feminilidade e a homossexualidade, ainda que isso não o impeça de continuar a defini-la como “um sentimento sexual contrario ao caracter do sexo que o individuo representa” (Moniz, 1906, p. 125). Para Moniz eram sobretudo as influências educativas que determinavam o desenvolvimento da homossexualidade, perspectiva mais próxima da psicanálise, de que foi o percursor em Portugal.

Independentemente das divergências, ambos os clínicos dedicam algum tempo à figura da lésbica masculina, o que a anuncia como um topos problemático. O diagnóstico exaustivo dos seus traços morfológicos e/ou psicológicos é exemplar da preocupação que rodeia esta figura fantasmagórica e articula-se em torno de três dimensões essenciais: iniciativa sexual e social, travestismo e presença de traços morfológicos e psicológicos “masculinos” (Terry, 1990). Se Moniz (1906) lhe atribui um destaque particular, Aguiar (1932) dedicará um artigo completo à exposição exaustiva da história de vida do que chama uma “homo-sexual feminina do tipo tríbade completo”.

Na perspectiva de Aguiar (1932), comparativamente à mulher “normal”, “A.” (abreviatura do nome) manifestaria características morfológicas e fisionómicas distintas. Porém, os parâmetros do padrão de normalidade feminina a estes níveis não só nunca são elucidados, como o próprio autor vacila na classificação de A., nomeadamente em termos do que considera serem traços “viris” e “feminis”. Sabe-se que A. tem “pescoço curto, grosso, antes másculo que feminil”, porém “de convexidade ligeira na face anterior, o que é próprio do colo feminino, mas com pomo-de-adão palpável e saliente, o que é apanágio dos indivíduos masculinos”; que o seu aspecto físico, “vista nua, sem que deixe dúvidas estar-se em presença de uma pessoa do sexo feminino, impressiona por certos detalhes de modo a fazer presumir que ela se distancia um pouco do tipo feminino normal” (Aguiar, 1932, pp. 145 e 151)7. Em resumo, não parece ser realmente a este nível que A. dá, literalmente, corpo à invertida pura, mas naquilo em que se afasta, em termos psicossociológicos, de um certo protótipo de feminilidade, começando pelo seu travestismo e passando pelas suas ideias, conduta e preferências amorosas e sexuais.

A. é caracterizada como uma mulher de classe baixa, de origem rural, que cedo opta por se vestir como um homem, que não gosta dos “mesteres femininos” e que recusa tomar homens como parceiros amorosos e sexuais. Estes “indícios” são tomados como comprovativo de que se está na presença de uma mulher que o não é, certeza aparentemente secundada pelo facto de a própria A. declarar que “gostaria de ter nascido homem” e de se irritar “quando lhe dizem que é mulher” (Aguiar, 1932, p. 146). Parece, no entanto, que A. teria uma outra explicação — pelo menos, uma explicação adicional — para se vestir como um homem. Tendo trabalhado como criada de servir a partir dos 9 anos de idade, terá decidido vestir-se de homem por “não se d[ar] com as perspectivas de vida que lhe são sempre apresentadas”, por a animar a esperança “de se poder governar melhor com o novo traje” e pelo “desejo de se livrar de várias frases e propostas que certos indivíduos lhe faziam na rua por que passava e que a irritavam” (Aguiar, 1932, pp. 142-146). O desejo de independência e autonomia — económica, social e sexual — de A., e de outras mulheres como ela, permite ainda sustentar a evocação, por parte do médico, de uma característica adicional que não é de somenos importância: “por tudo isto nas [tríbades] activas há grande influência na propagação das ideias feministas”, pois, “como prescindem do homem nas relações sexuais, querem dispensar o seu concurso absolutamente em tudo” (Aguiar, 1926, pp. 363-364).

