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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.194 Lisboa  2010

 

As esferas seculares e religiosas na sociedade portuguesa

 

Steffen Dix

ICS, Universidade de Lisboa, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. e-mail: steffen.dix@ics.ul.pt

 

O objectivo principal deste artigo consiste em redesenhar as fronteiras e as sobreposições entre as esferas seculares e as esferas religiosas dentro da modernidade portuguesa. Metodologicamente, pretendo uma aproximação histórico-sociológica, comparando sobretudo as reconfigurações do catolicismo português em quatro épocas marcadas por diferentes condições socioculturais. Assim, proponho uma releitura dos processos da secularização em Portugal.

Palavras-chave: secularização; religião; história; sociologia.

 

The secular and religious spheres in Portuguese society

This article seeks to redesign the borders and the overlaps between the secular and religious spheres of Portuguese society. In methodological terms, I propose an historical-sociological approach, comparing especially the reconfigurations of  Portuguese Catholicism under different socio-cultural conditions during the 19th and 20th centuries. On the basis of this analysis, I revisit the dual perspective of being either religious or secular, and try to recognize the simultaneous existence and the link between the religious and secular spheres in a modern European society.

Keywords: secularization; religion; history; sociology.

 

As ambivalências na tese da secularização

A questão sobre o papel e a importância da religião numa sociedade moderna é um assunto público e fez parte, desde sempre, dos debates das ciências sociais. Porém, nos últimos anos surgiram cada vez mais dificuldades em compreender as dinâmicas da religião enquanto fenómeno social. Estas dificuldades baseiam-se principalmente em algumas afirmações contraditórias acerca da religião. Por um lado, chegam-nos repetidamente notícias sobre um declínio contínuo da prática religiosa, sobre igrejas vazias e sobre um abandono crescente da fé e das verdades religiosas. Por outro lado, no espaço público podemos observar com alguma frequência fenómenos que não parecem estar em consonância com uma aparente queda da importância da religião. O sucesso dos dias mundiais da juventude católica, um cardeal português que desperta alguma irritação pública ao falar abertamente de um “monte de sarilhos” provocados pelo casamento entre pessoas de religiões diferentes, o apelo permanente para a importância de um diálogo inter-religioso, ou o actual conflito em alguns países europeus acerca da construção de mesquitas, são apenas alguns exemplos de como assuntos religiosos (ou anti-religiosos) continuam a estar omnipresentes na nossa vida quotidiana. É esta situação contraditória que dificulta uma explicação conveniente sobre a situação da religião em sociedades modernas europeias. Parece que a religião em sociedades modernas oscila incessantemente entre a ausência e a presença, ou seja entre a invisibilidade e a visibilidade.

Um dos obstáculos principais para compreender cientificamente o fenómeno religioso consiste sobretudo no uso da(s) tese(s) da secularização, que aparece actualmente quase como uma palavra-chave para explicar a situação religiosa nas sociedades europeias. Contudo, a concepção da secularização revelou-se nos últimos tempos cientificamente pouco satisfatória, em particular, por duas razões. Em primeiro lugar, não existe nenhum consenso teórico sobre a interpretação da secularização1, que é, muitas vezes, marcada por um certo traço paradoxal. Por um lado, não há dúvidas sobre a existência dos processos da secularização que transformaram as sociedades europeias, nas quais se verificou, nos últimos anos, uma queda evidente da prática religiosa e da influência política ou moral das instituições religiosas, ou geralmente uma autonomização da sociedade civil perante as instâncias religiosas institucionalizadas. Por outro lado, existem vários indícios de que as mesmas instituições religiosas não estão dispostas a aceitar o papel marginal que lhes foi atribuído pelas teorias da secularização (Casanova, 1994, p. 5). Em segundo lugar, é possível observar em alguns estudos sociológicos a tendência para explicar realidades diferentes através de uma só ideia geral. Mesmo em espaços geográficos relativamente pequenos, como a Europa, não existe nenhuma situação religiosa homogénea que possa ser descrita através de um único modelo teórico. Particularidades nacionais, culturais e históricas impedem explicações que se baseiem simplesmente numa perspectiva global. Se as diversas condições (culturais, estruturais, institucionais) da modernização não permitem pensar em apenas uma modernidade, e considerando que não podemos falar apenas de uma forma de cristianização homogénea, temos de reconhecer que poderá haver também diversos tipos de secularização. Isto é, a situação religiosa na Europa não pode ser relatada partindo apenas de um modelo genérico da secularização (Greeley, 2003, p. 215)2. Estas dificuldades teóricas conduzem à necessidade de encontrar explicações para uma situação religiosa concreta que não se baseiem apenas numa narrativa geral da secularização. Por outras palavras, temos de concordar com Jürgen Habermas (2008, p. 36), que exigiu recentemente uma “nova maneira de ler a tese da secularização”, ou com Hans Joas (2007, p. 977), que procura um “cenário mais plausível” perante a secularização.

Como no resto da Europa, também em Portugal a religião parece ao mesmo tempo presente e ausente. Embora estudos quantitativos tenham verificado um óbvio declínio das práticas religiosas e do prestígio social da Igreja católica desde os anos 60, e sobretudo 70, quero sublinhar neste artigo a hipótese de que a realidade religiosa continua a ter — ao lado de uma realidade secular — um papel significante na construção da contemporaneidade portuguesa. Assim, procuro identificar histórica e sociologicamente algumas das dinâmicas mais importantes da religião dentro da sociedade portuguesa. Para o reconhecimento das mesmas pretendo responder principalmente a duas perguntas complementares: como é que a religião institucionalizada actuou e actua dentro da sociedade portuguesa, ou quais são historicamente as suas técnicas de afirmação ou reconfiguração? E será possível encontrar em Portugal uma realidade religiosa ligada apenas indirectamente às instituições eclesiásticas? Contudo, a minha intenção principal não é uma resposta integral a estas perguntas, mas sim uma tentativa de redesenhar em traços largos as fronteiras e as sobreposições entre as esferas seculares e as esferas religiosas. Com este objectivo em mente, e tendo em conta que o censo de 2001 apenas indicou, quando comparado com alguns outros países europeus, uma percentagem relativamente reduzida de portugueses que se identificavam como membros de uma religião não católica (2,49%), vou limitar-me, na minha argumentação, a observar as formas tradicionalmente mais importantes em Portugal, tais como o catolicismo português e a religiosidade popular. Isso não significa, no entanto, que a problemática da diversificação ou pluralização religiosas — patente sobretudo nos centros urbanos do país — deva ser menosprezada. Pelo contrário, devíamos sublinhar que existe uma necessidade urgente de continuar com estudos sociológicos e antropológicos que se dedicam à proliferação das minorias religiosas e de novas formas de religiosidade individual em Portugal3. Em termos práticos, procuro compreender certas incoerências que se revelaram em alguns dos inquéritos quantitativos sobre questões religiosas. Estas discrepâncias consistem, por exemplo, na diferença entre uma taxa relativamente baixa das práticas religiosas (16,2%, nula; 41,2%, rara; 15,5%, irregular; 27,1%, regular) (Cabral, 2001, p. 24)4 e uma taxa bastante alta daquelas que se reconhecem como pessoas religiosas (88,0%) e que acreditam em Deus (96,4%) (Halman, 2001, pp. 81 e 86).

