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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.193 Lisboa out. 2009

 

A terra dos heróis: espaço urbano e vida comercial em Manjacaze (Moçambique)

 

Fernando Bessa Ribeiro*,José F. G. Portela*, Chris Gerry*

*Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Av. Almeida Lucena, 1, 5000-660 Vila Real, Portugal. e-mail: fbessa@utad.pt; jportela@utad.pt; cgerry@utad.pt.

 

Escorado nos contributos teóricos de diversas ciências sociais, com destaque para a antropologia social, a sociologia, a geografia e a história, o artigo procura examinar as dinâmicas sociais relacionadas com as actividades comerciais num espaço urbano localizado no sul de Moçambique. Partindo da problematização teórica do conceito de espaço, o texto avança para a caracterização espacial, política, social e histórica de Manjacaze, terminando com a análise do uso do espaço em contexto pós-colonial. Não sendo possível pensar as dinâmicas sociais fora do espaço, procura-se mostrar que o modo como este é usado é profundamente histórico e que nele se faz sentir quer a acção do Estado e seus agentes, quer os interesses e conflitos que opõem as diferentes classes e grupos sociais.

Palavras-chave: Manjacaze; Moçambique; espaço; comércio; dinâmicas sociais.

 

Land of heroes: urban space and commercial life in Manjacaze (Mozambique)

Drawing on contributions from social anthropology, sociology, geography, and history, the article examines the social dynamics that have shaped urban space in Southern Mozambique. The authors first problematise the question of space, then provide a spatial, political, social, and historical characterisation of the town of Manjacaze, ending with an analysis of the postcolonial use of urban space. The authors show that the use of space is profoundly historical, and that in it can be discerned both actions taken by the state and its agents, and the interests that bring different classes and social groups into mutual contact and conflict.

Keywords: Manjacaze; Mozambique; space; trade; social dynamics and interactions.

 

Introdução

A reflexão sobre o espaço tem sido realizada por várias disciplinas, com destaque para a geografia, a sociologia, a antropologia e a história. Este campo constitui uma expressão forte da crescente porosidade disciplinar, directamente relacionada com a cada vez mais frequente organização do trabalho científico, tendo por base temas ou áreas geográficas, como justamente foi assinalado por Wallerstein et al. (1996, pp. 102-103). É de salientar também que na antropologia, na sociologia e na história os procedimentos interpretativos, as problemáticas teóricas, os paradigmas e as modalidades de construção do objecto são, basicamente, comuns e transversais, apesar de cada uma privilegiar, em regra, diferentes formas de investigação empírica: as fontes documentais para a história, o inquérito por questionário para a sociologia e a observação participante para a antropologia (Olivier de Sardan, 1995, p. 71). A compreensão do modo como o espaço é apropriado e usado implica a mobilização de diversas ciências sociais. Silva (2006), entre outros, dá especial destaque à relação entre a geografia e a sociologia, sem obnubilar, entre outras, a antropologia e a história:

Conceitos territoriais tais como casa, aldeia ou cidade, região ou país são simultaneamente geográficos e sociológicos […] Com as perspectivas geográfica e sociológica entrecruzam-se também outras, tais como a antropológica, a histórica e mesmo a psicológica e arquitectural. A casa, por exemplo, é também o lugar arquitectónico da personalidade íntima, o que implica ter presente a dimensão sociopsicológica [Silva, 2006, p. 186].

A partir dos dados recolhidos para uma tese de doutoramento de um dos autores (Ribeiro, 2004) sobre modernização e mudança social em Moçambique, pretende-se reflectir sobre as dinâmicas sociais relacionadas com a vida comercial na vila de Manjacaze (v. mapa n.º 1). Localizada na província de Gaza, é um lugar expressivo na ocupação portuguesa do interior moçambicano a partir do final do século xix. Nele, o colonialismo estabeleceu e consolidou um espaço urbano, simultaneamente centro de poder político e económico e instrumento de afirmação simbólica da “superioridade” do colonizador, marcado pela presença de indivíduos de origem indiana, que aí se fixaram para comerciar. Mas não só. Manjacaze é também um lugar primordial para a construção da nação moçambicana, e daí poder ser considerado a “terra dos heróis”. Em Manjacaze ocorreu a derradeira batalha entre o exército colonial português e as forças do império de Gaza; aí nasceu Eduardo Mondlane, fundador e primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) (Ribeiro, 2005). Tal concorre para a produção de uma condição híbrida, marcada por caldeamentos, encontros e conflitos entre pessoas e grupos com origens étnicas, sociais e geográficas muito diversas, os quais, como veremos, ainda hoje continuam a fazer-se sentir.[1]