Apesar de Moniz não ir tão longe — o que não significa que a equiparação da feminilidade à inactividade e à passividade físicas e mentais não esteja presente na sua obra —, tanto ele como Aguiar enquadram-se nas teses dominantes da sexologia europeia da época. Como nota Faderman (1992, p. 46), os sexólogos europeus foram os primeiros a associar a “inversão sexual” ao feminismo — ou, no mínimo, à autonomia e à actividade femininas — e, se as teses da congenitalidade os coibiram de estabelecer o feminismo como causa da inversão, não os impediam de defender que ele oferecia um terreno propício quer à actualização de uma propensão inata, quer à inversão por “imitação” das mulheres que a não possuíam.

O caso de A. é apenas um exemplo de um fenómeno que parece ter sido relativamente comum. Durante séculos, várias mulheres terão passado por homens com o propósito essencial de poderem aceder a meios de sobrevivência que lhes permitissem livrar-se da situação de dependência que lhes estava reservada (Faderman, 1992; Newton, 1984; Vicinus, 1996). Independentemente de outros factores explicativos possíveis — nomeadamente o facto de se poderem sentir, em termos identitários, mais ou menos distantes da feminilidade hegemónica —, parece ter estado também em causa o acesso a empregos e a níveis de remuneração reservados aos homens. Sobretudo quando oriundas de meios economicamente carenciados, passarem por homens era para muitas mulheres uma estratégia de sobrevivência económica e uma forma de preservarem a autonomia pessoal e sexual.

Isto sugere que, no passado, o interesse erótico primário de muitas mulheres “travestidas” não se focava, necessariamente, noutras mulheres, ainda que a sugestão de transgressão sexual pudesse estar presente quer nas leituras dos seus contemporâneos, quer nas suas próprias declarações, quando registadas (Newton, 1984; Vicinus, 1996). Mas é revelador do modo como eram socialmente classificadas as mulheres que não se conformavam às expectativas sociais. De certo modo, as mulheres ditas “masculinas”, travestidas ou não, têm sido frequentemente tomadas como o ex-líbris da desobediência feminina e foi, provavelmente, também por isso que “a mítica lésbica máscula” (Newton, 1984) se tornou o estereótipo dominante da lésbica e uma arma de arremesso contra as veleidades feministas emancipadoras.

Em suma, como defende Vicinus (1996), o desejo homo-erótico exprimiu-se historicamente de formas muito variáveis. Desde o final do século xvii, pelo menos, que ele está presente na imagem da mulher travestida, na imagem da mulher livre, com uma sexualidade variada (a amante ocasional de mulheres), e na imagem da amiga romântica. Com a afirmação da sexologia, esse desejo será gradualmente transformado em elemento definidor de um tipo particular de pessoa — a lésbica.

 

O GÉNERO DAS LÉSBICAS

A produção social da invertida resultou de um jogo de influências complexo e sobredeterminado. Por um lado, muitas mulheres poderão ter sentido que a sua auto-imagem e as suas ambições não se coadunavam com o modelo de feminilidade que lhes era proposto e com as expectativas que sobre elas recaíam; por outro, a concepção que tinham de si próprias terá sido também afectada pelo modo como os outros as viam. A invertida parece ter resultado tanto da incorporação dos modelos de género dominantes como da vontade de aceder ao reconhecimento de uma identidade pessoal e social específica (Faderman, 1992; Newton, 1984; Vicinus, 1996). Propondo um nome em torno do qual era possível construir uma identidade alternativa, os médicos sancionavam a sua “diferença” e ofereciam uma possibilidade de resistir à obnubilação, ainda que o preço fosse elevado. Estava, além disso, em causa um modelo explicativo que apresentava a preferência homo-erótica como um produto da natureza, algo que o indivíduo não podia combater, mesmo que quisesse (Faderman, 1992; Vicinus, 1996). A invertida podia ser vista como “anormal”, mas tratava-se de uma “anormalidade” independente da sua vontade e do seu registo moral particular. Também estava em jogo, portanto, uma aceitação social relativa, pois era “muito melhor ser uma invertida congénita do que alguém que tinha a opção de ser heterossexual e escolhia a homossexualidade de livre vontade” (Faderman, 1992, p. 59).

