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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.194 Lisboa  2010

 

Antónia Pedroso de Lima e Ramon Sarró (orgs.), Terrenos metropolitanos. Ensaios sobre produção etnográfica, Lisboa, ICS, 2006, 192 páginas.

Há muito que os antropólogos, para não dizer os cientistas sociais em geral, se questionam sobre as implicações da definição do locus nas suas investigações para uma apreensão dos seus objectos. Não seria essa, nem tão-pouco a discussão sobre a antropologia das/nas grandes cidades, a especificidade ou a originalidade de Terrenos metropolitanos. Ensaios sobre a produção etnográfica. O que confere coerência e singularidade à obra, na sucessão dos seus diferentes artigos, é a forma como articula a reflexão sobre a posição do investigador quanto à construção ou delimitação dos “terrenos” — na maioria dos casos, multissituados — com uma postura crítica acerca das dimensões éticas, políticas e metodológicas implicadas no fazer etnográfico, tanto do ponto de vista do contacto com os sujeitos pesquisados como da sua expressão no resultado final do trabalho.

Colectânea de textos originalmente apresentados no seminário internacional Terrenos metropolitanos: desafios metodológicos, organizado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e pelo Centro de Estudos de Antropologia Social do ISCTE em 26 e 27 de Junho de 2003, o livro reúne um conjunto de ensaios que procuram analisar criticamente a centralidade do “trabalho de campo” em antropologia e as múltiplas dimensões problemáticas que o atravessam a partir de investigações concretas em diferentes etapas de desenvolvimento.

O título da obra, ao mesmo tempo, revela e esconde o seu conteúdo. Começando pelas reflexões finais de João de Pina Cabral, “metropolitano” remete, como afirma o autor, para “uma forma de diversidade cultural” relacionada com o “encontro das diferenças” num ambiente de “pluralidade, modernidade e colonialidade” (p. 180). Já não é mais por meio da viagem a lugares distantes que se dá o encontro das diferenças, mas pela interacção próxima e pela constante travessia de fronteiras entre mundos diversos. Assim, o “metropolitano” do título refere-se menos aos grandes aglomerados urbanos (embora não os exclua) e mais aos deslocamentos por diferentes centros e entre centros e margens, colocando em jogo o binómio metrópole-colónia num mundo que é, entre variadas caracterizações possíveis, pós-colonial.

Outras considerações relevantes de Pina Cabral prendem-se a mais uma das temáticas centrais que atravessam os ensaios do livro: a retomada e reelaboração dos princípios clássicos da etnografia (sobretudo malinowskianos) quanto à busca de uma perspectiva holista. É imperativo considerar, como faz o autor, tendo em vista a especificidade dos terrenos contemporâneos, que esta perspectiva só pode ser alcançada por meio de uma disposição crítica constante e da diversificação de fontes.

Na mesma linha de reflexão, o texto introdutório à colectânea, escrito pelos organizadores, Ramon Sarró e Antónia Pedroso de Lima, traz uma série de considerações sobre a noção de “terreno”. Central para a própria definição do “trabalho de campo”, esta não se limita à identificação ou delimitação dos lugares de investigação, mas implica a própria construção do objecto. Deslocamentos subjectivos e objectivos contribuem para delimitar o “terreno” e configurar a experiência pessoal do “trabalho de campo”, um dos eixos centrais de organização do livro.

Aliás, discutir a experiência e os métodos associados à investigação de terreno não é novidade, como referem os próprios autores, aludindo ao grande número de publicações sobre o tema, embora esse número não seja tão expressivo no que toca à produção no âmbito de instituições portuguesas, quando comparada com a internacional. Entretanto, chamam a atenção para a tomada de consciência em relação ao facto de que o “terreno” não é totalmente definível, e ainda o é mais dificilmente nos contextos metropolitanos contemporâneos. Uma constatação importante dos organizadores é a de que, ao fim e ao cabo, os trabalhos apresentados não se diferenciam tanto, do ponto de vista metodológico, daqueles realizados em contextos mais “clássicos” (em geral, “exóticos” e distantes). O maior desafio estaria na construção do “estranhamento” diante da realidade próxima. Outro desafio seria o de pensar os limites do “terreno” entre o encerramento e o fluxo.

Embora os binómios encerramento/fluxo e distância/proximidade perpassem diversos textos da colectânea, são mais especialmente retomados no capítulo 2, “Passageiros de Schengen: a dialéctica entre o fluxo e encerramento no trabalho de campo”. Ali José Mapril reflecte sobre a construção das fronteiras e dos limites do conhecimento e da representação antropológicos, bem como sobre os desafios aí implicados, a partir da sua investigação de terreno sobre a nova imigração em Lisboa, centrando-se, sobretudo, em imigrantes do Bangladesh. Exploram-se as redes e a circulação desses imigrantes entre o país de origem, Portugal e o Reino Unido. Ao seguir a mobilidade dos migrantes, o investigador analisa como o “terreno” se dissolve ou se redefine em função dos constrangimentos e das aberturas que os fluxos impõem à observação.

