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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.194 Lisboa  2010

 

José Machado Pais, Clara Carvalho e Neusa Mendes de Gusmão (orgs.), O visual e o quotidiano, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008, 233 páginas.

Publicado em 2008 pela Imprensa de Ciências Sociais, o livro organizado por José Machado Pais, Clara Carvalho e Neusa Mendes de Gusmão e intitulado O visual e o quotidiano surge como consequência de um seminário realizado no Instituto de Ciências Sociais sob a mesma denominação. Esta publicação reúne textos da autoria dos participantes neste encontro científico, revelando-se um importante contributo para repensarmos o papel da visualidade nos processos sociais. Olhares múltiplos, provenientes da sociologia, antropologia, história, filosofia ou museologia, insinuam a necessidade de uma reflexão interdisciplinar dedicada a esta dimensão da vida colectiva. Distintas perspectivas, tributárias de diversos patrimónios metodológicos e conceptuais, permitem enriquecer o debate, desvelando a forma como o olho e o olhar, a imagem e o imaginado, o observador e o observado podem ser apreendidos pelas ciências sociais e humanas. O caminho comum proposto aos autores foi o de conceberem o visual em articulação com o quotidiano. Neste desígnio expressa-se um desejo de descoberta das matérias subtis presentes no horizonte do perceptível, através das quais se forjam e exibem identidades, representações e projectos. José Machado Pais, na introdução à obra, justifica o propósito científico do desafio lançado: “a vida quotidiana é um terreno onde se vive a experiência antropológica do olhar, de uma vadiagem de olhar — teoricamente sensível — […] na realidade quotidiana, o visual torna-se um ‘centro polimórfico’ que deve ser interpretado, mas também pode ser meio de interpretação: ‘objecto e método’ de pesquisa.”

Esta é uma obra que merece elogios não apenas pela qualidade das intervenções que acolhe, mas igualmente pela actualidade e pertinência da temática tratada. Diga-se, em abono da verdade, que as ciências sociais parecem ainda pouca atentas à especificidade da visualidade na constituição dos processos sociais. Se exceptuarmos a antropologia visual, uma subdisciplina com uma história centenária e um riquíssimo património teórico-metodológico, a utilização das denominadas metodologias visuais na pesquisa e na construção de representações científicas é perfeitamente residual. Com efeito, e esse parece ser um diagnóstico que merece consenso, a academia sempre manifestou alguma relutância em trabalhar com a imagem, esconjurando o visual como obscura tentação de um mundo em progressiva mediatização e deslumbramento imagético. Esta é, contudo, uma situação que tende a inverter-se. O logocentrismo da academia tem sido desafiado por uma nova geração científica mais predisposta a acolher aparatos heurísticos e tecnológicos renovados (Marcus Banks, Visual methods in social research, Londres, Sage Publications, 2001). Esta tendência não é seguramente estranha à progressiva centralidade que os complexos circuitos imagéticos e as tecnologias audiovisuais assumem no mundo globalizado, compondo novas realidades empíricas que exigem estudo detalhado e uma agenda científica reconciliada com este domínio da vida social. Na verdade, a importância desta dimensão parece particularmente patente no mundo contemporâneo, justificando uma congregação de esforços disciplinares variados em torno de espaços de investigação emergentes, de que são exemplos os Estudos Visuais ou a área disciplinar da Cultura Visual (Nicholas Mirzoeff,  An introduction to visual culture, Londres e Nova Iorque, Routledge, 1999; John Walker e Sarah Chaplin, Visual culture: an introduction, Manchester e Nova Iorque, Manchester University Press, 1997). Esta obra, de certo modo pioneira no contexto nacional, pode ser enquadrada no âmbito destas dinâmicas.

O volume encontra-se dividido em duas partes. A primeira parte, intitulada «A fotografia, o quotidiano e a cidade», é dedicada a esta tecnologia, tida quer enquanto mecanismo de mediação, de captura e representação do visível, quer enquanto objecto de imaginação, habitáculo de imaginários e alegorias várias. O destaque oferecido neste livro à fotografia é compreensível. Desde a sua invenção, em 1827, esta foi sendo apropriada por diferentes agentes e instâncias sociais com propósitos dissemelhantes (científicos, artísticos, políticos, etc.). A fotografia, entretanto, generalizou-se, banalizou-se, fendendo territórios de práticas especializadas, convertendo-se em objecto de comunhão social, de produção de memórias e dizeres sobre o quotidiano. Teorizar o observador e o observado é compreender a epistemologia do olhar tecnologicamente assistido. Como sugerem os autores, a câmara determina os lugares possíveis da relação óptica, destinando diferentes papéis e poderes às entidades que se dispõem diante ou detrás da objectiva fotográfica. Ao retratarmos prenunciamos um desejo de captura da realidade, de suspensão do espaço-tempo, perpetuamos memórias que são denunciadoras de um estado ontológico e de uma condição histórica.