Todavia, como defende Newton (1984), para as mulheres que chegaram à idade adulta nas décadas de 20 e 30 do século xx, a masculinização terá tido um significado bem diferente do que para as mulheres travestidas que as antecederam. A posição política, feminista, e por vezes radical das “mulheres novas” era distinta e a autonomia encarada como um direito. Para estas, o vestuário “masculino” pode ter sido usado para simbolizar assertividade e modernidade, leitura também proposta por Doan (1998). Mas para as mulheres cujo interesse amoroso primário se dirigia para outras mulheres esse vestuário constituía também uma extensão da sua agência sexual, atestada pelo discurso médico da congenitalidade, que retirava validade aos discursos dominantes sobre a (a)sexualidade feminina (Faderman, 1992; Newton, 1984).

No final da década de 20, a projecção pública de julgamentos como o de Radclyffe-Hall, em Inglaterra, terá contribuído para transformar a sua maneira de vestir, pensar e agir em marcas distintivas de uma subcultura lésbica (Doan, 1998) e conduziu à reinterpretação do estatuto das mulheres que anteriormente se pensava serem simplesmente “artísticas” ou “ultramodernas”. O “visual moderno” e o “visual lésbico” convergiram, em especial, pela divulgação através da imprensa escrita, fazendo da masculinidade feminina um símbolo do lesbianismo. Uma apresentação “masculina” tornou-se uma forma de reclamar e assinalar uma preferência, de a tornar perceptível, nomeadamente para outra(s) similar(es) (Doan, 1998; Eves, 2004; Newton, 1984). A adopção de uma imagem masculinizada não implica, pois, obrigatoriamente, o desejo por parte das mulheres que a adoptaram de serem homens ou de serem confundidas com homens. Mas elas poderão ter-se servido dos quadros de referência dominantes para criar um modelo identitário distinto dos modelos sexuais e de género dominantes, o que se verifica ainda nos nossos dias.

Para os médicos, todavia, é a mulher feminina com preferências homo-eróticas, cujos traços físicos e psíquicos não se adequam ao protótipo da invertida “pura”, que constitui o verdadeiro quebra-cabeças (Terry, 1990; Vicinus, 1996). A mulher masculina reflectia, de certo modo, uma conformidade ao dimorfismo de género vigente, permitindo manter um esquema dicotómico face ao qual a sua situação era dissonante, mas ainda assim classificável. Ela não podia evitar perseguir outras mulheres porque possuía uma psique “masculina”, elemento explicativo central das suas práticas, que estava em sintonia tanto com os seus modos e aparência corporal como com a crença de que a sexualidade activa era apanágio dos homens. A mulher feminina que adoptava como amantes outras mulheres confundia essas fronteiras porque, não deixando de ser convencionalmente feminina na aparência, tinha práticas consideradas atípicas para as mulheres. Num modelo em que o homo-erotismo era explicado pela inversão de género, ela cabia pior numa categoria definida pela masculinidade, sobretudo quando não se conformava à passividade e receptividade sexuais esperadas. A dificuldade de os cientistas explicarem e catalogarem esta figura residia precisamente no facto de não possuírem uma teoria da escolha do objecto sexual que operasse independentemente do género (Terry, 1990, p. 322).

Aguiar (1926) oferece, a propósito, uma descrição morfológica das sáficas, mas o safismo parece ser mais difícil de detectar do que o tribadismo, a não ser por exame clínico dos órgãos genitais e reprodutivos. Porém, como não havia acordo entre os médicos quanto à validade dos traços distintivos do safismo, a explicação que restava era, muitas vezes, a de não serem “verdadeiras” homossexuais: “As sáficas são mais homosexuais por vício e por ocasião, são antes as pseudo-homosexuais”, ao passo que “as tríbades são mais homosexuais por espírito, por congenitalidade, são antes as verdadeiras homosexuais” (Aguiar, 1926, p. 365).

