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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.194 Lisboa  2010

 

Reflexões em torno do conceito de anonimato**

 

Catarina Frois

CRIA-ISCTE/IUL, Av. das Forças Armadas, 1600-083 Lisboa, Portugal. catarina.frois@netcabo.pt

 

Partindo de uma análise do recurso ao anonimato nas associações de 12 Passos enquanto instrumento mediador das relações entre membros e não-membros, este artigo procura reflectir sobre outros contextos em que o anonimato é utilizado e quais as suas funções e características a um nível mais abrangente e enquanto modelador das relações sociais.

Palavras-chave: anonimato; privacidade; relações sociais.

 

Reflecting upon the concept of anonymity

Starting from an analysis of the uses of anonymity in 12 Step associations — namely as an instrument used by members to manage personal information, both in relationships with other members as well as non-members — this article aims to extend the results of this study to different contexts where anonymity is resorted to, identifying its uses and characteristics at a broader level, as a mediator of social relationships.

Keywords: anonymity; privacy; social relationships.

 

Introdução

No estudo das associações de 12 Passos em Portugal — as Famílias Anónimas, os Alcoólicos Anónimos e os Narcóticos Anónimos (Frois 2008a, 2008b, 2009a e 2009b) — a minha principal preocupação foi compreender a importância do anonimato nesse contexto, quais as suas especificidades e de que forma poderia sustentar uma teorização mais abrangente das relações sociais que não se circunscrevesse apenas ao meu terreno de análise.

Partia da premissa de que o anonimato, embora sendo definido como a ausência do nome da pessoa e a impossibilidade de a identificar, não carecia do desconhecimento proporcionado pela interacção não presencial. O que verifiquei nas associações de 12 Passos ao longo da minha pesquisa etnográfica foi que o anonimato não corresponde apenas à ausência de identificação no sentido legal e burocrático, nem somente à impossibilidade de identificar laços familiares ou reconstruir histórias pessoais. O recurso ao anonimato implica a verificação simultânea de ambas as condições, sendo o elemento-chave que permite aos membros gerirem a divulgação e ocultação da sua informação pessoal, assumindo diferentes papéis e diferentes identidades consoante o contexto de interacção em que se encontram.

O tema do anonimato tem vindo a assumir uma importância notável no estudo da sociedade contemporânea, nomeadamente numa conjuntura em que os sistemas de vigilância implicam um conhecimento cada vez maior da pessoa, procurando identificá-la, detectá-la e reconhecê-la seja através da identificação por impressões digitais, da leitura do ADN ou das câmaras de videovigilância (Monahan, 2006; Oravec, 2003; Marx, 1999; Lyon, 2003 e 2007; Frois, 2008a; Froomkin, 1999; Ceyhan, 2006; Norris e Armstrong, 1999). Alguns destes autores defendem que nos dias de hoje o direito ao anonimato, à privacidade e à confidencialidade das pessoas está em risco devido ao uso de novas tecnologias de informação e comunicação que actuam como um forte mecanismo de recolha de informação pessoal. Assim, a possibilidade de se agir anonimamente estará também em vias de extinção, uma vez que, tendencialmente, todos passamos a poder ser identificados, no sentido de conhecidos e reconhecidos.

O que me proponho neste texto, começando por apresentar as associações de 12 Passos e a importância que o anonimato aí assume, é questionar este paradigma, mostrando como o recurso ao anonimato cumpre uma função instrumental, definindo não só o próprio espaço onde se desenrola a interacção — tornando possível a sua existência —, mas, em simultâneo, traçando os contornos da própria relação entre membros. Uma vez que estas temáticas têm vindo a ser tratadas sobretudo por sociólogos, historiadores e cientistas sociais, espero ainda conseguir mostrar, através de uma incursão noutros terrenos, o contributo que a antropologia tem para oferecer através da conjugação da sua vertente emprírica, analítica e teórica.