Embora estes estudos quantitativos mostrem claramente tendências gerais, ou possam ser usados para uma comparação entre países diferentes, os mesmos continuam relativamente problemáticos no que diz respeito a afirmações genéricas sobre a significância ou a influência da religião na vida moderna. Tendo em consideração que a religião não é um fenómeno constante e imutável com um conteúdo fixo, certas declarações — por exemplo, sobre a frequência da missa — referem-se apenas às condições históricas e sociais de um sistema religioso específico durante um período concreto de tempo. Ou seja, o valor religioso e social da frequência da missa no início do século xxi não pode ser lido da mesma maneira que o valor de uma missa no fim do século xviii. É especialmente esta incongruência histórico-fenomenológica que torna difícil a relação axiomática entre um declínio da prática religiosa e a secularização de uma sociedade. Em consequência, é necessário repensar a perspectiva dualista de se ser ou religioso ou secular, tentando reconhecer a existência simultânea e a ligação entre as esferas religiosas e secularizadas numa sociedade moderna. Por outras palavras, a religião não tem de ser procurada além, mas sim dentro da modernidade. Esta pressuposição será um ponto central da argumentação seguinte.

 

A moldura metodológica

Na tentativa de estabelecer uma visão mais clara da ligação e da sobreposição das esferas religiosas e secularizadas em Portugal, proponho, em termos de metodologia, um estudo que compara sociologicamente diferentes épocas históricas. Devido sobretudo à limitação do espaço para este estudo, começarei no século xix, quando surgiram alguns dos primeiros textos pré-sociológicos sobre a situação religiosa em Portugal. Ou seja, para perceber o dinamismo do catolicismo português e a sua situação actual farei uma comparação sinóptica com três épocas anteriores que representam constelações divergentes entre religião e realidade sociocultural. A primeira abordagem histórica prende-se com o período do liberalismo. Segue-se o período da I República e, finalmente, o tempo do Estado Novo. A comparação destes três períodos históricos com a actualidade permitirá uma visão clara da dinâmica social da religião em diferentes contextos socioculturais. Tendo em conta que o catolicismo português se viu confrontado, especialmente nos últimos dois séculos, com enormes mudanças socioculturais, esta comparação histórica oferece uma excelente possibilidade de estudo, permitindo saber quais são as técnicas da afirmação e da reconfiguração de uma religião pública. Supondo que o catolicismo português continua a ser perfeitamente capaz de interagir com um mundo social em contínuas transformações, as suas competências ou técnicas de afirmação podem ser classificadas, por enquanto, através de quatro grupos principais: (a) intervenção em questões éticas ou sociais; (b) intervenção, correcção ou crítica de decisões políticas ou económicas; (c) manutenção das crenças e costumes tradicionais; (d) estabilização das identidades nacionais. Para além destas competências principais, podem também existir outras menores, tais como o controlo ou a regulação da pluralidade religiosa ou alguns serviços indirectos (Davie, 2007). Numa comparação sumária destas competências dentro da história religiosa de Portugal perceberemos se o actual declínio da influência moral e política da religião, ou seja a secularização, é um fenómeno irreversível e típico apenas da segunda metade do século xx.

A segunda parte constitui uma fenomenologia sintética do catolicismo oficial e da religiosidade popular. Por outras palavras, numa aproximação à situação religiosa em Portugal, temos de reconhecer que há uma certa religiosidade fora da regulamentação ou da estruturação da Igreja católica. E, existindo fora das instituições religiosas oficiais, esta forma de religiosidade esquiva-se a quase todas as medições quantitativas. Sob a religiosidade popular entendo, por enquanto, uma certa virtuosidade religiosa que é (ao contrário da superstição ou da heresia) aceite, tolerada e de vez em quando apropriada pela Igreja católica. Apenas uma análise da relação entre catolicismo tradicional e religiosidade popular oferece uma imagem mais completa da situação religiosa em Portugal.

 

As afirmações e reconfigurações históricas do catolicismo português (séculos xix e xx)

Reconhecendo que o espaço geográfico de Portugal foi marcado, pelo menos até ao século xv, por uma certa pluralidade religiosa (Dix, 2008) e que a cristianização sistemática começou apenas a partir do fim da Idade Média ou da Contra-Reforma (Almeida, 1974, p. 19), podíamos afirmar que a suposta “idade dourada” do catolicismo português corresponde, grosso modo, às décadas depois do início da expansão portuguesa até à era pombalina. A Igreja católica portuguesa controlou a prática religiosa especialmente a partir do Concílio de Trento (1545-1563) e durante o Antigo Regime, sendo detentora de um vasto poder económico, de uma autoridade ideológica e de “um papel importante na moldagem das mentalidades e na orientação dos comportamentos e atitudes” (Neto, 1993, p. 265). Neste caso, não existe a mínima dúvida de que a Igreja influenciou profundamente, pelo menos durante mais de trezentos anos, as questões éticas ou sociais e as decisões políticas ou económicas da sociedade portuguesa. Durante este período, a Igreja católica conservou as crenças e costumes tradicionais e estabilizou (ou criou) a identidade nacional. Todavia, a situação mudou drasticamente com a política antijesuíta do marquês de Pombal e sobretudo com a emergência do liberalismo. Nessa altura, a religião, bem como a prática religiosa, começou a ser visivelmente desvalorizada. A partir dos anos 20 do século xix, muitos protagonistas liberais mostraram abertamente uma postura anticongregacionista5 e na sociedade portuguesa surgiram sinais de uma secularização crescente. Apesar de tudo, a religião oficial da nação portuguesa foi declarada no artigo 17 da constituição de 1822 como “catholica apostolica romana”. Porém, o catolicismo perdeu nos anos seguintes cada vez mais a sua vitalidade, embora ainda suplantasse as tendências laicas que se começavam a evidenciar na sociedade portuguesa6. Mesmo que não se possa falar de uma secularização sistemática conduzida pelos liberais, temos de reconhecer que este desenvolvimento anticlerical (mas não propriamente anticatólico) atingiu uma dinâmica própria e que, a acreditarmos em alguns testemunhos, Portugal revelava já, cinquenta anos mais tarde, o aspecto de um país bastante secularizado, pelo menos se olharmos para os sectores urbanos mais intelectualizados. Contudo, mesmo observando a sociedade em geral e as representações exteriores da religião na segunda metade do século xix, o catolicismo institucional degenerou socialmente para uma convicção superficial supostamente incapaz de tocar interiormente uma grande parte da população. Acerca da religiosidade baseada nos dogmas eclesiásticos, o ensaísta Ramalho Ortigão escreveu por volta de 1870 o seguinte:

Nunca se foi menos religioso, no sentido dogmático desta palavra, do que hoje em dia. A descrença austera e consciente nuns, irreflectida, palavrosa e insolente noutros, invadiu por infiltração todas as camadas sociais, a ponto de ser provável que numa igreja, como na Semana Santa, inteiramente cheia de fiéis sinceramente devotos, se não encontre um só crente perfeitamente convicto. Para a multidão, o dogma, ou é uma coisa indiferente, ou uma coisa desconhecida, ou uma coisa refutada [Ortigão, 2007 (1870?), p. 781]7.