Esta curiosa distinção adapta-se às imagens surgidas em Portugal entre finais do século xix e início do século xx e identificadas por Abranches (2001), da “sáfica miss”, intelectual e feminista, e da “garçoa”, figura de romances assentes na exploração de triângulos heterolésbicos8. A primeira é o equivalente alegórico da lésbica masculina; a segunda assenta como uma luva à lésbica feminina. Do ponto de vista simbólico, representam ambas uma ameaça e uma forma de “protecção” da mulher “decente”, permitindo uma operação de policiamento similar à que distingue este tipo de mulher da mulher caída, e a salvaguarda da honra nacional na figura da boa mulher portuguesa que não cede a estrangeirismos perigosos (Pais, 1985). São, em suma, dois espectros que servem para manter as mulheres — no caso, as portuguesas — nos seus devidos lugares.

Porém, são ameaças distintas porque, ao passo que “à garçoa sobrará ainda um resto de ‘pura feminilidade’, e esta passa pelo corpo (disponível)”, a miss feminista, “pelo seu ‘cérebro de homem’ só pode ser uma ‘invertida verdadeira’” (Abranches, 2001, p. 299). A falsa invertida da década de 20, evocada pela figura da garçoa ou da mulher mundana, sofisticada e experimentalista (cf. Faderman, 1992), é supostamente recuperável para a heterossexualidade. “Enganada” ou “mal amada”, ela aguarda apenas a chegada do salvador que a trará de volta ao seu devido lugar, sendo menos ameaçadora do ponto de vista social. Trata-se, aliás, de uma figura que ainda preserva uma aura de fascínio e sedução, associada ao lesbian chic e passível de apropriação pelo olhar masculino (Abranches, 2001; Ciasullo, 2001; Mota-Ribeiro, 2005).

A paulatina institucionalização destas figuras enquadra-se no processo de autonomização da sexualidade como esfera específica de produção de sentido nas sociedades modernas, que fez do erotismo o locus da identidade (Foucault, 1994). Apesar de a sexualidade não se ter separado inteiramente do género, ela surge progressivamente como linha de intersecção com contornos nem sempre claros e, frequentemente, confundindo os observadores quanto aos seus pontos de ligação.

A lésbica masculina, herdeira da invertida autêntica, tem sido a representação dominante do lesbianismo, consagrada no arquétipo da butch, figura particularmente popular durante a década de 50 entre as jovens subculturas lésbicas da classe operária, que se contrapõe à figura da femme, a mulher feminina, que nem sempre se encara a si própria como lésbica (Faderman, 1992; Halberstam, 1998b). A butch tem simbolizado a dissidência sexual das mulheres que preferem mulheres como parceiras amorosas e sexuais e a recusa de conformidade aos papéis tradicionalmente reservados à mulher. Parte da sua centralidade como ícone do lesbianismo decorre, pois, da menor probabilidade de ser tomada por heterossexual pela sua não conformidade à feminilidade hegemónica. Inversamente, a mulher feminina tende a surgir como mais problemática para a subcultura lésbica, encarada como a negação e/ou a tentativa de negação quer de uma certa predisposição erótica, quer do supostamente inerente não cabimento da lésbica na categoria convencional da mulher (Ciasullo, 2001; Eves, 2004).

A produção científica acerca das subculturas e comunidades lésbicas em Portugal é praticamente inexistente, o que dificulta a comparação com outras realidades. Em todo o caso, a butch parece equivaler actualmente, entre nós, ao protótipo da camionista, termo que designa, especificamente, as lésbicas que assumem uma apresentação “masculina”, expressa não só no vestuário, mas também na gestualidade, na postura e nas atitudes (Brandão, 2007)9. Curiosamente, não foi possível encontrar uma expressão portuguesa equivalente para femme, ainda que a sua existência seja, igualmente, reconhecida e lida de forma idêntica.