 

Localização de Manjacaze

[Mapa n.º 1]

 

Após a discussão sobre a noção conceptual do espaço, far-se-á uma análise da fundação e expansão colonial de Manjacaze e a descrição etnográfica sobre a sua evolução pós-colonial. Como se disse, o enfoque recairá sobre a vida comercial deste espaço urbano, em concreto sobre as suas origens, o trajecto histórico, os actores e grupos sociais e ainda as suas estratégias e práticas. Procurar-se-á mostrar que as rupturas e uma certa continuidade fazem a história deste lugar, constituindo um par inseparável. Se, por um lado, em determinados aspectos encontramos uma relativa estabilidade (v. g., nos usos do espaço, ainda que com alterações simbólicas relevantes), por outro lado, as rupturas são igualmente evidentes nos campos político e social. Enfim, o modo como o espaço é apropriado, utilizado e valorizado é indissociável das dinâmicas económicas, das lutas sociais e da intervenção deliberada do poder estatal.

 

O espaço: usos e dinâmicas

A vida social desenrola-se em lugares concretos, em relação com os objectos e todos os demais elementos que compõem o espaço físico. Segundo Bourdieu (1999, p. 160) “o lugar pode ser definido absolutamente como o ponto do espaço físico onde um agente ou uma coisa se encontra situado, tem lugar, existe”. Os lugares são espaços onde as relações sociais se produzem, organizam e se transformam no curso do tempo; são espaços “afeiçoados” pelos actores e grupos sociais que neles residem e trabalham (Portela, 2001). Giddens (1984, p. 118), por seu turno, propõe o conceito de locale, que caracteriza o uso do espaço para definir settings de interacção essenciais à especificação da sua contextualidade.[2] Pode aplicar-se a um quarto de uma casa, a um cruzamento de ruas, a uma fábrica, a cidades, a territórios dos Estados-nações. A vantagem deste conceito face ao do lugar é, no entender de Giddens, a de permitir examinar as relações sociais através do espaço e do tempo. Isto é, este conceito articula o lugar, dimensão basicamente geográfica, com as dimensões social e temporal, permitindo “conceptualizar quadros sistémicos de interacção e relações sociais — em que se incluem as suas dimensões físicas — assentes na coordenação espácio-temporal de actividades” (Sobral, 1999, p. 46). Em suma, as actividades humanas são sempre situadas, quer dizer, estão social e fisicamente ancoradas aos lugares onde se vive e aos que se visitam. Os ruídos da cidade, os sons do campo, os objectos e as pessoas que nos rodeiam ou que nos podem contactar fisicamente acentuam a relação humana com o lugar.

São inúmeros os debates sobre esta temática. Procurando elaborar uma visão sintética sobre eles, Silva (2006, pp. 191-192) refere que, enquanto os teóricos da escola de Chicago, como Park (1987), Wirth (1987 [1938]) e Burgess (1967 [1925]), argumentam que o espaço é uma variável independente, já os marxistas, com destaque para Lefebvre (1968), Castells (1975 e 1982) e Harvey (1992), consideram-no inseparável das dinâmicas sociais, económicas e políticas. Nesta óptica, os usos e as mudanças que se verificam no espaço devem ser compreendidos em função da própria sociedade nela implementada, das suas rupturas e vicissitudes históricas. Por seu lado, os teóricos de filiação weberiana, como Ledrut (1968) e Freund (1975), sublinham a importância do factor político, designadamente da acção deliberada do Estado e seus agentes na configuração do espaço. Escrutinando estas posições em confronto, Silva (2006, pp. 194-195) argumenta que “o facto de se sustentar que o espaço tem uma relativa autonomia e produz efeitos próprios não significa que não seja socialmente condicionado. O espaço, para ser explicativo, tem de ser articulado com outros factores de carácter social, político e cultural”. Trata-se, pois, de subscrever uma posição analítica sobre o espaço que o entende como um produto da acção social:

O espaço em si pode ser primordialmente dado, mas a organização e o sentido do espaço são produto da translação, da transformação e da experiência sociais. O espaço socialmente produzido é uma estrutura criada, comparável a outras construções sociais resultantes da transformação de determinadas condições inerentes ao estar vivo, exactamente da mesma maneira que a história humana representa uma transformação social do tempo [Soja, 1993, pp. 101-102].

A forma como o espaço é usado, ou, mais concretamente, os processos de intervenção humana no território, são inseparáveis das dinâmicas sociais e políticas ocorridas ao longo do tempo histórico e da própria acção dos actores. No campo da antropologia social, os trabalhos de Long (1989, 1992 e 2001), de Arce e Long (1999), de Ong (1999) e de Olivier de Sardan (1995 e 2001) revelam o papel decisivo da acção individual dos actores sociais na estruturação dos quadros político-sociais, ainda que tal não permita subalternizar a força das estruturas sistémicas que os condicionam. Os actores sociais possuem uma margem relativa de agência, variável em função dos contextos histórico-espaciais e sempre sujeita aos constrangimentos impostos pelas estruturas onde a acção se inscreve, como justamente assinala Bourdieu (1997, 2000a e 2000b). Ou seja, as estruturas espaciais existentes influenciam a vida social nas suas dimensões mais diversas, incluindo o modo como os actores intervêm nelas. Na perspectiva de Bourdieu (1997, p. 31), “a noção de espaço contém, por si própria, o princípio de uma apreensão relacional do mundo social”. O espaço social, melhor dito, os espaços sociais são campos de força e de luta que se impõem aos actores sociais neles envolvidos, são

estruturas de diferenças que só podemos compreender deveras na condição de construirmos o princípio gerador que funda essas diferenças no plano da objectividade. Princípio que não é senão a estrutura da distribuição das formas de poder ou das espécies de capital que são eficientes no universo social considerado — e que variam, portanto, segundo os lugares e os momentos [Bourdieu, 1997, p. 32].

Os actores sociais percebem que o espaço em que se movem não é homogéneo. É no espaço que se inscrevem as condições materiais de existência (Hall, 1986), é nele que se constroem e se exprimem as distinções que, segundo o sentido dado por Bourdieu (1979), marcam muitos outros aspectos da vida social, como o local e tipo de habitação, as actividades e os lugares de lazer. A organização das aldeias, das vilas e das cidades não é fruto do acaso, mas produto da história, quer dizer, da acção dos actores sociais, das instituições e do Estado. Estamos perante realidades dinâmicas que não se apresentam jamais em “estado puro”, como assinala Baptista (2006, p. 55), na esteira de Remy e Voyé (1974). A cada “espaço dado”, entendido como as formas já existentes (habitações, ruas, etc.), a acção social vai acrescentando e modificando as estruturas físicas, por outras palavras, vai elaborando a todo o instante o seu espaço “produzido”, através das intervenções e interpretações definidas pelas dinâmicas sociais, pelas tensões, pelos sonhos e pelas expectativas dos actores sociais (Bromberger e Ravis-Giordani, 1976). Assim, conhecer todos os elementos e aspectos que compõem o espaço, como as habitações, os lugares públicos, as ruas e caminhos e a própria toponímia, como fez Martinelli (1982), é fundamental, pois todos os grupos humanos inscrevem e produzem a sua existência no espaço, ainda que, parafraseando Marx, não sob as condições e os modos por eles escolhidos.

É precisamente esta pluralidade de aspectos, hibridismos, relações e conflitos relacionados com o espaço que a observação etnográfica em Manjacaze revela. Procurando seguir a discussão teórica acima enunciada, a análise sobre este espaço concreto começará pela história do lugar para mergulhar seguidamente na discussão sobre a vida comercial urbana.