Na mesma altura, Oliveira Martins escrevia sobre a frágil vitalidade religiosa dentro da sociedade portuguesa, propondo já muito cedo uma separação rigorosa entre Estado e Igreja. A argumentação é extremamente interessante, tendo em conta que Oliveira Martins viu nesta separação uma via para aumentar a religiosidade geral dos portugueses. Devido a um regulamento sufocante do Estado, a Igreja não pôde desenvolver todas as suas capacidades. E, como o catolicismo era considerado a religião oficial do Estado, já ninguém estava disposto, ou considerava necessário, testemunhar convictamente o seu próprio credo católico. Ou seja, o “amigo oficial” da Igreja revelava-se o seu “pior inimigo”. Em consequência disso, o catolicismo em Portugal degenerou durante o século xix para uma “conveniência social”, mantendo apenas simbolicamente a sua função como laço social:

A religião, entre nós, é uma conveniência social para os políticos; uma superstição elegante para as mulheres, um velho hábito banal para o povo, para o maior número. Um sentimento consciente, imperativo, fecundo, isso é que ela já não é para ninguém […] Oficialmente, nas estatísticas, há 4 milhões de cristãos em Portugal. Realmente, nos corações, há 4 milhões de indiferentes [Martins, 1948 (1870), pp. 23-24]8.

E confiando nas observações da princesa italiana Maria Rattazzi, é possível verificar que mesmo o clero português tinha naquela altura um aspecto bastante “secular”, e um interesse relativamente reduzido em assuntos religiosos, simulando apenas as orações diárias:

Aqui, o clero simula que reza […] O clero é uma relíquia, a sua religião uma forma convencional […] O padre português não estabelece a menor separação com os outros homens, nem nos hábitos externos, nem nos internos, não curando de parecer uma individualidade de essência superior […] Passeia pelas ruas como um verdadeiro secular; frequenta os teatros e as sociedades, fuma, conversa e chega mesmo, não raro, especialmente se reside no campo, a organizar suave e discretamente uma família de que se constitui chefe [Rattazzi, 1881, pp. 18-19]9.

Embora esta descrição possa parecer talvez um pouco desproporcionada, é possível verificar que as transformações socioeconómicas da segunda metade do século xix deram à sociedade portuguesa cada vez mais um aspecto secular. A partir de 1860 começou uma nova onda de expropriações de bens dos conventos, igrejas, misericórdias ou seminários. Justificavam-se estas expropriações com os efeitos positivos para o progresso geral da agricultura, a obtenção de maiores rendimentos e a melhoria do mercado financeiro. Em consequência destas medidas, o poder económico e a influência social da Igreja ficaram seriamente enfraquecidos (Neto, 1993, pp. 279-281). Todavia, parece que o liberalismo reconheceu no catolicismo ainda uma certa função ao nível da manutenção dos laços interiores da sociedade portuguesa. As expropriações foram pensadas para consolidar o orçamento nacional, e o anticlericalismo da altura dirigiu-se especialmente contra um catolicismo ligado às ideias tradicionalistas ou miguelistas10. De qualquer maneira, em termos de afirmação e reconfiguração, poder-se-á dizer que nos últimos anos do século xix o catolicismo português foi enfraquecido numa grande parte das suas competências, pelo menos em termos de uma afirmação ideológica ou institucional. Não sabemos ainda até que ponto existia nesta época, na sociedade portuguesa, uma relação verdadeiramente íntima com o conteúdo do catolicismo, ou se este mais não era do que uma convenção social relativamente superficial. Certo é que a influência social ou política do catolicismo tendia para um nível historicamente muito baixo, conseguindo apenas uma lenta reorganização religiosa a partir da chamada “questão social” (Ferreira, 2002, pp. 44-50). Sumariamente, podíamos concluir que as tendências laicistas ou secularizadoras tiveram já um efeito bastante visível, sobretudo na população urbana, embora ainda incapazes de atingir a consciência colectiva, entre outras razões, por causa dos resquícios de tradições arcaicas ou da religiosidade popular, descritas por Ramalho Ortigão ou Maria Rattazzi como realidades bastante vivas.

Apenas a partir do Concílio Vaticano I e dos debates seguintes sobre o ultramontanismo, o anticlericalismo em Portugal ganhou, com os republicanos (e nomeadamente com Afonso Costa), uma dimensão cada vez mais agressiva. Esta reacção culminaria entre 1910 e 1913 numa “excitação geral de ânimos” acerca da questão religiosa (Valente, 1974, pp. 204-213). Por outro lado, embora tenha surgido durante os últimos anos do século xix um certo renascimento nos meios católicos, as instituições religiosas tiveram problemas visíveis para afirmar as suas competências, gastando todas as suas forças no combate para manter a própria sobrevivência11. Com base nestas condições, não é de estranhar que no início do século xx os portugueses que mantinham uma prática religiosa não excedessem o limiar dos 10%. Confiando nas declarações que o jornalista e católico militante Gomes dos Santos expôs no seu opúsculo O Catolicismo em Portugal, existiam em 1906, entre 5 milhões de portugueses, apenas 5000 católicos praticantes, ou seja: “Dos cinco milhões de católicos que se atribuem a Portugal, nem um décimo são católicos práticos” (Santos, 1906, pp. 24-25). A imagem do catolicismo e da sua influência na sociedade, tal como apresentada neste opúsculo, é catastrófica. A maior parte destes católicos praticantes era composta por mulheres que viviam, como era de esperar, no Norte do país. As pessoas que se confessavam não seriam mais do que 10 000 em todo o país. E, finalmente, foi constatado que mesmo nesta percentagem dos católicos praticantes quase não existia ninguém que soubesse com alguma clareza o que o catolicismo significava. Para além disso, há neste pequeno folheto uma comparação curiosa entre Lisboa e Paris, que conhecia nesta altura, de acordo com Gomes dos Santos, uma vitalidade religiosa bastante mais elevada. Enquanto aos domingos as igrejas lisboetas estavam quase vazias, nas casas de Deus da capital da Revolução Francesa não existia, mesmo nos dias úteis, quase nenhum lugar livre (Santos, 1906, pp. 24-25). E a conclusão deste texto não é menos dramática. O catolicismo português no início do século xx foi totalmente incapaz de estabelecer os fundamentos da sociedade ou de intervir na vida social. Mais do que isso, o catolicismo tinha de reconquistar a sociedade através de um desempenho mais activo, ou seja, por via da fundação de uma sistemática acção católica que pudesse interferir na vida nacional.

Olhando sumariamente para as tendências do século xix, podemos afirmar que Portugal viveu nesta altura uma certa secularização, sobretudo da população urbana, e que a Igreja católica se mostrou cada vez mais incapaz de perseguir a sua estratégia tradicional, marcada até então quase completamente por uma relação estreita com o Estado. Já nos primeiros anos do século xx se revelou, nomeadamente na sociedade urbana, uma insignificância crescente da Igreja católica em termos éticos, sociais ou políticos. A prática religiosa tendeu para um nível bastante baixo e o “ser católico” degenerou claramente, como já foi referido mais acima, para uma conveniência superficial.