Todavia, este panorama não está completo sem se considerar a influência do feminismo mais radical, que veio a encarar o lesbianismo como a sua quintessência, e sem se compreender que não existe uma, mas várias subculturas lésbicas. No quadro de um discurso feminista apostado na desconstrução das categorias de género, tanto a lésbica masculina como a feminina são altamente controversas. O modelo de relacionamento homo-erótico associado em especial ao binário butch/femme foi, no auge das batalhas feministas, alvo de forte ataque, encarado como uma imitação e reprodução da relação não igualitária que caracterizava a heterossexualidade hegemónica ou, no mínimo, como uma reedição das categorias de género que o feminismo pretendia combater (Eves, 2004; Faderman, 1992; Farquhar, 2000; Halberstam, 1998b; Newton, 1984; McIntosh, 1997; Wilton, 1995; Ponse, 1978).

É provável, como nota Faderman (1992, p. 60), que esse modelo mais não fizesse do que reflectir o único exemplo visível de relacionamento amoroso para essas mulheres — o casal heterossexual — e que, neste sentido, os sexólogos estivessem, de facto, a descrever o modo como estas se viam e sentiam. Mas esta é uma forma simplificada de descrever o fenómeno, pois a imagética heterossexual nem sempre tinha ou tem tradução linear nas condutas e sentimentos das mulheres em causa (Faderman, 1992; Eves, 2004). Para todos os efeitos, a relação homo-erótica representava uma transgressão de género e os papéis “masculino” e “feminino” eram frequentemente dissonantes face às práticas efectivas das parceiras (a femme, por exemplo, podia ser “activa” tanto do ponto de vista sexual como social), sendo adoptados por muitas mulheres menos pelo seu significado intrínseco do que como elementos de um jogo cujas regras tinham de ser abraçadas se se pretendia jogá-lo (Faderman, 1992).

A acção do feminismo da segunda vaga traduziu-se, de qualquer modo, na pressão para a adopção de modelos simétricos e de uma imagem “politicamente correcta” assente na androginia, uma ideologia assexuada que viria a ser contestada na década de 80 com o ressurgimento dos modelos da butch e da femme, porém acompanhados de múltiplos e novos significados (Eves, 2004; Faderman, 1992; Farquhar, 2000; Halberstam, 1998a e 1998b; Phelan, 1993; Roof, 1998; Stein, 1997; Wilton, 1995). Esta mudança pode ser lida como uma reacção ao policiamento das formas de relacionamento amoroso e sexual e dos códigos de apresentação por parte dos sectores mais radicais do feminismo lésbico. Mas inclui-se também no contexto do surgimento da abordagem queer e da sua visão da identidade como elemento performativo10. Neste caso, a apropriação daquelas imagens pode corresponder tanto a uma representação destinada a simbolizar o direito à expressão individual e individualizadora como à defesa da ideia de que o género, habitualmente concebido em termos binários, pode assumir formas que não cabem nem no masculino nem no feminino tout court.

No âmbito da teoria queer, o género constitui-se como elemento de questionamento subversivo e a sua representação — também num sentido lúdico — pode reflectir mais a vontade de expor a sua dimensão construída do que a sua essencialidade (Butler, 1993 e 1999; Halberstam, 1998b; Roof, 1998). Assim, Halberstam (1998b) demonstra que a masculinidade feminina pode assumir diferentes formas e que existem vários tipos de butches, os quais podem, por sua vez, ser entendidos quer em termos realistas, quer enquanto papéis conscientemente representados11. Também Eves (2004) mostra que, entre muitas mulheres lésbicas, aspectos como a escolha, a agência e a consciência estão presentes na modelação e adopção simultâneas de “repertórios de autenticidade” e de “repertórios de representação”, leitura que se mostra compatível com os resultados obtidos para o caso português (Brandão, 2007, pp. 271-451). Especificamente, e ao contrário do que é a leitura mais comum, a autora sublinha a presença, entre muitas butches, de repertórios de autenticidade do género — portanto, realistas — que contrastam com a defesa, por parte de muitas femmes, de repertórios de representação — portanto, construtivistas. Mas, no caso destas, esta dimensão subversiva e subversora do género não invalida a presença simultânea de repertórios de autenticidade no que respeita à identidade lésbica, ao contrário do que acontece com as butches, entre as quais os repertórios de escolha e fluidez estão mais presentes.