 

As associações de 12 Passos

As associações de 12 Passos existem por todo o mundo e seguem uma filosofia criada nos Estados Unidos da América nos anos 30 do século passado por Bill W. e Dr. Bob, dois homens cujo alcoolismo os conduziu a uma ruptura pessoal, familiar e profissional extrema. Após várias tentativas para abandonarem esta dependência (Hartigan, 2000; Kurtz, 1991 [1979]), e considerando que só através da ajuda entre pares o conseguiriam, formularam uma “filosofia” dirigida a alcoólicos que, na sua maioria, tinham já procurado tratamento na medicina e na psiquiatria, a qual defendiam que conduziria a um progressivo estado de abstinência do álcool. Esta filosofia, que definem como “espiritual”, tem como principal espaço de actuação o encontro semanal de pessoas com o mesmo problema (as reuniões). Através da troca de experiências, estas pessoas partilham um processo terapêutico que as conduz à “recuperação” do alcoolismo. Assumindo que padeciam de uma doença crónica associada a uma condição médica e que não deviam ser encarados como pessoas pecaminosas ou de má formação, estes grupos vieram a reunir um número cada vez maior de membros, dando origem à associação ainda hoje conhecida como Alcoólicos Anónimos.

A publicação, em 1939, de um livro com o mesmo nome vai cunhar o que é esta associação e explica de forma paradigmática o seu propósito: destina-se a “alcoólicos” que são “anónimos”, isto é, tem em vista portadores da doença do alcoolismo, não existindo qualquer líder ou representante da mesma.

Em linhas gerais, podemos considerar que o sucesso dos Alcoólicos Anónimos ao longo de várias décadas e a sua expansão pelo mundo radicam na simplicidade do modelo que defendem: (1) a organização assenta num modelo democrático, de participação igualitária, marcada pela ausência de controlo formal ou de líderes; (2) o modelo terapêutico é operacionalizado através de “sugestões” e não de regras a que todos tenham de corresponder de igual modo; (3) a participação é voluntária, autónoma e independente de membro para membro, não há sanções ou pagamentos; (4) as reuniões são efémeras no tempo, decorrem num espaço que tem múltiplas funcionalidades e que não é pertença física das associações; (5) a principal característica de qualquer associação de 12 Passos é a sua componente terapêutica direccionada para uma patologia ou doença em concreto; (6) o elemento espiritual, na formulação “Deus conforme cada um O concebe”, obedece à mesma característica de democratização de valores e perspectivas.

Estas prerrogativas, a que está inerente uma complexa organização em termos burocráticos e processuais, foram adoptadas por numerosas associações de 12 passos que se seguiram aos Alcoólicos Anónimos e aplicadas a problemas tão diversificados como a toxicodependência, a obsessão com o trabalho, os distúrbios sexuais ou de consumo. Ou seja, este modelo foi adaptado a diferentes patologias em que se verificam comportamentos obsessivos, autodestrutivos, e em que as pessoas se assumem como incapazes de prosseguir uma vida estável e “sã”.

De que forma é levada a cabo a terapia entre pessoas que sofrem do mesmo problema e que procuram este tipo de ajuda, rejeitando por completo uma abordagem médica (que é tendencialmente a que se associa a quem sofre de uma “doença”)? Segundo a filosofia das associações de 12 Passos, a terapia faz-se através da sociabilidade e da troca de experiências entre pessoas que entendem ser suas semelhantes, isto é, que tenham tido as mesmas trajectórias de vida. Consideram que a “partilha” de experiências passadas através da narrativa oral durante os encontros é libertadora, quase confessional, num espaço em que estão ausentes juízos de valor ou estigmatização. Nesse lugar, e durante os noventa minutos que duram as reuniões, redefinem-se e transformam a concepção que têm de si próprios e dos seus comportamentos. Nos diferentes grupos que estudei, estas eram pessoas que tinham um passado de consumo de álcool — os Alcoólicos Anónimos —, de consumo de drogas — os Narcóticos Anónimos — ou pessoas com familiares com estes comportamentos — as Famílias Anónimas.