 

Manjacaze, a “Terra dos Heróis”

A história de Manjacaze está estreitamente ligada ao processo de penetração do colonialismo português em Moçambique. Última capital de Ngungunhane[3], foi saqueada pelo exército português em Novembro de 1895. Apesar da destruição provocada, a zona continuou a manter atracção suficiente para nela se estabelecer um aglomerado populacional moderno, assente no pequeno comércio colonial dos cantineiros indianos e, mais tarde, portugueses. A palavra Mandlakazi é de origem zulu, tendo sido traduzida por Liengme — descendente do missionário médico suíço que viveu em Gaza de 1892 a 1895 — por grande força ou cidade forte e bela (Liesegang, 1986, p. 32). Tal termo teria como função designar a aldeia real. No entender de Vilhena (1996, p. 105), “onde quer que Gungunhana se fixasse, sempre a sua povoação se chamaria Manjacaze”. Outros dão-lhe uma interpretação diferente, considerando que resulta da palavra “Va lhakazi” — a quem golpearam com as lanças e mataram (Tempo, n.º 600, de 11-4-1982, suplemento). Este significado parece ter-se perdido, substituído por um outro que acentua a sua condição de terra de lutas e de heróis, de mortes e sangue vertido. Assim, temos “mãos de sangue” — mandla ya gázi —, expressão do forte derramamento de sangue que se verificou aquando da instalação de Ngungunhane nestes territórios do sul de Gaza, cuja versão corrente é “comer sangue”, isto nas vozes de informantes locais. Segundo um deles, à sombra da árvore onde, diz a tradição, dava as ordens aos seus guerreiros, Ngungunhane, confrontado com as enormes baixas causadas pelos muchopes, interrogou-se:[4] “porquê este sofrimento, porque é que estou a comer sangue?” No dizer de um outro informante, muito idoso, conhecedor da história pelas narrativas do seu pai, um dos primeiros intérpretes dos portugueses, “os muchopes estavam a chegar-lhe bem”. Subsistem algumas dúvidas em relação ao local efectivo da capital do império de Gaza. De acordo com os elementos reunidos por Liengme (Vilhena, 1996; Liesegang, 1986), quando Ngungunhane veio do Norte e se instalou por volta de 1889, fê-lo efectivamente junto à lagoa Sulé, numa zona localizada a sudoeste desta, onde permaneceu até 1891. Posteriormente mudaria para um local mais próximo da actual Manjacaze, onde terá ficado pouco tempo. Acabaria por se afastar da lagoa, fixando-se na planície de Manguanhane, alguns quilómetros a norte da actual vila, hoje parte do distrito do Chibuto. Segundo diversas estimativas, a povoação possuía entre 600 e 1600 palhotas, sendo para a época de grande dimensão, embora muito inferior a Lourenço Marques ou Inhambane (Liesegang, 1986, pp. 33-34). Teria sido este o aglomerado populacional atacado e queimado pelas tropas portuguesas em 1895 (Liesegang, 1986, pp. 9-10).

A Manjacaze moderna é obra do esforço colonial na sua tentativa de ocupação do interior moçambicano. Se é inquestionável o interesse do Estado colonial em apoderar-se do vasto território do sul de Moçambique, disseminando para isso estruturas político-administrativas em novos centros urbanos — com destaque para os lugares ligados à luta contra a ocupação colonial —, a escolha deste espaço estará também relacionada com a posição geográfica e a abundância de recursos populacionais e naturais. Note-se que, aquando da definição do traçado da linha do caminho-de-ferro do Xai-Xai (capital provincial) para o interior da província de Gaza, João Bello — comandante de esquadrilha em Gaza, mais tarde ministro das Colónias — escreveu que, em virtude de a reforma administrativa ter extinguido o distrito de Gaza, o traçado inicialmente pensado deixava de fazer sentido, desvalorizando assim a importância do Chibuto, lugar vizinho localizado a menos de meia centena de quilómetros de distância. Na sequência das viagens empreendidas pelo extinto distrito, Bello chegou à conclusão de que a circunscrição dos muchopes era a melhor, com uma população trabalhadora, pelo que propunha que a linha se dirigisse para Manjacaze. Discutindo o apego ao trabalho por parte das populações nativas, Bello et al. (1911, p. 7) escreveram:

Nesta parte do país, que é a região dos M’chopes, notámos que os indígenas se dedicavam com o maior interesse à agricultura, e conseguintemente estavam as suas culturas em melhores condições do que outras culturas indígenas que anteriormente havíamos visto [...] a gente dos M’chopes se mostra em geral ansiosa por obter melhores variedades de sementes para as suas culturas e mostra bem assim o desejo de experimentar novos processos de cultivação.

Estava, pois, plenamente justificada a passagem do caminho-de-ferro por Manjacaze: um lugar e uma população com características adequadas às necessidades do projecto colonial. Na perspectiva de Bello:

O terreno é todo repartido entre machambas de mandioca e milho, alternadas com extensos tractos de mattas. Por toda a parte abundam cursos d’água, as lagoas e os pantanos. Nas grandes planícies, frescas e húmidas, vestidas d’uma relva verde e macia, pastam rebanhos de carneiros, cabras e bois; nas machambas, as mulheres com pequenitos às costas, cavam a terra [...] Estava, pois, a meu ver, indicado qual o ramal do caminho de ferro de penetração Inhambane-Inharrime-Lourenço Marques, que primeiro se construísse em Gaza deveria ter por objectivo ligar a Circumscripção dos M’chopes ao Chai-Chai, como terminus da navegação, que frequenta o porto de Inhampura [Lima, 1971, pp. 27-28].

O objectivo principal era ligar Lourenço Marques a Inhambane, passando pelo distrito de Manjacaze. Finalmente, em 1909 deu-se início à obra de construção do caminho-de-ferro, em via estreita de 0,75m, numa extensão de quase 52 km entre Xai-Xai e Manjacaze, entrando em funcionamento no ano seguinte. Em 1915 iniciou-se a construção do ramal para Chicomo. Além do grande propósito da ligação das duas grandes cidades do sul de Moçambique, a linha propiciaria uma outra finalidade, como refere Bello (Lima, 1971, p. 29): assegurar o escoamento fácil dos produtos agrícolas da região, então considerada de grande produção. Esta função seria desempenhada, com inegável sucesso, durante quase todo o século xx. Juntamente com a implementação do aparelho político-administrativo, a linha permitiu consolidar a presença portuguesa nesta parte de Moçambique, bem como projectar a força do poder colonial sobre as populações locais. Em suma, foi a articulação de diversos recursos e singularidades, nomeadamente de carácter político-simbólico e económico, que acabaria por dar a Manjacaze a sua configuração moderna.

Na estruturação político-administrativa actual, o centro urbano, os bairros adjacentes e as suas áreas limítrofes constituem o município de Manjacaze, estabelecido pela lei n.º 2/97, de 18 de Fevereiro, vulgarmente designada por “lei das autarquias”. A sua instituição é directamente decorrente das profundas alterações políticas verificadas em Moçambique com o ajustamento estrutural imposto, em boa medida, pelas instituições do Consenso de Washington. Em 1996 foram constitucionalmente (artigo 190º) estabelecidos dois tipos de “autarquias locais”: município, para as cidades e vilas; povoação (sede do posto administrativo), para os pequenos aglomerados, directamente dependentes do primeiro. Com base naquilo que se designou por gradualismo (Hanlon, 1998), foram definidos como municípios somente as 23 cidades e 10 das 68 vilas do país. Manjacaze foi uma delas. O município é composto pela assembleia municipal e pelo conselho municipal. A primeira tem poderes deliberativos e de fiscalização, o segundo é o órgão executivo.