Nos textos que inauguram esta primeira parte somos convidados a reflectir sobre a relevância da fotografia enquanto recurso científico ao serviço das ciências sociais. Os argumentos expressos resgatam um debate epistemológico fundamental sobre a natureza heurística da imagem, que tende a oscilar entre duas concepções divergentes: a reflexiva-colaborativa e a naturalista-realista. Ambas ponderam as qualidades e limites da imagem polissémica, retirando daí consequências epistemológicas díspares. Mais próximo da primeira concepção, José de Souza Martins questiona as propriedades objectivas da fotografia inspiradas pelo paradigma positivista, sugerindo, ao invés, uma imagem repleta de sentidos imaginários e estéticos sociologicamente densos. Por seu turno, Carlos Feixa e Laura Porzio desvendam-nos o potencial de uma etnografia auxiliada pela objectiva da câmara, poderosa ferramenta de averiguação da expressividade colectiva das culturas juvenis urbanas. Situando-se noutras latitudes teóricas e anunciando outras preocupações, os textos de Maria do Carmo Serén e de Margarida Medeiros exploram a fotografia enquanto dispositivo situado, reflexo de tempos e espaços sociais. Ambas deambulam por entre retratos de pessoas ou paisagens citadinas, figurações que incorporam o espírito do tempo, uma condição histórica assinalada por movimentos psicológicos, sociais e ideológicos que concorrem para uma mundividência.

Se a primeira parte é basicamente organizada em torno da desconstrução de uma tecnologia e dos seus usos sociais, a segunda parte orienta-nos para uma questão fundamental longamente debatida no contexto das ciências sociais: os mecanismos de representação. Em comum, os autores partilham o património disciplinar e os sujeitos e objectos da etnografia como actores de uma narrativa histórica. Sob a temática «Tradições, representações e experiências», examinam-se diferentes usos e vivências da imagem etnográfica, contributos inestimáveis para uma compreensão mais fiel dos roteiros antropológicos. Apesar de permanecer ainda uma disciplina de palavras, como sugeriu Margaret Mead há mais de três décadas [Margaret Mead, «Visual anthropology in a discipline of words», in Paul Hockings (ed.), Principles of Visual Anthropology, Berlim e Nova Iorque, Mouton de Gruyter, 1995 (1975), 3-12], parece-nos um facto inquestionável que a imagem e a visualidade têm desempenhado um papel basilar na configuração da antropologia. O terreno é, desde longa data, alvo do escrutínio do olhar. A fotografia, o cinema e o vídeo, mais recentemente o multimédia, têm sido companheiros de explorações etnográficas, testemunhando e eventualmente concorrendo para as graduais mutações do modelo antropológico. Os textos contidos nesta secção sugerem uma navegação por uma cartografia do visível que muito nos diz sobre a forma como se foram forjando as identidades colectivas, os imaginários de nação e de alteridade.

A primeira contribuição cabe a João Leal, que procede a um breve inventário da utilização das imagens (desenho, fotografia, filme) na etnografia portuguesa, demonstrando como estas foram usadas em função de práticas e paradigmas disciplinares particulares, servindo para a edificação de retratos do povo e da cultura popular portuguesa. Por seu turno, Clara Carvalho recolhe dos registos fotográficos coloniais indícios da forma como o outro exótico foi produzido enquanto representação imagética. Debruçando-se sobre retratos de mulheres elaborados entre 1945 e 1974 na Guiné-Bissau, a autora desvenda a dimensão política do acto fotográfico, o olhar como mecanismo de dominação (simultaneamente masculina e colonial). Os percursos em torno da tradição e da memória etnográfica são também examinados à luz de experiências e linguagens inovadoras, cabendo a José da Silva Ribeiro e a Nuno Porto o papel de revelação de novos exercícios na representação das culturas. O primeiro, partindo de uma experiência etnográfica multissituada e também multissensorial e multivocal (ritual da coroação de Reis Congo), defende a enorme relevância das tecnologias e linguagens digitais para a promoção de uma prática mais consentânea com as contemporâneas exigências epistemológicas, éticas e políticas do acto antropológico. O segundo encerra esta publicação debruçando-se sobre o campo museológico, repensando o museu enquanto espaço ritualizado de usufruto estético, lugar de experiências transformativas do sujeito.

De acordo com uma epistemologia do olhar, ver é conhecer, fabricar paisagens visíveis é designar coordenadas para uma particular orientação no mundo. Uma sociedade imersa na imagem e no audiovisual, altamente globalizada e tecnologicamente dependente exige que se pense, de modo integrado, o lugar do olhar e do perceptível no quotidiano, as formas emergentes de visualidade e as novas imagens como elementos fundamentais à construção dos mitos colectivos. Este é um desafio lançado às ciências sociais, que, tradicionalmente, têm privilegiado uma abordagem dual da imagem, tida ora como ferramenta metodológica, ora como objecto de estudo. Um encontro entre estes dois horizontes programáticos parece-nos essencial, em benefício de uma conceptualização e operacionalização mais sólida e coerente da visualidade. O conjunto de textos acolhidos nesta obra convida-nos, precisamente, a traçar novas linhas para um exercício de reflexão sobre o olhar e as extensões tecnológicas que o amparam.

 

Ricardo Campos

CEMRI, Universidade Aberta

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