Os argumentos queer são, em suma, compatíveis com investigações que sugerem que orientação erótica e género constituem variáveis independentes sem correlação empírica e mais compatíveis com a aplicação de modelos teóricos ortogonais do que bipolares (Bem, 1974; Garnets, 2002; Peplau, Spalding e Conlay, 1999; Storms, 1980)12. Se, para certas mulheres, os modelos da butch ou da femme podem ser encarados como uma representação de papéis de um jogo (muitas vezes, pelo seu apelo erótico), para outras, podem ser entendidos como formas de expressão das suas “verdadeiras” identidades e para outras ainda podem representar um desafio aberto às convenções. Assim, os significados atribuídos pelos observadores não são, necessariamente, os significados reclamados pelas mulheres que os adoptam. A apropriação subcultural e pessoal de certos arquétipos apresenta sempre uma certa distância face às atribuições sociais de que estas mulheres são alvo, não autorizando uma leitura linear do seu sentido como meros decalques das categorias de género dominantes.

 

NOTAS CONCLUSIVAS

O homo-erotismo feminino surge, no quadro de uma sociedade heterossexista e falocêntrica, como particularmente problemático. Face a um modelo de feminilidade que, praticamente, restringe o exercício da sexualidade feminina à heterossexualidade e à reprodução, despojando-a de autonomia própria, ele representa uma dupla transgressão, uma “falta” de somenos importância (quando não de existência duvidosa) ou um elemento de titilação masculina. Nuns casos, é lido como uma violação das fronteiras de género e da contenção sexual, que definem a feminilidade, podendo por isso representar um desafio à dominação masculina. Noutros, é visto como destituído de carácter sexual ou como não sendo relevante deste ponto de vista, sobretudo devido à ausência do falo. Noutros, ainda, a negação de agência sexual às mulheres redu-lo a uma forma de satisfação da líbido masculina, não tendo significado para além desta.

Associando-se, ao longo da história, a vários arquétipos, o desejo homo-erótico feminino acabará por ser aposto à figura da invertida, primeiro, e da lésbica masculina, depois, à qual vem contrapor-se a da amante de mulheres que mantém uma aparência feminina convencional. A primeira representa a “verdadeira” lésbica; a segunda, a “falsa” lésbica e/ou aquela que não pretende “assumir-se” como tal. Ao passo que a “masculinidade” da primeira a transforma em objecto de consumo (sexual) impróprio para os homens e remete para a ideia de uma “falha” constitutiva ao nível do género, a segunda tem sido encarada mais como resultado de um experimentalismo transitório e, em certa medida, boémio, ou de uma fragilidade que a torna particularmente susceptível de qualquer forma de sedução. Retomados dos discursos médicos e interligando-se com crenças antigas que associam homo-erotismo feminino e masculinidade, estes dois protótipos foram apropriados e divulgados pelas subculturas lésbicas que, entretanto, se formaram. E, apesar da oposição de certos sectores do feminismo a esta imagética, continuam presentes hoje em dia, mesmo que nem sempre reflictam uma incorporação daquelas crenças e tenham passado a ser adoptados como elemento de paródia ou de contestação social e política.

O homo-erotismo feminino e os seus arquétipos são, em resumo, herdeiros de tradições diferentes. Os seus significados sociais, políticos e pessoais são múltiplos, sobrepostos e multideterminados, demonstrando a não linearidade entre sexualidade, género e identidade contra um imaginário que teima em apresentá-los de forma unívoca. A categoria social da lésbica, designação que estabiliza na década de 50 do século xx, é, portanto, resultado de várias heranças que continuam a coexistir nas formas de relacionamento e de identificação muito variáveis que as mulheres que se sentem atraídas por mulheres podem adoptar. Género e sexualidade emergem, pois, como variáveis independentes, sustentando configurações identitárias distintas e articulações diversas entre identidade sexual e identidade de género e apontando para a necessidade de se desenvolverem modelos teórico-metodológicos distintos para se dar conta de uma realidade que é mais complexa do que as representações comuns fazem crer.