No distrito habitam 161 147 pessoas, das quais somente 14,5% vivem na vila de Manjacaze (II Recenseamento geral da população e habitação 1997 — Resultados definitivos, 1999). Trata-se de um dos distritos com maior peso demográfico em Gaza, a província a que pertence administrativamente. Os dados estatísticos mais recentes para Manjacaze e Gaza apontam para o perfil demográfico dominante nos países periféricos, em particular na África subsariana, marcado por reduzida esperança de vida, predomínio da população jovem e elevadas taxas de fecundidade e mortalidade. A população distribui-se por 38 495 agregados familiares, dos quais cerca de 40% são alargados. A evolução demográfica reflecte os efeitos da guerra no distrito de Manjacaze e, em especial, o terror exercido pela Renamo sobre a população civil (v. gráfico n.º 1).

 

Evolução demográfica no distrito de Manjacaze

[gráfico n.º 1]

 

A partir do recenseamento de 1950, constata-se que o crescimento populacional foi contínuo até 1980. Com mais de 180 000 habitantes nesse ano, ao longo da década a população iria diminuir para quase metade. Como aconteceu em muitos outros distritos rurais, a população procurou refúgio seguro nas grandes cidades, sobretudo na capital, abandonando as suas casas e machambas. Com a paz, estabelecida em 1992, a população começa a regressar às suas terras, dando origem a uma recuperação demográfica que, porém, ainda não permitiu que se atingissem os valores populacionais de 1980.

 

Espaço urbano e vida comercial em Manjacaze

Manjacaze organiza-se em torno do seu centro político e administrativo, sito em redor da avenida principal, e das suas duas zonas comerciais (v. figura n.º 1 e anexo n.º 1). O eixo principal do centro urbano é definido por uma grande avenida. No topo sudeste encontramos o edifício da administração distrital. O outro topo é rematado pela Praça dos Heróis. Neste espaço destaca-se a pira da união nacional — monumento evocativo da luta pela independência —, onde se realizam algumas das manifestações mais solenes promovidas pelo Estado. No seu interior temos o jardim dos Heróis Moçambicanos. A faixa central da avenida é ladeada, em ambos os lados, por edifícios em alvenaria que formam o melhor conjunto arquitectónico da vila. No lado leste, a maioria dos edifícios tem funções político-administrativas. Já do lado oposto predomina o uso habitacional. Com a excepção de quatro edifícios, as construções remontam todas ao tempo colonial. Os seus usos denunciam o modo como o espaço é socialmente apropriado e usado ao longo da história. Apesar das grandes mudanças institucionais relacionadas com a substituição do aparelho político-administrativo colonial pelo Estado moçambicano, há uma certa continuidade na ocupação dos espaços construídos, com 22 edifícios (cerca de dois terços do total) a manterem a função habitacional no período pós-independência.

 

Representação esquemática do centro administrativo de Manjacaze[5]

[figura n.º 1]

 

Desde o período colonial que este espaço central constitui a zona “nobre” de Manjacaze, nele se situando os principais órgãos de soberania do Estado moçambicano e as residências de função da elite político-administrativa local. Na cabeceira superior da avenida situa-se o edifício da administração, cujas traseiras dão para a praça acima referida. Junto a este temos o canhoeiro onde, segundo a memória colectiva, Ngungunhane se reunia para conversar com o seu povo e dar as ordens aos seus chefes militares[6]. Eis como Eduardo e Janet Mondlane viram o local quando visitaram Manjacaze em 1961:

A administração estava situada num local maravilhoso com vista para um grande lago. À frente, os portugueses tinham construído um bonito parque com estatuetas no interior de um pequeno lago, como acontece em muitas outras pequenas cidades. Mas o que era extraordinário aqui é que perto da porta de entrada havia uma grande árvore, o Eduardo reconheceu-a como uma Ndsondso, com uma pequena placa dizendo que ali era o lugar onde Ngungunyana se costumava sentar com os seus conselheiros quando tinha de tomar decisões [Manghezi, 2001, p. 203].

