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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.193 Lisboa out. 2009

 

Frances Pine e João de Pina Cabral (eds.), On the Margins of Religion, Oxford, Berghahn, 2007, 296 páginas.

David Berliner e Ramon Sarró (eds.), Learning Religion: Anthropological Approaches, Oxford, Berghahn, 2007, 240 páginas.

 

Ruy Llera Blanes

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

 

Nos últimos anos, a prestigiada editora de ciências sociais de Oxford, Berghahn Books, lançou-se na edição contínua de volumes sobre estudos religiosos. Este facto não foi um acto espontâneo, mas sim mais um exemplo do momento produtivo que se vive nesta área temática. Apesar das “profecias” avançadas pelas teses secularistas nas últimas décadas do século xx — que pareciam condenar ao ostracismo o estudo do fenómeno religioso por via do “esgotamento” do seu assunto —, assiste-se, no virar do milénio, a um reavivamento da produção dos estudos religiosos (nas várias disciplinas) e do seu impacto nos media. Esta série da Berghahn é disso um bom exemplo, mas poderia citar outros: desde o recente lançamento do Journal of Religion in Europe (como que a contrapor ao “velhinho” Journal of Religion in Africa, também editado pela prestigiada editora holandesa Brill) à igualmente recente inauguração da Associação Portuguesa de Estudos Religiosos (APERLG), passando pelo multitudinário encontro da International Association for the History of Religions, que levou milhares de académicos, especialistas da religião e religiosos a Tóquio em 2005.

O facto de dois desses volumes recentemente lançados pela Berghahn Books terem sido editados por dois antropólogos da academia portuguesa (João de Pina Cabral e Ramon Sarró), investigadores no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, é, por si só, digno de relevo e ilustrador do envolvimento e colaboração internacional da antropologia portuguesa, num momento em que desde as mais altas instâncias da política científica portuguesa se começa a apregoar a mobilidade internacional, o uso do inglês como língua franca, etc. Por outro lado, mostra também uma liderança que se está a construir desde Portugal para a temática da religião na contemporaneidade.

Os dois títulos a que aqui me refiro têm um mesmo ponto de partida, embora sigam caminhos diferentes para responder à pergunta inicial. Esse ponto comum é a transcendência de uma hegemonia teórica que, até à viragem do milénio, marcava os estudos sobre religião: a sua excessiva focagem em aspectos de história política a partir do debate sobre o suposto «desencantamento do mundo» (Gauchet, 1997). Neste sentido, ambos os trabalhos resultam de uma necessidade de questionar os paradigmas vigentes no estudo — nomeadamente antropológico — da religião.

Os livros em causa, On the Margins of Religion, editado por João de Pina Cabral e Frances Pine, e Learning Religion, editado por David Berliner e Ramon Sarró, procuram empreender essa transcendência ao recuperar e debater aspectos epistemológicos e cognitivos da experiência religiosa de facto. Ou seja, mais do que coleccionar retratos dispersos de expressões religiosas, partem à procura de instâncias concretas de experiência, aprendizagem e interacção religiosa.

No primeiro caso, On the Margins of Religion, a proposta passava por um desafio: o de apresentar e discutir contextos onde esta problemática estivesse de alguma forma relacionada com sentidos de marginalidade. Partindo de uma perspectiva epistemológica “turneriana” onde se analisam interacções entre centros e margens como formas de compreensão de dinâmicas sociais, os editores desafiaram os autores a discutir contextos onde a noção de “religião” é levada a limites epistemológicos. Como consequência, o conceito de “marginalidade” é instrumentalizado em função do debate sobre os limites conceptuais da noção de “religião” nos distintos contextos abordados. O que está em causa, em suma, são os limites das teorias do conhecimento, as “franjas” do significado.