 

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Notas

1 O conceito de homo-erotismo é derivado de Brooten (1996), pretendendo designar a presença de um acto, desejo ou preferência erótico(a) entre ou por indivíduos do mesmo sexo, exclusivamente ou não, abarcando subcategorias e contingentes populacionais diversos e independentemente das identidades reclamadas e/ou atribuídas pelos ou aos indivíduos em causa. Reserva-se, assim, o uso das noções de homossexualidade, lesbianismo, homossexual, gay e lésbica, em termos substantivos — como em “os homossexuais” ou “as lésbicas” — ou adjectivos — como em “preferências”, “actos” ou “práticas homossexuais” ou “lésbicas” — aos contextos em que se entende ser social e culturalmente legítimo o seu uso.

2 A este respeito, consulte-se Mott (1987) e as suas referências aos conventos e recolhimentos de freiras, onde as amantes partilhavam a mesma cama, chegando a ocorrer agressões motivadas por ciúmes. V. o exemplo da “amizade romântica” de Sua Alteza Imperial D. Maria Leopoldina Josefa Carolina, arquiduquesa de Áustria e primeira imperatriz do Brasil, com a viúva inglesa Maria Graham, ou ainda as referências às várias mulheres anónimas que se encontram nas fontes escritas. O mesmo poderá ser dito de alguma da poesia contida em Correia (1999, pp. 41-43 e 78-81, respectivamente) relativa quer a damas da corte, quer a mulheres do povo, em que se destacam as glosas a uma Dona Guiomar de Castro e a uma Maria Mateu, soldadeira.

3 A designação abarca, segundo Newton (1984, p. 561), um conjunto de mulheres nascidas entre 1850 e 1860 nos Estados Unidos e na Inglaterra, educadas entre 1870 e 1880 e que floresceram entre 1890 e a Primeira Guerra Mundial. De acordo com a autora, buscavam a independência pessoal e económica, rejeitando os papéis domésticos das mães, batalha que passava por permanecerem solteiras e separadas da esfera familiar. Estas mulheres ter-se-ão voltado para as “amizades românticas” como alternativa ao casamento tradicional, replicando o mundo feminino do amor e do compromisso nos ambientes institucionais e residenciais das universidades e colégios femininos.

4 A generalidade dos termos remonta à antiguidade clássica (Brooten, 1996), ainda que os significados nem sempre sejam exactamente os mesmos. Como nota Mott (1987), além da palavra “lésbica”, também é possível, já antes do século xx, encontrar na língua portuguesa outras derivações de lesbos, como “lésbia”, “lesbiana” ou “lesbíaca”, por vezes também usadas simplesmente para referir alguém natural daquela ilha, ou um tipo particular de verso, na linha de Safo. Ainda de acordo com o autor, a palavra lésbica como sinónimo de homossexual feminina surge no Brasil pelo menos desde 1894, mas há registo de outros termos com um sentido similar pelo menos desde o início do século xvii.

5 Considerando que “físico” tem também como sinónimo, na língua portuguesa, “natural”, o autor pretende referir-se aqui não propriamente à ausência de contacto físico entre as parceiras, mas ao seu amor “antinatural”, ou “contranatura”.

6 Moita (2001) mostra que muitos clínicos portugueses continuam, ao arrepio da própria produção científica no domínio da sexualidade, a partilhar uma visão do homo-erotismo que tem como referente, explícita ou implicitamente, a noção de doença, traduzida em expressões como “anomalia”, “parafilia”, “desvio”, “disfunção” ou ainda “falha”. Como nota a autora, os médicos têm também mais dificuldade em explicar a homossexualidade feminina do que a masculina e recorrem frequentemente à ideia de que ela decorre de más experiências anteriores com homens, de terem sido rejeitadas por estes ou de terem dificuldades em manter uma relação heterossexual, supostamente mais ansiogénica devido à diferença dos géneros, paralelamente à existência de uma “oferta” lésbica. Menos referida como razão é a possibilidade de essas mulheres darem mais importância à pessoa do que ao seu sexo.