É em volta deste núcleo urbano — o chamado bairro do Cimento — que se organizam os restantes bairros residenciais de Manjacaze: Liberdade, Eduardo Mondlane, Josina Machel, Alto e Macave[7]. São compostos, na sua esmagadora maioria, por habitações em caniço e telhado de chapa, muitas delas com chão de cimento e energia eléctrica (INE, 1999). As casas de alvenaria vão já ponteando a paisagem urbana com alguma regularidade. Para além das famílias de comerciantes, possuem habitações deste tipo os assalariados mais bem remunerados: trabalhadores de algumas empresas de grande dimensão com instalações no Xai-Xai e a operar no distrito[8], profissionais técnicos, membros dos corpos intermédios da administração pública e outros que, não o sendo, têm acesso a ganhos provenientes da prestações de pequenos favores.

Quanto às zonas comerciais, a formada pelo mercado Xikanhanine está localizada no cruzamento da avenida principal acima referida com as estradas para o Xai-Xai e para Macuácua. Esta enorme área de comércio e serviços ditos informais foi criada em 1992[9], contando com quase 400 barracas [10], na sua maioria exploradas por mulheres (v. fotografia n.º 1)[11]. Inicialmente organizado em torno do mercado central[12], velha construção colonial destinada a abastecer a vila de produtos frutícolas, hortícolas e de outros bens alimentares, situado no extremo da zona do comércio formal, a exiguidade do espaço não permitiu acolher todos os que desejavam tentar a sua sorte no comércio, pelo que daria origem ao Xikanhanine. Como acontece nas demais cidades e vilas de Moçambique, os mercados informais de Manjacaze são consequência directa das mudanças económicas verificadas a partir de meados dos anos 80 do século xx[13]. Considerado inicialmente um sector marginal, o crescimento e enraizamento deste tipo de actividade tornou-o central na economia. A liquidação de empresas e o desemprego em massa empurraram muitos indivíduos para os pequenos negócios informais. Apesar das dificuldades da sua medição, devido às actividades muito fluidas e heterogéneas nele compreendidas — produção artesanal, vendas ambulantes, comércio em barracas e outras construções precárias —, o comércio informal tornou-se o principal “empregador” no sector terciário da economia, como é hoje notório em Manjacaze. Em termos sociais, funciona como um amortecedor, absorvendo parte significativa da força de trabalho excedentária que, sem esta alternativa, poderia constituir-se num perigoso factor de desestabilização e agitação, perturbando fortemente a já baixa legitimidade do Estado. Por outras palavras:

 

Placa de boas-vindas na entrada principal do mercado Xikanhanine

[fotografia n.º 1]

 

O sector informal acaba, assim, por espelhar a crise geral que afecta o país, representando por um lado a fraqueza do Estado na produção de respostas para os problemas económicos e sociais e, ao mesmo tempo, as formas alternativas (e seus constrangimentos) que visam compensar quer os impactos económicos, quer os impactos sociais produzidos pela crise, através das redes de solidariedade [T. C. e Silva, 2002, p. 86].

A outra zona comercial fica na parte baixa da cidade, onde se situam as lojas do chamado comércio formal, quase todas de famílias muçulmanas de origem indiana, há várias gerações implantadas na vila. Nas traseiras das lojas ou, mais raramente, por cima, quando o edifício é nobre, situam-se as residências dos comerciantes. Este pólo comercial é também zona habitacional privilegiada, nela residindo, entre outros, os “velhos” comerciantes e suas famílias. Trata-se de um pequeno quarteirão constituído por duas longas artérias paralelas, cortadas por quatro ruas perpendiculares (v. fotografia n.º 2). A última, que leva à estação do caminho-de-ferro, é a linha terminal do comércio no lado sudoeste. Quase no entroncamento desta artéria com a rua principal localiza-se a estação de camionagem dos Transportes Oliveiras, presente em Manjacaze desde o tempo colonial, com carreiras regulares para as principais cidades do sul e centro de Moçambique[14]. Ao longo das ruas da vila, traçadas na época colonial a “régua e esquadro”, os estabelecimentos vão hoje alternando de diversos modos: a maioria está em acentuada decadência e todos acusam os efeitos exercidos pelo processo histórico e pelas trajectórias de vida dos seus proprietários.