São, portanto, diversas as formas de responder a este desafio: através de dinâmicas de contestação e reivindicação de lugares, conhecimento, recursos, etc. É através destas dinâmicas que os autores discutem temas como a relação entre religião e violência, religião e ciência, religião e estado, crença e poder, entre outros. Assim, por exemplo, João Vasconcelos demonstra, através do desenvolvimento histórico do movimento espírita, como a “naturalidade” da oposição histórica entre ciência e religião é posta em causa quando percorremos as biografias de cientistas sociais da época positivista. Simon Coleman, por sua vez, aborda outro tipo de “marginalidade”: aquela a que é votada frequentemente a própria antropologia quando é confrontada com “etnografias” produzidas por agentes religiosos — muitas vezes com maior eficácia e impacto na sociedade do que o próprio discurso antropológico. Neste contexto, ambos os autores mostram como, tanto na história das ciências sociais como nos dias de hoje, a relação entre “saber científico” e “saber religioso” manteve a sua pertinência e revela dinâmicas de produção de hegemonia e marginalidade no que se refere a uma prevalência de “verdade”.

Um segundo núcleo de textos aborda a problemática da marginalidade através da perspectiva espácio-temporal, apresentando contextos onde os lugares e a memória são objecto de disputa. É o caso, por exemplo, da análise efectuada por Ursula Rao às dinâmicas contemporâneas de construção urbana em Bhopal (Índia), mediadas pelo facto de aí coabitarem pessoas de diversos credos, o que, por sua vez, leva a processos de contestação e definição de fronteiras espaciais no seu seio. Obviamente, quando se fala em contestação, fala-se em poder; e quando se fala em poder, fala-se em centralidades e marginalidades. Mas, como se mostra neste livro, toda a centralidade é relativa e o espaço marginal também pode ser constituído como central em si mesmo. Será, portanto, também uma questão de perspectiva e escala, como afirma Stephan Feuchtwang (p. 135) a propósito das “festividades territoriais” na China.

Ao longo do livro apercebemo-nos de que o “operador” fulcral deste exercício reflexivo é, efectivamente, o da “negociação” — isto se entendermos à contestação e à criatividade (capítulos 9 e 10) como propostas de negociação de condições de marginalidade e centralidade. No entanto, um último grupo de textos introduz um vector temporal a esta problemática, ao reportar para a questão da modernidade e do seu “acesso” por parte de grupos ou colectivos religiosos. É o caso, por exemplo, dos Baga, da Guiné--Conakry (estudados por Ramon Sarró), onde a conversão ao islão por toda uma geração na década de 1950 também implicava uma tentativa de quebra com um passado recente e de adesão à condição de modernidade. Nesse sentido, a ideologia do progresso também pode ser uma forma de crença. É o que nos mostra igualmente Jonathan Parry quando descreve como o processo de construção de uma fábrica em Bhilai (Índia) foi instrumentalizado através de discursos sobre o sacrifício.

Esta última vertente de temporalidade também está presente na segunda obra aqui apresentada: Learning Religion. Nesta, o que está fundamentalmente em causa é a análise de contextos concretos de transmissão e aprendizagem religiosa. No entanto, a esta proposta prática subjaz ainda um debate teórico que está a marcar a antropologia da religião contemporânea, o da pertinência (ou falta dela) de recentes abordagens cognitivistas à problemática da experiência religiosa — Religion Explained, de Pascal Boyer (2001, Basic Books) ou Modes of Religiosity, de Harvey Whitehouse (2004, Altamira Press), por exemplo — a partir da perspectiva da transmissão e aprendizagem cultural. Se, para uns, os cognitivistas sobreenfatizam a dimensão psicológica da experiência religiosa, para estes os modelos interpretativistas não cumprem uma premissa fundamental de todo o acto científico: a explicação dos factos (p. 8). Neste contexto, o livro de Berliner e Sarró propõe-se discutir modelos explicativos ou interpretações sobre a transmissão religiosa, tendo como pano de fundo este conflito heurístico, sem, no entanto, se filiar em qualquer das tendências em causa — cognitivista, ontológica, hermenêutica, fenomenológica, epistemológica.     