Porém, a separação oficial entre Estado e Igreja em 1911, a que se seguiu uma agressiva política anti-religiosa por parte dos republicanos, foram os principais factores que provocaram um resultado inesperado, despertando na Igreja católica um espírito de combate e mais tarde uma onda de religiosidade popular. A política anti-religiosa implementou medidas rigorosas, tais como a proibição do ensino católico, a legalização do divórcio, a abolição dos feriados religiosos ou a proibição do juramento religioso em tribunal (Catroga, 2006, p. 365). Parece que o influente republicano Afonso Costa terá dito que o catolicismo, entendido por ele como uma “peste medieval”, estaria extinto em Portugal em duas gerações (Valente, 1974, p. 205). Embora não existam provas palpáveis de que esta profecia tenha sido mesmo de Afonso Costa, poder-se-á tomar como certo que apenas um rumor desta espécie chegou para alertar a militância católica. E, de facto, nesta altura foi possível verificar a validade sociológica da lex tertia de Newton, que diz que cada acção provoca uma reacção mútua12. A partir da segunda década do século xx, o catolicismo português tornou-se cada vez mais dinâmico, agora tentando estimular activamente a profissão de fé dentro da população13. Esta nova militância católica e a recristianização da sociedade ganharam, a partir da terceira década do século xx, cada vez mais terreno, particularmente através da fundação da União Católica, de várias publicações ou da criação de associações católicas. O lema desta renovação católica foi designado por Instaurare Lusitanum in Christo e visou “restabelecer em nossa pátria a civilização crist㔠(Fontes, 2002, p. 143). Contudo, antes desta renovação, com um início ainda um pouco tímido, houve em Portugal um acontecimento que parece algo contraditório com a baixa religiosidade institucional diagnosticada nos anos anteriores. As aparições de Fátima, em 1917, ganharam rapidamente uma popularidade extrema e confrontaram o catolicismo português com uma certa ambiguidade. Embora as aparições só tenham sido oficialmente reconhecidas pelo bispo de Leiria em 1930, existem vários sinais de que a Igreja católica já percebera perfeitamente, a partir de 1920, o valor simbólico de Fátima em termos de uma recristianização da sociedade portuguesa (Barreto, 2002, pp. 36-37). Por outro lado, há vários indícios que permitem admitir que o fenómeno de Fátima tem a sua origem numa forte erupção da religiosidade popular, verificável ainda hoje em dia através da ladainha, das novenas e das inúmeras estampas populares14. Tendo em conta que as estruturas clericais em Portugal foram, depois dos anos do liberalismo e da I República, bastante enfraquecidas e debilitadas, convém repensar as palavras conhecidas do cardeal Cerejeira segundo as quais “foi Fátima que se impôs à Igreja” (Cerejeira, 1943, p. 272). Ao contrário do pensamento do cardeal, seria hoje em dia mais convincente sublinhar o papel importante de Fátima na recristianização de Portugal15. Combinando as fortes predilecções nacionais por Nossa Senhora, um certo sentido de predestinação de Portugal e a multiplicação dos altares e das imagens, o fenómeno de Fátima desenvolveu nos anos seguintes uma matriz identitária e uma dinâmica própria, transformando o catolicismo popular português numa espécie de religiosidade nacional, que não pode ser comparada com outras formas de catolicismo. As aparições de Fátima tiveram, com certeza, um papel importante na tentativa de recristianizar a população portuguesa, embora esta recristianização talvez não tenha correspondido sempre à ortodoxia católica. Para além das convicções teológicas, e a partir de um ponto de vista historiográfico imparcial, seria necessário confirmar que a Igreja católica aproveitou o fenómeno de Fátima para a sua própria reconfiguração e afirmação16 e que as aparições de 1917 significam hoje em dia um dos pilares mais importantes do catolicismo português. Um acontecimento verdadeiramente importante acerca da reorganização do catolicismo português ocorreu em 1926, visando sobretudo uma reestruturação interior. Neste mesmo ano realizou-se o Concílio Plenário Português, que foi marcado pelo programa principal da “reconquista crist㔠ou “restauração católica” da sociedade e mostrou os seus primeiros resultados a partir de 1930. Esta reorganização interior foi ligada a vários pontos, começando com uma reformulação dos poderes territoriais da Igreja e acabando com a estimulação da confissão pública dos católicos (Fontes, 2002, pp. 164-177). A “reconquista crist㔠culminou finalmente na fundação da Acção Católica Portuguesa (ACP) em 1933, que teve o seu apogeu entre 1940 e 1950 e influenciou a vida religiosa pelo menos até aos anos 1960-197017. Marcada por um grande espírito nacionalista, a “reconquista crist㔠da ACP assumiu duas perspectivas. Em primeiro lugar, procurou-se uma cristianização geral da sociedade sob o lema “levar Jesus às almas e trazer as almas a Jesus”. Em segundo, surgiu um aspecto social que procurou, “além do levantamento e da formação religiosa […] também a defesa económica das classes actualmente oprimidas” (Ferreira, 1999, p. 26). Através de uma organização bastante complexa ligada às profissões (agrário; escolar; independente; operário; universitário), ao sexo, ao meio social e à idade, a ACP tentou abranger teoricamente a população inteira. Definida através dos seus estatutos como uma organização vocacionada para o apostolado dos leigos, a ACP dedicou-se sobretudo à difusão dos princípios católicos na vida individual, familiar e social. Partindo assim da base da sociedade, o catolicismo conseguiu interagir novamente com a dinâmica social, convertendo novamente a sociedade portuguesa. Ou seja, o Estado Novo pode ser visto como a “institucionalização de uma Nação ‘essencialmente crist㒔 (Almeida, 2008, p. 23) e a Igreja católica tornou-se, à semelhança do que se passava em Espanha, ideológica e institucionalmente (ao lado das forças armadas), um dos principais apoios do Estado Novo. Embora a separação entre o Estado e a Igreja católica não se tenha alterado com a Concordata de 1940 (Portugal continuou a ser oficialmente um estado não confessional), deu-se nos anos seguintes uma simbiose, ou coabitação íntima, entre os dois18. Este contrato entre o Vaticano e o Estado português significou um restabelecimento de uma parte importante dos privilégios que a Igreja antigamente possuíra, reconhecendo, por exemplo, a “propriedade dos bens que anteriormente lhe pertenciam” (Torgal, 2004, p. 109). De uma certa maneira, poder-se-á falar de um negócio bastante rentável para os dois lados. A Igreja legitimou ideologicamente o Estado, que ofereceu, em contrapartida, vários privilégios, como a exclusividade no ensino religioso, alguns benefícios fiscais, ou o monopólio da assistência religiosa nos hospitais, nas prisões, nas forças armadas, etc. Assim, a Igreja católica conheceu entre 1930 e 1960 uma fase extremamente fértil, e a sua afirmação e reconfiguração, iniciando de facto uma recristianização dos portugueses19, sufocou quase por completo todas as aspirações seculares dentro da sociedade.