O objectivo de estudar três associações diferentes no decurso de um trabalho de campo prolongado (2003-2007), que se traduziu na frequência dos encontros, na realização de entrevistas aprofundadas e de histórias de vida parciais, foi o de ter uma perspectiva comparativa (algo que é inédito na produção sobre o tema nas ciências sociais) que demonstrasse a aplicação deste modelo a várias problemáticas e a pessoas que diferiam quer nas suas práticas de consumo, quer nas consequências que estas tiveram nas suas vidas — e que estão directamente implicadas na decisão de frequentar as associações. De facto, esta comparação viria a revelar-se frutífera. Permitiu perceber, desde logo, que o modelo dos 12 Passos é aplicado, racionalizado e verbalizado de forma igual nas três associações e nos diferentes grupos que acompanhei (cerca de dez, no total). Neste sentido, a literatura existente sobre grupos de 12 Passos noutros locais do mundo reiterou ainda mais a minha constatação. O estudo de Mäkela et al. (1996) sobre os Alcoólicos Anónimos em oito países1 é o melhor exemplo para ilustrar a forma como o modelo dos 12 Passos se expandiu e extravasou as fronteiras do país em que foi criado, os Estados Unidos da América, e as adaptações que conheceu por todo o mundo, observáveis, entre muitos aspectos, na repetição de palavras, rituais e modelos de conduta. Ou seja, o estudo comparativo que desenvolvi foi pertinente tanto por fornecer uma descrição e interpretação da presença e actuação dos 12 Passos em Portugal como por permitir estabelecer comparações mais alargadas entre diferentes associações com a mesma filosofia; em ambas as dimensões trata-se de um estudo inédito nas ciências sociais.

O facto de considerar três associações distintas implicava ainda considerar as suas diferenças, tendo em conta, em primeiro lugar, que o problema inicial que leva uma pessoa a procurá-las é distinto. Nos Narcóticos Anónimos os membros afirmam ser “adictos”, portadores de uma doença obsessiva e compulsiva que se traduz no consumo autodestrutivo de drogas. Os membros dos Alcoólicos Anónimos, como o nome indica, têm o mesmo tipo de comportamento em relação ao consumo de alcóol. Nestes dois casos, as pessoas sofrem de uma dependência de substâncias (Frois 2009b). No caso dos membros da primeira associação, a dependência acontece a maior parte das vezes durante a adolescência, prolongando-se até à idade adulta, e as consequências deste consumo revelam-se, em poucos meses, de forma muito explícita: roubos, mentiras, deterioração física acelerada. No segundo caso, é um consumo que se prolonga por vários anos até se manifestar em altercações públicas, incumprimento no trabalho ou nas relações familiares. Nas Famílias Anónimas, por outro lado, os membros frequentam as reuniões em consequência do efeito que o consumo de substâncias por parte de algum membro da família tem sobre o agregado familiar. E este consumo revela-se problemático tanto em virtude dos seus laços de parentesco — e que em Portugal verifiquei ser principalmente mãe-filho — como pela sua própria actuação face ao mesmo. Dito por outras palavras, também os familiares entram num processo autodestrutivo de mentiras, encobrimento da situação e, muito frequentemente, de semelhante autodegradação física e emocional.

Em última análise, o que esta comparação permite é perceber que, mesmo estando a lidar com diferentes padrões de consumo e diferentes trajectórias de vida, as semelhanças que apresentam são as mesmas, o que explica, em parte, o sucesso e a aplicabilidade do modelo dos 12 Passos.