Uma das “soluções” para esta aparente contradição será olhar para o ritual. Por exemplo, Michael Houseman, na análise de dois contextos de ritualização da menstruação (a “chapada menstrual” e a celebração new age “menarche”) (capítulo 3), argumenta que, em vez de olhar para a aquisição e acumulação de conceitos, devemos procurar perceber o tipo de relações que são produzidas entre os participantes no contexto da sua aprendizagem ritual. Por outro lado, Aurora Donzelli foca os processos de “disciplinação” da oratória ritual em Toraja (Indonésia) como forma de explicar a economia local de inserção da religião nos domínios financeiros e políticos (capítulo 9).

É claro que uma dessas relações será, necessariamente, a relação entre o crente e o divino (o deus ou o supernatural). É por isso que alguns dos autores aqui presentes também questionam o que significa aprender a “acreditar” (Severi, capítulo 2), “falar com Deus” (Luhrmann, capítulo 6), “ser possuído” (Lambek, capítulo 5; Goldman, capítulo 7) ou “intermediar” a relação (“mediunizar” — Vasconcelos, capítulo 8; Goldman, capítulo 7). Aqui também está em causa a questão da “convicção”, ou seja, a condição inerente a toda a experiência religiosa e, portanto, a predisposição indispensável para os mecanismos de transmissão religiosa e, finalmente, conhecimento. Porque, em última instância, é de conhecimento que falamos quando discutimos transmissão e aprendizagem. Porém, como afirma Michael Lambek, o conhecimento, para perdurar, necessita de ser associado à convicção, convicção de que aquilo que se faz e em que se acredita é “sério” e “sincero” (pp. 69 e segs.).

No entanto, o livro não se esgota neste ponto. Como bem nos recordam Stafford (capítulo 11) e Rowlands (capítulo 12), há igualmente dimensões pragmáticas e materiais envolvidas nos processos de aprendizagem, condicionantes que poderão ou não facilitar a transmissão de conhecimento. Charles Stafford, por exemplo, argumenta (a partir dos processos de “socialização” de crianças  na China) que uma condição essencial para a aprendizagem é a capacidade que as religiões e os rituais têm de se apresentar como algo “interessante” para os que com elas se deparam. Num diálogo entre a antropologia e a psicologia, Stafford associa “interesse” e “atenção” enquanto mecanismos cognitivos-chave para a aprendizagem religiosa. Sem partilhar a opção cognitivista, Michael Rowlands também se preocupa com a “socialidade” do processo ao abordar a forma como a música (ou, consoante a perspectiva, o ruído) conforma “envelopes sonoros” para os crentes, envelopes capazes de determinar quem está ou não integrado, social e espacialmente, no seio de um determinado movimento religioso. Para Rowlands, a aprendizagem religiosa é também a transformação do “ruído” em “música”.

Não é possível fazer justiça aos dois livros recenseados em tão curto espaço tanto no que se refere ao valor individual de cada uma das suas contribuições como nas suas implicações no conjunto das obras existentes no panorama da antropologia da religião contemporânea. Tão-pouco é possível atentar numa leitura crítica suficientemente sustentada. Assim, direi apenas que os dois livros, ao proporem uma reflexão sobre o conceito de “religião”, não só operam uma análise crítica dos principais debates vigentes na antropologia da religião contemporânea, como também propõem uma reflexão sobre o lugar da religião na sociedade — numa “modernidade” que já não se seculariza, mas que procura entender outra vez o lugar do religioso no seu seio. Neste sentido, estas obras têm o mérito de contribuir para esse conhecimento. No primeiro caso, através do desafio epistemológico de pensar a religião num complexo político de operatividade do conceito de marginalidade. No segundo, através da discussão dos fundamentos (os actos, os raciocínios, as relações) que produzem o conhecimento religioso. Porque é de conhecimento que se trata: de conhecimento gerado por pessoas num mundo em constante mobilidade e transformação, no qual o religioso (embora possa, em determinados momentos históricos, parecer “marginal”) continua a ser aprendido e reaprendido, negociado e entendido.

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