Contudo, esta reconfiguração ou afirmação tomaria já nos finais dos anos 1950 um rumo um pouco diferente, quando surgiram alguns sinais que apontavam para uma certa “descristianização” da população portuguesa e para a transformação exterior e interior do catolicismo português20. Enquanto a hierarquia eclesiástica continuou relativamente fiel ao regime salazarista, nasceu uma contestação entre alguns católicos que foi designada inicialmente pelo cardeal Cerejeira por erro progressista com “inspiração marxista” (Barreto, 2002, p. 122). Esta contestação tornou-se nos anos seguintes uma oposição católica, transformando já o aspecto geral do catolicismo. Sem querer pormenorizar esta oposição católica21, é possível afirmar que a mesma significou um dos primeiros passos para uma moderna pluralização do catolicismo português. Esta tendência foi acelerada nos anos 60 pelo II Concílio do Vaticano (1962-1965), que tentou adaptar o catolicismo “às condições do nosso tempo”. Contudo, este aggiornamento da Igreja católica provocou em Portugal um resultado ambíguo. Considerando que a ditadura salazarista esteve nesta altura numa situação de isolamento por causa da sua política colonial, seria possível intuir que o Concílio e, nomeadamente, a constituição pastoral Gaudium et Spes e a encíclica Pacem in Terris (1963) foram encarados pela hierarquia eclesiástica, tradicionalista e fiel ainda ao regime, com grande desconfiança. Agarrados às antigas colónias, o Estado e a Igreja em Portugal recusaram-se inicialmente a ler “os sinais do tempo”. Esta postura despertou, por um lado, a já latente oposição intracatólica (os católicos progressistas, que começaram a representar uma verdadeira pluralidade interior do catolicismo português) e, por outro lado, um enorme afastamento dos crentes a partir dos anos 60 (IPOPE, 1973; França, 1981).

Em relação à oposição católica contra o Estado Novo, a transição para o sistema democrático deu-se com uma certa suavidade. Tentando evitar os erros crassos da I República, os primeiros governos democráticos não tomaram nenhuma posição anticlerical. No entanto, o catolicismo em Portugal sofreu a partir de 1974 uma transformação essencial. Para além da crescente pluralidade interior22, houve uma transformação quase imediata de uma Igreja que apoiou os poderes de um Estado totalitário para uma Igreja que critica os poderes de um Estado democrático. Ou seja, enquanto a Igreja patrocinou em grande parte as decisões políticas, económicas, éticas ou sociais do Estado Novo, a mesma mostrou, sob condições democráticas, cada vez mais uma posição crítica. Hoje em dia, o catolicismo reconfigura-se sobretudo através de protestos contra alguns efeitos éticos, morais ou sociais de uma modernidade secular que são reconhecidos, na perspectiva de uma mundividência cristã, como negativos. Exemplos relativamente recentes são, entre outros, a crítica, em 2002, ao novo código do trabalho (com uma argumentação semelhante à do Partido Comunista ou dos sindicatos)23 ou, actualmente, o protesto contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo24. Ou seja, o catolicismo perdeu apenas gradualmente a sua importância na sociedade portuguesa, pois permanece, sob uma outra forma social, um factor significativo na construção de uma sociedade moderna, criticando algumas decisões éticas, sociais, políticas e económicas. Para além das suas críticas, o catolicismo português afirma-se através da manutenção das crenças e costumes tradicionais ou da estabilização da identidade nacional. Uma das referências principais neste ponto é Fátima, que, não obstante ter sido declarada “altar do mundo”, é apresentada como garante do catolicismo popular português. De acordo com uma perspectiva oficial religiosa, Fátima “tem proporcionado aos católicos portugueses caminhos renovadores na vivência da fé” (Azevedo, 2003). De uma certa maneira, seria possível afirmar que Fátima, tal como o próprio catolicismo português, mudou simbolicamente as suas funções, afirmando-se e reconfigurando-se a partir das circunstâncias sociopolíticas. Depois do seu início como manifestação anti-republicana, o Santuário de Fátima tornou-se uma espécie de “centro espiritual internacional do anticomunismo” (Barreto, 2007, p. 502) e revelou-se assim como um pilar importante da política do Estado Novo (Manuel, 2001). Hoje em dia, Fátima pode ser compreendida simbolicamente como um epicentro e pilar do catolicismo popular português, o qual seria, na sua forma actual, impensável sem a Nossa Senhora de Fátima. Em especial, entre os meses de Maio e Outubro, Fátima assume o cariz de uma verdadeira religião de massa.

Resumindo, nos últimos duzentos anos da história do catolicismo português pôde-se verificar que Portugal viveu fases diferentes, nas quais a sociedade portuguesa oscilou entre a esfera secular e a esfera católica, sem mostrar claramente um rumo definitivo. Embora se deixem afirmar, em tempos actuais, tendências nítidas para uma vida cada vez mais secular, Portugal está marcado ainda pela sua tradição católica (e anticlerical) e por um certo catolicismo “difuso”, que continuam a influenciar os comportamentos e atitudes sociais, ou seja, num sentido weberiano, a “ética económica” e a “ética política” dos portugueses.25 De uma certa maneira, poder-se-á concluir que no Portugal moderno, assim como no resto da Europa do Sul, permanece em alguns casos uma “memória colectiva” — marcada pelo catolicismo — que continua a influenciar as actividades políticas e os costumes sociais dos indivíduos (Manuel e Mott, 2006, p. 66). Por outro lado, e este é um fenómeno sociologicamente bastante complexo e interessante, os contextos sociais “não deixam também de influenciar a religiosidade” dos indivíduos (Pais, 2001, p. 231) e a religião institucional. Assim, o catolicismo foi nos últimos duzentos anos um factor social importante na vida dos portugueses, conseguindo sempre afirmar-se e reconfigurar-se no espaço público através de diferentes formas sociais. 

 

Religiosidade institucional versus religiosidade popular: uma tentativa de fenomenologia

Em 1908, o filósofo espanhol Miguel de Unamuno deixou algumas anotações interessantes sobre a paisagem religiosa em Portugal. No seu texto Las Animas del Purgatorio en Portugal lemos os parágrafos seguintes:

Es muy frecuente oir a los portugueses que es el suyo un pueblo irreligioso; que aquí, en Portugal, los problemas de religión no interesan de veras a nadie. Paréceme que en esto, como en otras cosas, padecen una ilusión […] La religiosidad portuguesa […] hay que ir a buscarla por debajo de las formas regulares y canónicas de la religión oficial. Por debajo de ella palpita y vive aún cierto naturalismo que tiene mucho de pagano y no poco de panteísta […] Hay aquí siempre latente una cierta religiosidad pagana [Unamuno, 1985 (1908), p. 144].

Unamuno refere-se aqui, concretamente, à religiosidade popular, e mais de um século depois desta observação permanecem ainda algumas dificuldades em descrever este fenómeno, que escapa sistematicamente aos estudos quantitativos. E, de facto, o sul católico da Europa continua a ser um verdadeiro tesouro para as manifestações da religiosidade popular (Ebertz e Schultheis, 1986), e a realidade religiosa destes países católicos não se deixa perceber por completo sem recorrer a estas expressões. Considerando que a religiosidade popular pode ser entendida como um “inventário das diferenças”, que se encontra numa interdependência complementar ou oposição conflituosa com o “monopólio do poder espiritual” da religião católica, temos de identificar estes espaços que permitem uma certa autonomia espiritual do indivíduo (Esteves, 1986, pp. 65-66). Isto significa uma separação ou identificação daqueles elementos que não se deixam, histórica ou socialmente, encaixar no “capital religioso” ou no cânon dos “bens da salvação” (Heilsgüter) da religião oficial. Trata-se de uma certa virtuosidade religiosa (Virtuosenreligiosität) que historicamente ainda não foi, ou socialmente não pode ser, monopolizada pelo sistema religioso oficial (Weber, 2002 [1920], pp. 599-600). Na sua relação com o monopólio religioso, a religiosidade popular existe constitutivamente sempre numa correlação entre a absorção/tolerância e a estigmatização, ou entre a instrumentalização e a ignorância. Empiricamente, podemos verificar a existência de variadíssimos elementos da religiosidade popular dentro do catolicismo português que já não podem ser identificados como tais por razões de uma absorção ou instrumentalização histórica. Por outro lado, existem ainda outros elementos que estão geralmente ligados a crenças ou cultos locais e que são tolerados ou ignorados por parte da hierarquia eclesiástica, mantendo assim uma certa independência. Com base nos estudos das ciências sociais dos últimos anos acerca desta matéria, especificam-se, no caso de Portugal, algumas formas de religiosidade popular que se relacionam com o anticlericalismo popular (ou oposição ao padre), com os santos, com as festas populares e com os cultos a Nossa Senhora (Esteves, 1986, pp. 68-72).