Estamos a falar de histórias de vida particulares: a do alcoólico que bebeu ao longo de trinta anos e que, progressivamente, perdeu o emprego, se separou da família, atingindo um estado de degradação extremo; a do toxicodependente que contraiu sida ou hepatite devido à partilha de seringas, que praticou roubos, em alguns casos esteve preso, ou teve de recorrer à prostituição para financiar o seu consumo de drogas; ou a de mães que tinham de dormir com a carteira debaixo da almofada, outras alvo de agressões físicas, ou que tiveram, inclusivamente, de pôr os filhos fora de casa devido a situações que consideravam insuportáveis. Ou seja, por muito diferentes que sejam os problemas vividos, todos os membros relatam um padrão de autodestruição pessoal, de vergonha e culpa pelas suas acções, bem como um sentimento de isolamento face à sociedade em que estão inseridos. Neste sentido, para os membros, o apelo ao encontro com pessoas que apresentam um percurso de vida semelhante ao seu ocorre por estarem num espaço em que têm a possibilidade de revelar aquilo que escondem dos outros na sua vida quotidiana; nas associações, ao invés, sabem que, ao divulgarem abertamente o seu passado e a sua condição, não serão olhados com receio e desconfiança, nem serão tidos como “uns falhados”.

 

Diferentes tipos de anonimato nas associações de 12 Passos

Qual é a importância do anonimato num contexto como este? Em que medida é que está presente, uma vez que as pessoas aparentemente se conhecem, revelam a sua intimidade e as histórias pessoais que consideram mais inconfessáveis? De que anonimato falam os membros em relação a si próprios e que anonimato é esse que se menciona em todas as reuniões como forma de garantir a confidencialidade do que foi dito e a privacidade de quem disse?

À medida que analisava a complexidade das transformações identitárias que se operavam nestas pessoas — de “bêbedo” para “alcoólico”, de “drogado” para “adicto”, de “falhado” para “co-dependente” —, compreendia a importância que assumiam estes espaços de encontro e o processo terapêutico que ali se desenrolava. Para além disso, e precisamente pelas trajectórias que sumariamente descrevi acima, algumas das expressões que mais ouvi serem referidas pelos membros eram a de sentirem vergonha e culpa pelas suas acções passadas. Estas referências começaram por explicar, em certa medida, qual a importância do recurso ao anonimato neste contexto e as diferentes facetas que este assumia. Isto é, por não existir uma filiação obrigatória para a frequência dos encontros, por nada mais ser pedido aos membros, para além de se reconhecerem como doentes, esta possibilidade de escolha do que cada um divulgava sobre si próprio revelava em pleno a importância do recurso ao anonimato. Como veremos nas páginas que se seguem, num contexto marcado por não-ditos e por silêncios, constatei que os membros sentiam necessidade de separar os dois papéis que desempenhavam e que circunscreviam também a dois espaços: o de “doente” e o de “normal”, a que correspondia o espaço físico “dentro” e “fora” das reuniões.

Como ficará explícito, ainda que os membros partilhem um sentimento de igualdade, procurando abolir as suas diferenças (económicas, sociais, familiares) durante as reuniões, ao mesmo tempo reconhecem que tal só sucede nesse mesmo contexto. Fora delas, omitem a informação que ali revelam, expondo o que ali omitem, isto é, o seu nome, a sua morada, a sua profissão, como disse, a sua identificação legal e burocrática, aquilo que os identifica. Vejamos como se operacionaliza na prática este recurso ao anonimato.

Dentro das reuniões, o anonimato é usado como forma de anular as distinções entre membros, isto é, como os próprios dizem, chamar a atenção para aquilo que os une, e não para o que os diferencia. De que forma o conseguem? Apresentando-se apenas pelo primeiro nome, por exemplo, “sou o Pedro e sou um alcoólico”, não existindo qualquer referência à profissão que têm ou ao rendimento que auferem. Defendem que só sem a presença de elementos diferenciadores se torna possível que todos se assumam apenas como pessoas doentes. Nas suas palavras, “não há doutores nem engenheiros, aqui todos somos iguais”. Um retrato sociodemográfico é-nos útil para ilustrar este ponto: nas reuniões estavam presentes empregadas domésticas, professores universitários, operários da construção civil ou advogados. Aparentemente, num outro contexto, seria improvável que estas pessoas se encontrassem ou que partilhassem entre si experiências pessoais, ou mesmo que não fosse dada preferência àquele que tivesse um maior grau de instrução ou uma posição mais destacada socialmente. Recorrendo ao anonimato pessoal, dão primazia ao que ali os une e é em função da sua doença que interagem com os restantes membros.