7 Itálicos nossos.

8 Aliás, um tópico popular da ficção europeia da época, segundo Faderman (1992, p. 49).

9 O termo machona é também usado, embora mais raramente, para designar uma butch.

10 Com epicentro nos estudos literários e fortemente influenciada pelo construtivismo, pelo pós-estruturalismo e pelo pós-modernismo, a queer theory, que emerge a partir da universidade durante a década de 90 do século xx, salienta as relações fluidas, incoerentes e instáveis entre corpo, sexo, género e desejo, questiona a existência de fronteiras estáveis entre normalidade e desvio e pretende pôr em causa a heteronormatividade (Dynes, s. d.; Jagose, 1996; Penn, 1995). Recuperando um termo com uma conotação originalmente injuriosa — queer é uma expressão pertencente ao léxico dos insultos homofóbicos, significando “bicha” ou “maricas” —, pretende unir todas as formas de comportamento e identificação proscritos, “estranhos”, não conformes. Ao fazê-lo, questiona simultaneamente a estabilidade de qualquer identidade, incluindo a identidade lésbica. Por este motivo tem sido posta em causa — embora com alguma ambivalência — por parte dos que consideram que as suas propostas inviabilizam, ou põem em perigo, a possibilidade de mobilização política, entre outras razões, porque não oferece pontos de identificação estáveis para além do não normativo, o que levanta a questão de saber se possui a capacidade de fazer deslocar a norma (Eves, 2004; Jagose, 1996; St-Hilaire, 1992; Valocchi, 2005; Walters, 1996; Whisman, 1993).

11 De acordo com a autora, a butchness de uma mulher pode exprimir-se quer em termos de códigos de apresentação — pela adopção de certos adereços masculinos ou pelo recurso ao travestismo (parcial ou completo) —, quer em termos sexuais — pela preferência ou recusa de determinadas práticas e/ou tipos de parceira. O grau de butchness de uma mulher é medido em termos de “dureza” ou “macieza”. Uma butch pode, portanto, ser uma soft butch ou, no outro extremo, uma stone butch. A primeira corresponde a uma mulher que, adoptando uma apresentação masculina, não “masculinizou” completamente a sua sexualidade, isto é, não recusa ser tocada (“como uma mulher”) e/ou penetrada; a segunda corresponde a uma mulher que, adoptando uma apresentação masculina, recusa práticas que considera poderem pôr em causa a sua “masculinidade”, maxime a penetração, embora também possa recusar qualquer forma de toque genital não mediado. Cruzando as duas dimensões, podemos então encontrar uma pluralidade de figuras, que incluem, apenas para mencionar algumas, a drag butch (uma mulher que passa por um homem heterossexual no vestuário e no estilo), a stone butch, a stone femme (uma femme que recusa a penetração), butches que parecem femmes e femmes que parecem butches e ainda butches que preferem femmes, butches que preferem butches, femmes que preferem femmes e femmes que preferem butches.

12 Na prática, isto significa que uma pessoa pode manifestar pontuações igualmente elevadas nos traços de “masculinidade” e “feminilidade” (andrógina), pontuações elevadas nos primeiros e baixas nos segundos (masculina), baixas nos primeiros e elevadas nos segundos (feminina) ou baixas em ambos (indiferenciada); do mesmo modo, e no que respeita à orientação erótica, é possível, com um modelo ortogonal, distinguir entre diversos graus de homo e hetero-erotismo, bem como entre bissexualidade e assexualidade, não existindo correlação significativa entre os dois modelos (Bem, 1974; Storms, 1980).

 

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