Em relação ao anticlericalismo popular surgiram a partir de 1970 vários estudos que sublinham que este não é simplesmente um fenómeno intelectual das elites urbanas (Cutileiro, 1977). Partindo de um forte sentimento de desconfiança, o padre local é encarado pela população rural muitas vezes como um representante de uma hierarquia supra-regional (um “forasteiro”) que tenta regularizar ou corrigir teologicamente algumas crenças ou costumes tradicionais. Em consequência disso, e sem provocar propriamente uma inimizade aberta, o sacerdote pode torna-se alvo de anedotas, de histórias satíricas e de críticas26, mostrando-se, em alguns casos, incapaz de direccionar as convicções da população local (Riegelhaupt, 1982). Compreendido como uma forma complementar, pode existir ao lado do padre oficial um “bruxo” tradicional ou moderno que é consultado, por exemplo, para fins terapêuticos ou para certos exorcismos (Pina Cabral, 1989, pp. 211-240).

Um outro elemento importante no âmbito da religiosidade popular é a veneração a santos, que são, na sua maioria, rurais27 e que correspondem geralmente à necessidade humana de ter um modelo e uma afirmação da própria fé. Para além de uma certa especialização em relação a um domínio concreto (doenças, amor, paz, etc.), a maioria dos santos está ligada a uma localidade, estabelecendo assim um forte laço social (Esteves, 1986, p. 70). As romarias anuais, especialmente em zonas de emigração, em honra do “nosso” santo representam uma profunda expressão da unidade regional e da ligação à terra de origem (Sanchis, 1983, p. 40). As promessas e os ex-votos permitem ao crente uma autonomia religiosa que se encontra limitada dentro da religião institucionalizada.

Na sua ligação com o culto dos santos e com os ciclos da vida humana, as festas representam um dos aspectos centrais da religiosidade popular (Isambert, 1982). Embora haja nas festas continuamente um cruzamento entre a regulação eclesiástica e a virtuosidade religiosa de grupos locais, existem, empiricamente, possibilidades de identificar fenómenos que se esquivam à ortodoxia católica. Para além das provocações lúdicas ou sexuais destas festas, foram fragmentariamente identificados alguns “elementos mágicos frequentemente tirados de cultos antigos” (Sanchis, 1983, p. 328). Ou seja, uma festa revela geralmente alguns elementos que criam “um espaço de afrontamento […] contra a Igreja” (Esteves, 1986, p. 71). A sua ligação íntima aos ciclos da vida, do ano ou do agrário permite chamar a estas festividades uma espécie de “religiosidade sazonal” (Saisonreligiosität) (Ebertz e Schultheis, 1986, p. 22), e os participantes tornam-se assim, convivendo também com a parte teologicamente controlada, “religiosos ou cristãos sazonais”.

Como já foi sugerido em cima, existe em Portugal uma forte inclinação para os cultos de Nossa Senhora, entre os quais predomina a devoção a Nossa Senhora da Conceição e sobretudo a Nossa Senhora de Fátima. O pilar mais importante do catolicismo português é, de uma certa forma, o culto mariano, que deve ser visto como um elemento fundamental da religiosidade popular, conservando os recursos maternais dentro de uma religião dominada por um omnipotente papado paternal. Tendo em consideração os fortes mecanismos da integração pelo lado do catolicismo oficial, a identificação fenomenológica dos elementos da religiosidade popular dentro dos cultos marianos representa um desafio iminente para a sociologia ou a antropologia da religião.  

Embora possa parecer o contrário, a religiosidade popular permanece em Portugal, ao lado da enorme concorrência por parte da secularização e do catolicismo, uma realidade social sem a qual a paisagem religiosa do país não pode ser descrita integralmente. Uma exposição completa das esferas religiosas em Portugal continua a necessitar da identificação das diferentes formas de religiosidade popular, dos seus efeitos na sociedade local e no indivíduo e da sua relação com o catolicismo oficial.

 

A sociedade portuguesa: secularizada, religiosa e católica

Neste texto tentei descrever esquematicamente as sobreposições entre as esferas seculares e as esferas religiosas na sociedade portuguesa durante os últimos duzentos anos, chegando à conclusão de que não existe nenhuma linearidade nos processos da secularização. Acrescentei uma breve fenomenologia da religiosidade popular com o objectivo de mostrar a necessidade de considerar com mais atenção esta esfera religiosa para descrever fielmente a variedade dentro da paisagem religiosa em Portugal. Em suma, proponho um esquema multidimensional que permita reconhecer as esferas seculares e as esferas religiosas em três níveis diferentes, mas interligados: (a) sociedade; (b) sistema religioso tradicional; (c) indivíduo (Dobbelaere, 2009, pp. 602-610).

Relacionados com a herança anticlerical e outras componentes, tais como a industrialização ou a democratização, pode-se afirmar que a sociedade portuguesa apresenta fortes indícios de uma secularização manifesta. Todavia, dentro desta secularização é possível observar uma estratificação geográfica e social. Para além da conhecida clivagem entre o “norte católico” e o “sul anticlerical”, existe em Portugal uma nítida diferenciação em termos de escalões etários, nível de escolaridade, género, “capital cultural” e rendimento familiar. Alguns estudos sociológicos mostram claramente que as camadas sociais menos favorecidas tendem principalmente para um nível mais alto de religiosidade (Cabral, 2001, pp. 31-42) ou para um catolicismo mais “ritualista, moralista e tradicional” (Pais, 2001, pp. 193-196)28. Porém, é necessário acrescentar que existe uma espécie de religiosidade que se revela actualmente na sociedade portuguesa através de alguns ritos de passagem (casamento, baptizado, etc.) e da participação em romarias ou festas locais (religiosidade popular). Por outro lado, a secularização em Portugal não pode ser compreendida historicamente como um processo linear que elimina automaticamente as esferas religiosas da sociedade, mas sim como uma amplitude não simétrica, na qual alternam fases periódicas da secularização e da dessecularização29. Confrontado com diferentes condições socioculturais, o catolicismo tradicional em Portugal teve nos últimos duzentos anos magnitudes e amplitudes diferentes no que diz respeito à sua intervenção em questões éticas ou sociais, à sua crítica em relação a decisões políticas ou económicas, à sua manutenção das crenças e costumes tradicionais ou à sua estabilização das identidades nacionais. Olhando para a actualidade portuguesa, não há a mínima dúvida de que o catolicismo tem cada vez mais dificuldades em defender o seu domínio tradicional na formação directa das mentalidades, sobretudo através da prática religiosa ou da transmissão geracional de conteúdos religiosos. O catolicismo português, no entanto, tenta afirmar e reconfigurar a sua influência nas esferas dos valores políticos, económicos, éticos, estéticos (e ainda outros), nomeadamente através da sua forte presença nos media, mostrando assim uma resistência religiosa contra a “ideologia” da secularização ou modernização30. A médio prazo será necessária uma observação mais atenta destes processos de reconfiguração do catolicismo no espaço público para fornecer declarações sobre a relação entre o religioso e o secular dentro da sociedade portuguesa. Esta observação representa um dos grandes desafios para a actual sociologia da religião (Martin, 2005). Por enquanto pode-se afirmar que a Igreja católica mantém em Portugal o seu monopólio, conseguindo desenvolver estratégias relativamente inovadoras para afirmar a sua posição no espaço público e para influenciar processos de modernização. Por outro lado, o monopólio religioso não significa automaticamente que a crescente pluralidade religiosa, particularmente nos centros urbanos de Portugal, não seja capaz de afectar a tradição católica em Portugal. Como já indicado na introdução, existe ainda uma certa urgência em continuar a estudar esta forma de reconfiguração da paisagem religiosa em Portugal.