Por outro lado, é essa condição que não revelam para fora das associações e este é um aspecto de suma importância para compreendermos em que medida é que os membros falam de anonimato. Devido ao estigma social associado a um passado de consumo de drogas ou álcool ou à existência de um familiar nesta situação, são muito poucos os casos dos membros que revelam para o exterior (salvo, como dizem, com algumas pessoas com quem têm maior intimidade) que são membros dos Alcoólicos Anónimos, dos Narcóticos Anónimos ou das Famílias Anónimas. Fora das reuniões procuram ser pessoas “normais”, distinção esta que é formulada pelos próprios. Procuram proteger-se, assegurar a sua privacidade, o seu anonimato.

Ser-se “alguém”, como diz Pina Cabral (2005), implica que se assumam responsabilidades, implica sociabilidade, reconhecimento. No entanto, para além do que diz o autor, que o nome ou o anonimato são as duas opções que as pessoas têm para assumir ou recusar serem responsáveis pelas próprias acções, o que vemos no contexto das associações de 12 Passos é que esta é uma escolha simultânea. Qual é então a importância da omissão do nome? Que nome querem ocultar e o que é que isso acarreta? Em certa medida, Radcliffe-Brown (1965 [1952], p. 147) dá-nos a resposta a esta pergunta quando diz:

Evitar o nome pessoal é o reconhecimento simbólico do facto de que naquele momento a pessoa não está a ocupar a sua posição normal na vida social. Pode-se acrescentar que a pessoa cujo nome está temporariamente suspenso é considerada como tendo naquele momento um estatuto ritual anormal.

É uma “dupla vida dupla”, como diz Erving Goffman (1963), o desempenhar de dois papéis: dentro das reuniões são doentes; ao fim de uma hora e meia de encontro, essa sua identidade é omitida: são pais, empregados de escritório, vivem em tal sítio. Vemos então que o anonimato é usado quer para nivelar as diferenciações sociais entre membros (dentro das reuniões), quer como forma de ocultar o estigma (fora delas).

Contudo, existem ocasiões em que os membros “quebram o seu anonimato”, seja com outros membros com quem estabelecem relações preferenciais e de amizade, seja fora das reuniões, com pessoas que consideram ser mais íntimas, pessoas que consideram “estar preparadas” para aceitar esta sua “realidade”. Quebrar o anonimato é mais do que revelar um segredo: para outros membros, revela-se a casa, o nome de família. Para não-membros, revelam o seu estigma, a sua doença. O que estão a revelar, quebrando o anonimato, é a sua intimidade, eliminando, de certa forma, as fronteiras que delimitaram para si próprios na interacção com outros.

A possibilidade de recurso ao anonimato é, em certa medida, o que torna exequível a frequência e permanência dos membros nestas associações, tornando-os, como dizem, “membros responsáveis e produtivos da sociedade” em que vivem. Com a frequência continuada de reuniões dá-se a mudança de comportamentos autodestrutivos, obsessivos e compulsivos para uma racionalização de quem são, da sua própria identidade, num processo de aceitação de si próprios e de recuperação das várias esferas da sua vida. Na maior parte dos casos, os membros abraçam esta nova “filosofia de vida”, que assenta na humildade, na honestidade, numa conduta saudável. Mas até que ponto é que tal se verifica nos casos em que não podem ou não conseguem preservar a sua escolha, o seu direito, como dizem, ao anonimato?