Situações de imigração e terrenos multissituados são mesmo uma constante de todos os ensaios do livro. No capítulo 6, “Da utopia da migração à nostalgia dos migrantes: percursos migratórios entre Bubaque (Guiné-Bissau) e Lisboa”, Lorenzo Ibrahim Bordonaro e Chiara Gemma Pusssetti reflectem sobre a marginalidade dos migrantes. Para os guineenses de Bubaque em Lisboa, a marginalidade desdobra-se em desilusão e doença, tendo em vista o confronto entre, por um lado, o imaginário do centro, quando visto a partir da periferia, e, por outro, a experiência quotidiana de preconceito e discriminação no país receptor. O sentido antropológico da nostalgia e do sofrimento desvenda-se nos quadros de um transnacionalismo incompleto.

Pertencer ou não pertencer são questões centrais no debate proposto por Nina Clara Tiesler no capítulo 7, “Back to the roots? A busca da experiência subjectiva na selva das políticas da identidade”. Ao abordar a sua investigação de terreno sobre os muçulmanos residentes em Portugal, traz à baila as contradições entre os direitos de cidadania e as políticas de identidade europeias, “que definem o islão como ‘o outro’” (p. 156). Procura não só abordar criticamente o potencial analítico dos conceitos identitários aí mobilizados, confrontando-os com a teoria crítica e com a diversidade concreta de islâmicos na Europa, como também responder à questão do porquê do fortalecimento de subjectividades colectivas marcadas no contexto de migração. A sua preocupação política de fundo tem como horizonte a integração e a emancipação. Como resultado da sua análise, propõe, alternativamente, a adopção do conceito de home como categoria mais operativa para analisar as situações de déplacement.

Transparece ao longo desse artigo uma fixação excessiva da crítica nas dimensões de contraste, em que os discursos de afirmação identitária assumem um carácter mais monolítico e rígido, o que pode ser muito mais matizado quando se analisam outros contextos de expressão dos sujeitos. Essas questões encontram-se melhor balizadas, por exemplo, no capítulo 1, em que Mette Louise Berg procura enfrentar “o desafio de encontrar e definir ‘o terreno’: reflexões em torno de uma investigação entre a diáspora cubana em Madrid”. A diversidade dos imigrantes cubanos e o carácter politizado da pesquisa ffizeram com que a própria identidade da investigadora estivesse constantemente em questionamento, criando empatias e distanciamentos, o que acabou por definir o seu “terreno” como um conjunto de encontros e desencontros. Nesse “jogo de espelhos” enriquece-se a discussão conceptual sobre o “terreno”. Historicamente situado e atravessado por um conjunto de forças sociais e políticas, define-se pelas questões de investigação e é muito mais problematizado do que a mera definição de lugares de observação.

Presentes em diversos artigos, as questões relacionadas com a ética no trabalho de campo e o relato etnográfico são o ponto central dos capítulos 4 e 5. Em “A face do outro ou face ao outro: ética e representação etnográfica”, Elsa Lechner apresenta a sua investigação de terreno com emigrantes transmontanos em França, destacando a sua relação privilegiada com um dos seus informantes. Essa interlocução, situada no conjunto das categorias nativas, classificadoras dos emigrados, e de outras narrativas biográficas, permite refazer o caminho que conduz à construção, no texto etnográfico, da face do outro.

Partindo de um ponto diverso — o carácter enganador de certos relatos “relativistas” —, Ubaldo Matínez Veiga retoma a discussão ética ao focar o compromisso do antropólogo com a “realidade dos factos”, a partir da observação dos violentos conflitos entre imigrantes marroquinos e a população local na Andaluzia pelo ano 2000. Em “Etnografia e pequenas verdades de facto: notas desde El Ejido”, o autor reflecte sobre os limites da concepção da cultura como texto e da crítica aos textos etnográficos pautada pela atenção aos mecanismos discursivos de construção da autoridade científica, nos quadros da antropologia dita pós-moderna. Esta crítica não basta para livrar a antropologia da “tentação da ficção” e para garantir que o relato dê conta, para além do “ponto de vista do nativo”, da discriminação concreta de que alguns são vítimas.

Num sentido diverso, é a partir de ficções — narrativas rituais hindus — que Susana Pereira Bastos nos mostra como se podem configurar diversos “terrenos” a partir de abordagens variadas da mesma população ou contexto empírico. O artigo, “Absorver e ser absorvido: diálogo etnográfico e feitiço falado”, demonstra as aberturas às quais o retorno ao mesmo contexto de investigação pode conduzir. Da iniciação da investigadora por meio das narrativas à descoberta da sua ligação com o poder e influência da feitiçaria na estruturação das relações familiares e interpessoais, revelam-se os percursos que levam à reelaboração do “terreno”.

Em suma, ao dialogar com as teorias antropológicas clássicas e com questões epistemológicas, éticas e políticas de fundo, Terrenos Metropolitanos constitui-se num belo panorama do exercício etnográfico contemporâneo.

 

Luciana F. M. Mendonça

CES, Universidade de Coimbra

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