Um outro momento essencial na descrição das sobreposições entre o secular e o religioso é a análise das competências de sistemas religiosos em relação a uma “secularização interior” (Luckmann, 1967). No que diz respeito a esta secularização interior, podemos, por enquanto, reconhecer um ponto importante. Para além da sua típica função espiritual, notamos historicamente no catolicismo português fases de uma reestruturação organizacional e de uma atenção reforçada para problemas da vida quotidiana, ou seja para assuntos seculares. Esta capacidade significou a possibilidade de reconfiguração, particularmente em épocas que necessitaram de uma adaptação forçada a novas condições socioculturais. Em termos práticos, somos confrontados com uma crescente pluralização interior que é promovida actualmente pela própria Igreja católica (Fontes, 2002, pp. 248 e 327), permitindo assim um balanço entre inadaptação e adaptação ao mundo moderno. Este balanço é estrategicamente bastante interessante, tendo em conta o facto óbvio de que nem todos os efeitos da modernização têm de ser necessariamente positivos.

A moderna extensão das esferas seculares não provoca apenas uma reacção das esferas religiosas no espaço público, mas também nos espaços individuais. A reformulação da religião em espaços individuais iniciou-se, sobretudo, com a queda da tradicional autoridade religiosa e foi designada nos últimos anos, nomeadamente a partir da tese da privatização da religião (Luckmann, 1967), através de vários conceitos, como os de “religiosidade bricolage” ou “religião à la carte”. Embora a perda da religião tradicional não signifique obrigatoriamente um aumento da procura religiosa individual, verificou-se nos últimos anos um aumento das ofertas religiosas. No caso de Portugal, no entanto, não existem ainda pesquisas empíricas que permitam conceder informações fiáveis sobre a maneira como o catolicismo tradicional vai sendo substituído, pelo menos parcialmente, por uma espiritualidade mais individual. Porém, não seria muito surpreendente encontrar na sociedade portuguesa indivíduos que complementam, por exemplo, uma peregrinação anual a Santiago de Compostela com aulas semanais de yoga.           

Sintetizando, devíamos mais uma vez sublinhar que na sociedade portuguesa nunca houve uma mudança linear do religioso para o secular. Mais correcto seria dizer que o catolicismo tradicional tenta adaptar-se às condições de uma secularização crescente. Contudo, esta adaptação não pode ser entendida como um acordo simples com estas condições, mas sim como um desafio que é acompanhado por protestos ou correcções. Neste sentido, o catolicismo português da segunda metade do século xx não é necessariamente uma antinomia ou uma oposição perante a modernização. Pelo contrário, modernizando-se a si próprio, e assumindo uma função crítica perante algumas decisões na vida sociocultural ou como agente regularizador da religiosidade popular, o catolicismo português deve ser entendido como elemento formador de uma modernidade que é singular e típica apenas da sociedade portuguesa. Isto é, a modernidade e a secularidade da sociedade portuguesa seriam hoje em dia algo diferentes sem o catolicismo tradicional. Ao reconhecer que a religião é uma parte intrínseca da modernidade (Casanova, 1994, p. 234), torna-se mais fácil explicar algumas das contradições numéricas acima indicadas. Assim, e sem ser contraditório ou banal, seria possível afirmar que Portugal é modernamente um país ao mesmo tempo secularizado, religioso e católico. Neste sentido, e em relação à exigência de uma “nova maneira de ler a tese da secularização” de Habermas, seria talvez útil abandonarmos a ideia de que religião e modernização têm de ser inevitavelmente antagónicas. A análise do caso português assim o sugere.

 

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Notas

1 Um excelente resumo geral sobre a história, as actuais dificuldades e o futuro do conceito da secularização encontra-se em Gorski e Altinordu (2008). 

2 Neste sentido, David Martin (2005) fala concretamente de uma variety of secularization stories. Em vez de defender uma única teoria geral da secularização, seria mais interessante percorrer caminhos diferentes, nos quais o religioso e o secular se podem cruzar. Ou seja, a variedade das histórias da secularização devia ter também em conta a hipótese de que a secularização não precisa de ser necessariamente exterior aos fenómenos religiosos.

3 Em relação a uma perspectiva geral sobre os aspectos quantitativos e qualitativos, ou acerca dos efeitos socioculturais das pequenas alternativas religiosas num mercado dominado pelo catolicismo, compare, entre outros, os estudos de Steffen Dix (2009), Helena Vilaça (2006), Luís Aguiar Santos (2002). Um projecto extremamente inovador que investiga a pluralidade cristã nos imigrantes africanos e brasileiros em Portugal (“Atlântico cristão”) é coordenado neste momento no ICS-UL por Ramon Sarró.

4 Devíamos acrescentar que estes números são de facto bastante relativos. Em comparação com o resto dos países europeus, Portugal continua a ter uma alta prática religiosa, superada apenas por outros países católicos, como a Polónia, a Irlanda ou Malta.

5 Em relação aos alvos concretos e às diferentes fases da “secularização dos bens religiosos” durante o liberalismo, v. Neto (1993, pp. 265-283). 

6 À primeira vista, considera-se que uma igreja do Estado possui alguns privilégios. Contudo, no caso de Portugal, aconteceu o contrário, e a relação estreita funcionava mais como um controlo ou um jogo para a Igreja católica. A relação estreita com o Estado teve para a Igreja católica, nos anos seguintes, um efeito sufocador, como foi sublinhado em 1870 por Oliveira Martins (1948 [1870]). 

7 Todavia, Ramalho Ortigão (2007 [1870?], pp. 781-783) sublinha, apenas algumas linhas depois destas frases, a sua simpatia pelas “tradicionais cerimónias do cristianismo latino”, que existe fora dos muros da Igreja e das doutrinas eclesiásticas. Este “cristianismo latino” é um cristianismo “popular e poético” que continua ainda com os seus claros vestígios da tradição pré-cristã.

