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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.193 Lisboa out. 2009

 

Fraya Frehse, O Tempo das Ruas na São Paulo de Fins do Império, São Paulo, Edusp, 2005, 272 páginas.

 

Gonçalo Rocha Gonçalves

The Open University (UK)

 

Mais do que mera evocação, a interdisciplinaridade deve ser uma prática tendente a uma melhor compreensão de determinadas realidades sociais. A socióloga brasileira Fraya Frehse — investigadora na área da antropologia urbana — enceta neste livro, com segurança e criatividade, uma incursão pelas ruas da São Paulo do século xix.

O livro é composto por duas partes. A primeira, de um só capítulo, debruça-se sobre as várias correntes teóricas e metodológicas que se têm ocupado do processo de urbanização de São Paulo. A segunda parte, constituída por três capítulos, começa por nos levar num passeio pelas ruas centrais daquela cidade, detém-se, depois, nos conflitos do quotidiano que pontuavam as suas ruas e finaliza com a análise de um produto de uma nova ordem urbana — o transeunte. 

As ruas da cidade, pelo seu carácter fluido, transitório e fugaz, são sempre de difícil apreensão para os historiadores. Este trabalho, ao recorrer a instrumentos analíticos da sociologia e antropologia, mostra como as realidades quotidianas podem ser eficazmente analisadas no plano histórico. Alguns exemplos poderiam aqui ser citados, mas talvez seja de destacar um aspecto especialmente relevante para o leitor: a adopção de um estilo de escrita etnográfico (no qual as notícias de jornal fazem de diário de campo) que é fundamental para a construção e apresentação do argumento e de um terreno sempre movediço.

Ao contrário das cidades europeias e norte-americanas, onde o processo de urbanização teve a industrialização como principal motor, a dinâmica de urbanização de São Paulo assentou, durante o século xix, na expansão da cultura do café e na sua integração no mercado internacional. Pequeno pólo de vida a sul do Rio de Janeiro até ao século xix, é sobretudo a partir da década de 1870 que São Paulo “explode” física, social e economicamente. Socialmente, assiste-se à explosão demográfica resultante, sobretudo, da emigração (que surge a par do fim da escravatura); à urbanização da classe dominante — os fazendeiros que mudam a sua habitação do interior rural para a cidade; e ao crescimento das classes médias em consequência directa do aumento do sector dos serviços. Fisicamente, a par do aumento do espaço construído surgem as infra-estruturas da modernidade urbana: caminhos-de-ferro, iluminação pública, transportes públicos, água e esgotos, etc. É nesta cidade, em que os vínculos ao mundo rural são constantes, que a autora vai analisar a mudança nas práticas socioculturais que constroem o espaço público urbano.  

Na primeira parte de Tempos da Cidade Fraya Frehse debruça-se sobre um conjunto de obras que, desde 1930, analisam o desenvolvimento de São Paulo. Estas dividem-se em duas correntes principais. A corrente que advoga que o desenvolvimento urbano incorporou uma dinâmica de conflito e de interpenetração entre um passado rural e um presente urbano, veiculada por autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes. Nesta perspectiva, o confronto entre a “mentalidade patriarcal”, herança histórica, e a “mentalidade racional”, representando uma nova modernidade urbana, estaria em conflito num espaço privilegiado, a rua, e numa cidade que experimentou um processo de urbanização muito rápido, São Paulo. Já na segunda visão, expressa por autores como Richard Morse, defende-se que teria existido, na segunda metade do século xix, uma ruptura com o passado, na qual ao progresso material teria correspondido uma completa ruptura na mentalidade, que se teria então tornado “metropolitana”. Apesar de mais tarde estes autores terem tentado matizar esta visão de ruptura, permanecerão como vozes da teoria de uma transformação radical ocorrida em São Paulo no século xix — a tese da segunda fundação.

Ora, a autora propõe uma terceira corrente capaz de conciliar as duas anteriores: o enfoque no quotidiano. São Paulo é então um locus onde se conjuga uma «simultaneidade entre continuidade e ruptura» (p. 82). Se o primeiro conjunto de autores coloca a ênfase na continuidade e o segundo na ruptura, propõe-se aqui uma posição que prevê a «coexistência tensa e irremediável de ambas» (p. 86), observável no quotidiano urbano. Esta coexistência tensa entre permanência do tradicional e ruptura do moderno emerge como conceito central, em grande medida devido à escala de análise escolhida por Fraya (p. 88). A escala que, para a antropologia, é a «mais significativa da vida social» — a escala micro capaz de fazer emergir as permanentes resistências e conflitos experienciados num espaço público em permanente ebulição. Somos, assim, confrontados com uma historicidade das ruas e da vida urbana em que passado, presente e futuro se entrelaçam e em que o quotidiano surge como plano privilegiado para a apreender. 

A segunda parte desta obra inicia-se com um passeio pelas ruas do núcleo central da cidade. Este passeio é sustentado numa aturada pesquisa de fontes. As notícias de jornais são uma fonte central não só pelo que os jornalistas escreveram, mas também, e este pormenor é basilar, pelo que alguns citadinos decidiram redigir e enviar para os jornais. Outro tipo de fonte que assume uma relevância especial é a fotografia. Não é incomum um livro de história ter fotografias; no entanto, estas desempenham quase sempre um mero papel de ilustração, sendo normalmente apresentadas fora do corpo do texto, num anexo fotográfico. Neste livro, pelo contrário, a assinalável quantidade de fotografias está inserida no corpo do texto e funciona como parte integrante do argumento da autora. 