Este é o grande paradoxo que encontrei nestas associações e no discurso dos membros, talvez o que mais útil se revelou para que pudesse compreender em profundidade de que forma é que este é um conceito operativo relevante para pensar determinadas relações sociais. O paradoxo de que falo explica-se em poucas palavras: em situações em que os membros não consigam salvaguardar o seu anonimato, seja por indiscrição de outros membros ou por serem obrigados a revelar a sua identidade, recusam de forma peremptória a sua participação, mostrando de certo modo o que é a face oculta das suas relações. Não é invulgar, por exemplo, que dois membros se cruzem no espaço público e não se cumprimentem, como seria de esperar que sucedesse, tratando-se de pessoas que partilham uma intimidade tão manifesta como a que sucede nas reuniões. Fazem-no enquanto acordo tácito de que fora das reuniões não é esta a identidade que assumem e como tal não querem que seja divulgada. Porém, quando confrontados com uma situação em que tal sucede, em que não conseguem manter o seu anonimato, assumem uma posição de defesa e de indignamento, sobretudo em contextos em que estão presentes membros e não-membros. Se cabe a cada um escolher o que revela de si próprio, e se na maior parte dos casos as pessoas optam por não divulgar a sua pertença a estas associações, quando confrontados com situações em que isso não é possível, a intimidade transforma-se em desconhecimento, o amigo em estranho. Nas palavras dos próprios, se encontram algum membro numa situação em que estão presentes terceiros, exigem que seja mantida a confidencialidade da sua pertença a estas associações e preservada a sua privacidade.

Mesmo dentro de reuniões, quando confrontados por mim sobre a atitude que tomariam caso tivessem de preencher uma ficha de inscrição da qual constasse o seu nome completo, a sua morada ou a sua profissão, os membros mostraram-se indignados, afirmando que preferiam sair e que “não têm nada a ver com isso”. Aparentemente, é uma contradição. Uma vez mais, com pessoas com quem partilham intimidade, como enquadrar uma expressão como “não têm nada a ver com isso”?

Vemos que é através do anonimato que os membros gerem as suas relações com membros e não-membros, no que parece ser um livre-trânsito em que gerem a sua identidade de “doente” e a de “normal”, entre a revelação e a ocultação do estigma. E tal sucede por considerarem ser portadores de uma doença que é incurável, nunca podendo vir a ser pessoas “normais”. Estamos então perante um espaço liminar celebremente designado por Victor Turner (1995 [1969]), mas aqui a passagem de um estado para outro nunca é de facto completada. Como diz Pina Cabral (2000), centro e margens fazem parte da mesma realidade que estrutura a vida social destas pessoas e que ao mesmo tempo lhes concede um lugar, dentro e fora.

 

Outros contextos de análise do anonimato

Independentemente das várias formas e contextos em que é usado o anonimato, considero que o seu apelo se prende com a possibilidade de a pessoa estabelecer uma relação com os outros sem que lhe seja atribuída responsabilidade pela sua própria acção. Mas tal não significa que aquilo que a pessoa queira ocultar ou esconder esteja relacionado com a ilegalidade ou mentira, mas sim que tenha a possibilidade de escolher o que revela de si própria e em que contextos.

Ainda que nos dias de hoje haja mecanismos com diferentes graus de sofisticação de monitorização e identificação de pessoas, o que este caso de estudo nos mostra é que continuam a existir espaços de interacção em que é possível gerir a sua identidade e acções, preservando o seu anonimato, e manter privadas determinadas esferas da sua vida.

Esta é a minha perspectiva, considerando o caso que estudei, embora tenha verificado que noutros contextos existem diferentes tipos de anonimato, com diferentes graus e diferentes propósitos. Ou seja, não é possível delimitar de forma estanque a definição deste conceito, uma vez que a sua ocorrência surge em contextos tão diversos como o da doação de óvulos ou de esperma, em que se procura que não exista uma relação de conhecimento entre as pessoas envolvidas; em chatrooms, em que as próprias condições de interacção não presencial que definem esses contactos permitem que os participantes encarnem diferentes personas, recorrendo a pseudónimos e/ou a avatares (Turkle, 1995); ou mesmo no caso do uso de linhas de apoio (como o SOS Criança ou o Apoio à Vítima), em que o conteúdo da informação é mais relevante do que quem a divulga, sendo esse, aliás, o principal objectivo do anonimato neste contexto.