8 No caso de Oliveira Martins, devíamos acrescentar que se trata de um dos vários autores em que a análise social se cruza com uma certa preocupação acerca do valor social da religião. Quase antecipando a ideia central de Émile Durkheim, o historiador português indica que esta indiferença religiosa podia provocar uma ruptura de um laço social, que o mesmo considerou um dos mais importantes. 

9 De uma forma interessante, segue-se a este parágrafo um outro em que a princesa italiana expõe uma religiosidade popular viva que se manifesta sobretudo na participação em festas públicas. Assim, a religião do português revela-se na sua predilecção pelos “actos externos do culto”, embora esta seja provocada principalmente por um certo tédio (Rattazzi, 1881, p. 72).

10 Para informações mais detalhadas acerca da “estratégia descristianizadora nas vésperas da República” e da “laicização” da sociedade portuguesa entre 1865 e 1911, v. Fernando Catroga (1988). 

11 Nesse sentido, em 1903 o núncio apostólico Aiuti declara o seguinte: “O clero encontra-se agora em condições melhores do que aquelas em que se encontrava 20 ou 25 anos atrás; digo um pouco melhores porque, entretanto, foram abertos os seminários em todas as dioceses, mas a sua organização e a formação literária, científica e eclesiástica dos seus alunos deixa muito a desejar e as tristes consequências disso são manifestamente a ignorância e o pouco bom comportamento de muitos eclesiásticos assim educados” (cit. in Clemente, 2002, p. 90).

12 Ou seja, a militância anticatólica, ou em geral anti-religiosa, despertou quase imediatamente o espírito militante dos católicos. Em relação a uma contextualização da questão religiosa na I República, v. o estudo de Maria Lúcia de Brito Moura (2004). 

13 De uma certa maneira, podíamos dizer que a separação entre Estado e Igreja provocou exactamente o efeito contrário daquele que foi desejado pelos republicanos. Ou seja, a política anti-religiosa dos republicanos impulsionou a viragem do catolicismo para a sociedade e assim, mais tarde ou mais cedo, uma recristianização da mesma. Desta maneira, Oliveira Martins (1948 [1870]), no seu texto Liberdade de Cultos, teve absolutamente razão ao afirmar que o resultado principal desta separação seria um aumento da vitalidade religiosa. Sumariamente, e ao contrário do que se pode pensar, seria possível afirmar que a constituição do catolicismo como religião do Estado em 1822 iniciou um processo de laicização da sociedade. E, dentro do mesmo raciocínio, podíamos concluir que a separação entre Estado e Igreja em 1911 provocou a médio prazo, em combinação com a política anticlerical dos republicanos, uma certa cristianização da sociedade.

14 Ou seja, a ambiguidade consiste, como observou Bruno Cardoso Reis, no facto de o contacto imediato entre um crente e um fenómeno sagrado (o que devia ser entendido como uma expressão de religiosidade popular) poder ser considerado “uma ameaça ao papel da autoridade mediadora clerical como depositária e intérprete única da revelação”. Por outro lado, pode oferecer a possibilidade de renovar o carisma sacral dessa autoridade, desde que seja possível enquadrar esse novo contacto com a divindade na tradição, ou seja, que ele respeite as instituições religiosas existentes” (Reis, 2001, p. 257). Por outras palavras, se a Igreja católica não tivesse tido desde o início a capacidade de se apresentar como autoridade mediadora das aparições, o fenómeno de Fátima poderia ser hoje, pelo menos teoricamente, uma forma de religiosidade popular, existindo em paralelo e como concorrente do catolicismo português.

15 Acerca de algumas das primeiras ideias (sobretudo do cónego Manuel Nunes Formigão, conhecido como o “apóstolo de Fátima”) ligadas concretamente à recristianização de Portugal através de Fátima, v. José Barreto (2002, p. 37).

16 A segunda afirmação do cardeal Cerejeira resumiu-se na frase “a Igreja não carece de Fátima” (1943, p. 272). Esta afirmação também se revelou historiograficamente errónea, como se pode verificar nos estudos bem documentados de José Barreto (2002).

17 Uma tentativa mais pormenorizada para definir as etapas da evolução da ACP encontra-se em Ferreira (1999, p. 27).

18 António Costa Pinto (1992, p. 127) fala de um “núcleo ideológico e político comum Igreja/regime”.

19 Esta recristianização é verificável através de vários factos. Neste ponto pode-se, por exemplo, recorrer a alguns dados quantitativos, tais como a percentagem dos casamentos católicos (1930, 73,3%; 1935, 76,2%; 1940, 77,8%; 1945, 85,5%; 1950, 86,6%; 1960, 90,7%) ou a evolução do número de seminaristas (1930, 2239; 1940, 3533; 1946, 4173; 1952, 4345; 1956, 4174) (v. Fontes, 2002, pp. 201 e 209). 

20 Uma reacção quase imediata à esta “descristianização” foi a criação do Secretariado de Informação Religiosa (SIR) em 1959, que teve como objectivo analisar esta tendência social e propor uma estratégia que permitisse a inversão destes processos. Sobre o cruzamento da chamada “sociologia religiosa” e da “sociologia da pastoral” no SIR, v. Nuno Estêvão Ferreira (2006, pp. 81-132).

21 Nos últimos anos foram publicados vários trabalhos, por vezes algo controversos, acerca da oposição católica ao Estado Novo, tais como os estudos de Manuel Braga da Cruz (1998), José Barreto (2002, pp. 119-175), Joana Lopes (2007) ou João Miguel Almeida (2008).

22 Neste sentido convém chamar a atenção para o catholic effect que foi mencionado sobretudo pela sociologia da América do Norte. Numa comparação entre países com diferentes monopólios religiosos, o catholic effect significa principalmente uma maior vitalidade religiosa nos países católicos por razões de uma maior pluralidade intra-religiosa dos sistemas católicos (cf., por exemplo, Laurence R. Iannaccone, 1992, ou Rodney Stark e James C. McCann, 1993).  

23 “Novo código do trabalho preocupa hierarquia da Igreja Católica” (Público, 2-10-2002).

24 “Igreja pode apelar ao voto contra partidos que apoiam casamento entre homossexuais” (Público, 11-2-2009). 

25 Uma interessante interpretação desta ideia em relação ao mundo moderno encontra-se em José Casanova (1994, pp. 231-233).

26 Uma excelente classificação destas críticas encontra-se em João de Pina Cabral (1989, p. 237).

27 Em relação a um santo urbano, v. o estudo de José Machado Pais sobre o Dr. Sousa Martins (1994).

28 Uma explicação desta estratificação foi introduzida recentemente na sociologia da religião através da secure secularization thesis, que estabelece empiricamente uma relação entre religiosidade e desigualdade económica (Norris e Inglehart, 2007, pp. 31-57).

29 O conceito da dessecularização tornou-se conhecido na sociologia da religião nomeadamente a partir de uma edição de Peter L. Berger (1999). No contexto da minha argumentação, trata-se sobretudo da tentativa de recomposição ou reafirmação de instituições religiosas no espaço público.

30 Em relação à “ideologia” da secularização é possível observar nos últimos anos várias intervenções que podem ser, por exemplo, sociológicas (Casanova, 1994, pp. 11-39) ou, paralelamente, filosóficas e teológicas (Habermas e Ratzinger, 2005).

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