No início do nosso passeio somos confrontados com as imundices que pontuam as ruas da cidade. É aí que observamos uma crescente intolerância de alguns citadinos para com esta situação. Reclama-se a mudança e a imposição de normas higiénicas e morais no espaço público (o fim dos banhos em público, por exemplo). Avançando pela rua, somos confrontados com a criação, permanência e circulação de animais. Tal como no caso dos dejectos, assiste-se a uma crescente intolerância em relação à criação/pastoreio de animais domésticos, como galinhas ou cabras. Papel diferente é desempenhado pelo cavalo, elemento central nos transportes urbanos antes dos meios de transporte mecânicos e que vemos desempenhar um papel fundamental na introdução dos primeiros transportes públicos. Porém, nem mesmo os cavalos (e quem os conduz) escapam à crítica pelos constantes acidentes que provocam nas ruas ou pelos conflitos que o seu uso provoca. Grande parte das queixas tem um destino preciso – as autoridades públicas. A autora mostra depois como foi rápida a introdução de novas infra-estruturas que alteraram o aspecto físico e estabeleceram novas variáveis nas relações sociais de rua: iluminação a gás (1872), pavimentação (1873), canalização de água (1879) e esgoto (1883), mictórios e quiosques (1883), linhas telefónicas (1884). As notícias dos jornais mostram-nos como os habitantes da cidade mantiveram uma relação paradoxal com estes novos inventos. Por um lado, aprovam e queixam-se quando eles, por alguma razão, deixam de funcionar. Por outro, continuam a olhá-los com uma certa desconfiança, mais que não seja pela alteração de hábitos.

Seguindo o nosso caminho, surgem-nos as sociabilidades de rua. Festas populares e religiosas ocuparam tradicionalmente a rua; contudo, a forma como o fizeram estava prestes a sofrer transformações profundas. E, se houve festa que, pela folia, mas sobretudo pela violência que lhe estava associada, mereceu critica por parte de uma opinião pública que utilizava os jornais para se expressar, essa festa foi o Carnaval.

Finalmente, a autora leva-nos a olhar para os comerciantes que deambulavam pelas ruas. Perante um espaço público urbano cada vez mais formatado a uma única função — a circulação —, estes viram-se perseguidos pelas autoridades e arrastados para espaços secundários ou, na melhor das hipóteses, remetidos para espaços interiores em lojas ou nos novos mercados municipais. 

Terminado o passeio pelas ruas de São Paulo, Fraya Frehse reflecte, nos dois capítulos seguintes, sobre o que foi visto e apreciado. No primeiro, “Querelas e mazelas de um quotidiano bem pouco quotidiano”, aprofunda a análise sobre a constituição de uma opinião pública que utiliza os jornais como meio de comunicação e demonstra como esta influiu na formação de novas normas sociais que deveriam ser respeitadas no espaço público. Aqui importa assinalar como os conceitos de espaço público e esfera pública se conjugam. Estas novas normas de ordem higiénica, moral ou de comportamento social mais rotineiro vão enquadrar a racionalização do quotidiano das ruas, mas vão também gerar novos e permanentes focos de conflito. A coexistência de opiniões negativas e positivas sobre actividades sociais antigas e modernas nas ruas de São Paulo emerge como uma das dinâmicas sociais mais relevantes na sociedade paulistana.

No centro desta tensão surge então a figura do “transeunte” (capítulo 4). Figura anónima que, seguindo as premissas da nova ordem urbana, utiliza (ou assim representa) a rua exclusivamente como espaço de circulação, o transeunte não é, todavia, um utilizador neutro. É ele que escreve para os jornais reclamando; que pede a mudança de hábitos; que exige para as ruas a aplicação de um conjunto de normas de conduta que façam emergir nas novas situações quotidianas no espaço público urbano (por exemplo, o direito a circular nos transportes públicos) as hierarquias sociais observáveis noutras esferas (numa sociedade que ainda não sabia exactamente como lidar com o fim da escravatura). Mas é também um indivíduo dilacerado entre o antigo e o moderno, porque, apesar de incorporar as características da modernidade urbana, é ainda ele próprio uma reminiscência de um passado quotidianamente presente. A rua como espaço de proximidade física entre toda a heterogénea população urbana é, assim, um palco onde as tensões entre antigo e moderno adquirem uma relevância particular.

Apesar da existência de alguns pontos que nos merecem crítica, como a subvalorização do papel do Estado enquanto agente de mudança social, ou, por exemplo, uma leitura algo anacrónica do lugar dos animais na cidade, apresentados como uma vinculação ao mundo rural quando já só bem dentro do século xx é que estes passaram a ser vistos como algo não urbano (ou, se preferirem, rural), este livro é um importante contributo para o estudo das relações sociais nos espaços públicos urbanos. Mostra-nos como o processo de urbanização, elemento central na história das sociedades contemporâneas, foi muito mais do que um simples crescimento das populações e dos espaços construídos, tratando-se também de uma transformação tensa e conflituosa nos modos de vida. Assim, o maior contributo deste livro é a forma como capta, com uma sensibilidade assinalável, as transformações socioculturais num território de difícil apreensão histórica. 

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