Vejamos algumas análises antropológicas que se revelam interessantes para pensar a complexidade deste conceito noutros contextos, uma vez que diferem na forma como o anonimato é equacionado e são precisamente estas diferenças que nos permitem compreender a sua pertinência. Daniel Terrole (1996), no seu estudo sobre os sem-abrigo em França, mostra como ao longo da trajectória das pessoas que vivem na rua se opera um processo de “anonimização”, uma vez que perdem os seus traços distintivos. Isto acontece, segundo o autor, pelo facto de gradualmente fazerem parte de um grupo em que todos parecem iguais e ao mesmo tempo ninguém em particular: visualmente, os sem-abrigo acabam por ter o mesmo tipo de andar, trajar o mesmo tipo de roupas, que na maior parte dos casos não são à sua medida por terem sido doadas por outros. Isto é, a sua identidade enquanto pessoas que ocupam um lugar social reconhecido e legitimado vai sendo gradualmente abolida e perdida, substituída por um estatuto de desconhecido e indiferenciado.

A formulação de Terrole (1996) com base num progressivo indiferenciamento e indistinção da pessoa é relevante para pensar o anonimato de que falei nas associações de 12 Passos. Como vimos acima, um dos principais objectivos do anonimato é precisamente o de indiferenciar os membros enquanto pessoas com uma determinada individualidade, fazendo com que ao falar-se de um membro dos Narcóticos Anónimos não estejamos a falar do sujeito a, b ou c, mas sim de alguém que tem um problema relacionado com o consumo de drogas. Por outro lado, como vimos, essa mesma indistinção é útil fora do contexto das reuniões: as pessoas ocultam a sua identidade de doentes, fazendo parte do que tantas vezes se chama a “massa anónima” que compõe a sociedade. Podemos então dizer que uma das especificidades do anonimato é a de permitir tornar a pessoa indistinguível.

Mas tal pode também ser motivo de rejeição, isto é, este estado de anonimato involuntário, característico das metrópoles, o estranhamento e distanciamento que Simmel (1977 [1908]) tão bem descreveu, pode servir de estímulo para reforçar laços comunitários ou mesmo a sua reinvenção. É o que nos descreve Augustin-Marie Milandou (1997), a propósito da comunidade de Brazzaville onde os habitantes fazem um esforço para criar laços de familiaridade que muitas vezes são fictícios, procurando recuperar os laços comunitários que marcavam a sociabilidade e o relacionamento das pessoas neste contexto. O que as associações de 12 Passos mostram é que o comunitarismo não desaparece, mas antes assume diferentes configurações que comportam características que permitem à pessoa ser também ela móvel e transmutável. Então, a tendência que descreve Milandou encontramo-la também nos membros das associações de 12 Passos, embora, como vimos, com especificidades muito particulares: fora dos encontros, as pessoas confundem-se na multidão. Dentro deles, encontram um espaço onde partilham laços sociais, afectivos, comunitários, com outras pessoas com quem têm um forte vínculo pessoal e de intimidade. É precisamente a possibilidade de poderem gerir a sua identidade e a sua privacidade, no que revelam e no que ocultam, que faz com que consigam coexistir em simultâneo num espaço de reconhecimento e que é também de indiferenciação.

Ainda ao falarmos de conhecimento e de reconhecimento, em suma, de interacção pessoal, parece absurdo falarmos de anonimato. Como podem existir relações anónimas se presumirmos que qualquer relacionamento implica uma troca entre duas ou mais pessoas, isto é, como falar de anonimato e ao mesmo tempo de reciprocidade? É o que explora Monica Konrad (2005) num estudo empírico sobre doação de óvulos e anonimato na Grã-Bretanha. Este é um caso exemplar para responder a estas questões, uma vez que a autora mostra como as teorias da dádiva e da reciprocidade formuladas por Mauss e Manilowski podem ser reformuladas num contexto em que a relação entre as pessoas é definida pelo seu oposto, ou seja, pela “não-relação”. Konrad explica bem como no processo da doação de óvulos doador e recipiente não estabelecem uma relação de conhecimento e reciprocidade entre si, uma vez que a relação é pautada pelo anonimato, embora exista um “bem” que é trocado e partilhado, isto é, o óvulo, que o doador produz e que o recipiente irá fertilizar. Tal é importante, na medida em que a condição do anonimato neste contexto é o que permite, tal como no caso das associações de 12 Passos, que a própria interacção ocorra. Caso não existisse, haveria a possibilidade de uma atribuição de responsabilidade, uma consequência derivada da troca que iria além do propósito inicial que une as pessoas.

 

Conclusão

Como vimos acima, o anonimato nas associações de 12 Passos actua como uma forma de gestão das relações sociais dos membros e, se quisermos, a face com que escolhem apresentar-se: membros, “doentes” ou normais”. Em ambos os papéis uma dimensão é central: a da responsabilidade. Cada membro é responsável pelas suas acções passadas e presentes, é também responsável por si mesmo e, em certa medida, pelos outros com quem estabelece relações. No caso dos membros das associações de 12 Passos, o anonimato não é apenas uma forma de garantir a privacidade de cada um, ou de se ser inalcançável, no sentido que podemos atribuir ao anonimato que Monica Konrad encontrou no seu estudo sobre doações de óvulos.

Por paradoxal que possa parecer, para os membros das associações de 12 Passos é o anonimato que serve como garante de que cada um é responsável por si mesmo, pela sua conduta dentro e fora das reuniões, e responsável ainda pelos outros que vê e que ouve. Estamos perante dois fenómenos de anonimato que são distintos: um que é colectivo, que diz respeito ao grupo, aos outros membros, e outro que é individual, que se refere apenas a cada um e depende exclusivamente da sua decisão pessoal. Poderá parecer irónico falar-se da existência de anonimato quando a interacção é presencial, a intimidade é valorizada, a exposição voluntária da pessoa é levada ao extremo. Contudo, é de anonimato que falam os membros e, na realidade, é o seu anonimato que querem preservar, dentro e fora das reuniões. A equação de Victor Turner (1995 [1969], p. 96) sobre estrutura, communitas, liminaridade e ritos de passagem ilustra bem como ocorre a gestão da identidade pessoal neste contexto:

Nestes ritos, estamos perante um “momento dentro e fora do tempo” e dentro e fora da estrutura social secular, que demonstra, ainda que fugazmente, um reconhecimento […] de um laço social generalizado que deixou de existir mas que se tornou simultaneamente e ainda que fragmentado, numa multiplicidade de laços sociais [...] É como se existissem dois grandes “modelos” de inter-relacionamento, que se justapõem e que se alternam.

Considerando a ambiguidade descrita por Turner em que o sujeito se encontra perante um estado de liminaridade, numa passagem de um estado para outro, vale a pena ainda considerar o que diz sobre a societas, que, em meu entender, explica bem a forma como o anonimato funciona e é usado pelos membros das associações de 12 Passos, podendo ser extrapolado para outros contextos de interacção social. Diz Turner (1995 [1969], p. 203) que “a sociedade (societas) é mais um processo do que uma coisa — um processo dialéctico com fases sucessivas de estrutura e communitas. Parece existir [...] uma ‘necessidade’ humana para participar em ambas as modalidades”.

Em meu entender, o recurso ao anonimato na sociedade contemporânea apresenta-se como alternativa a um controlo físico, moral e social, criando condições para que determinados grupos (em alguns casos marginais) encontrem o seu lugar num todo social e cultural, ao mesmo tempo que mantêm a sua especificidade e a sua invisibilidade, isto é, a não divulgação ou a não exposição da sua existência. É uma estratégia de quase sobrevivência da intimidade e da privacidade pessoal e, em alguns contextos, é mesmo a pedra-de-toque fundamental para gerir as relações sociais.

 

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Notas

1 Islândia, Finlândia, Suécia, México, Estados Unidos da América (Califórnia), Polónia, Áustria, Suíça.

 

** Todas as traduções do inglês são da responsabilidade da autora.

 

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