 

Manjacaze: rua principal do comércio formal

[fotografia n.º 2]

 

Tendo sido quase todos construídos no período colonial, os edifícios comerciais causaram, na época, a mais viva impressão na população indígena. Eduardo Mondlane oferece-nos uma descrição encantada desse encontro, recordando o seu tempo de meninice:

Pela primeira vez, vejo “casas com esquinas”, tão diferentes das nossas cabanas circulares. Admiro estas construções de alvenaria, cobertas de chapa ondulada. Há tantas que formam uma rua orientada de leste para oeste. Entre duas filas de lojas passa uma estrada que vem de muito longe e vai para muito longe. Fazendo companhia à estrada, uns postes carregam fios a que chamam “linha telefónica”. De tempos a tempos, um fio separa-se para entrar dentro de uma casa de alvenaria. Algumas construções são feitas inteiramente de chapa, paredes e tecto. Estas são pintadas de amarelo, enquanto os edifícios de pedra ostentam uma brancura de cal [Khambane e Clerc, 1990, p. 43][15].

As famílias de origem indiana e religião muçulmana ainda detêm o grosso dos estabelecimentos comerciais. A sua presença é bem antiga, anterior ao avanço da colonização portuguesa e à presença de comerciantes europeus por estas paragens, permanecendo bem viva na memória de muitos dos descendentes. Honwana (1989, p. 39) refere que os mercadores indianos do sul de Gaza já frequentavam a zona de Manjacaze em finais do século xix, aonde se deslocavam para comerciar com Ngungunhane e a sua corte. Por outro lado, alguns membros das famílias com presença mais antiga colocam a chegada dos seus pioneiros por volta do final da primeira década do século xx. Segundo o relato de um destes informantes indianos mais velhos:

O meu avô chega a Lourenço Marques, vindo de barco de Damão, por causas das condições de vida, aí por volta de 1907. Como isto tudo era território português, havia a necessidade de explorar isto. Sabendo das potencialidades comerciais desta zona, já do tempo de Vasco da Gama, e sabendo das particularidades dos indianos no ramo dos negócios, havia todo o interesse em não serem só os portugueses a fazerem negócio. E como o próprio indiano tem uma característica natural de interacção com os africanos... Este meu avô, em Lourenço Marques, junta-se com uma senhora mista a quem faz um filho e uma filha. Ele misto, indiano, maometano. [Poucos anos depois] ele emigra para Gaza [Manjacaze], conhece a minha avó, Maria Antónia de Deus, uma negra de Inhambane. Com esta minha avó faz uma série de filhos.

A maioria das famílias de origem indiana que se instalou na primeira metade do século xx permanece em Manjacaze. Com a excepção dos de origem hindu, atingidos pelas retaliações levadas a cabo pelas autoridades coloniais na sequência da anexação de Goa, Damão e Diu, os restantes comerciantes indianos atravessaram todo o período colonial sem problemas de maior, não obstante a presença crescente e muito influente dos colonos portugueses, com destaque para Joaquim José da Cruz, Manuel Rodrigues Neto e Manuel da Silva Santos. Com a independência, os comerciantes brancos de Manjacaze regressaram a Portugal, onde tinham as suas raízes e vínculos familiares. Por falta de alternativa, ficaram os indianos, não obstante as suas manifestas reservas em relação ao programa político da Frelimo. Conquanto a maioria do património imobiliário dos comerciantes portugueses, por via do abandono, tenha caído nas mãos do Estado moçambicano, alguns indianos aproveitaram oportunidades, entretanto surgidas, de exploração desses negócios. Mais tarde, aquando das privatizações, assumiram a posse jurídica da propriedade. Foi precisamente o caso de um dos nossos informantes:

Ele [o antigo colono] trespassou aquilo para mim, e depois o governo nacionalizou aquilo. Ao princípio o administrador que estava lá queria aquilo para dar a uns familiares seus. Mas não conseguiu tirar. Eu peguei nos documentos, fui mostrar, viram que eu tinha razão. Depois, com a alienação, eu fiquei com aquilo.

Ao mesmo tempo que diversas famílias indianas aproveitam para consolidar os seus negócios, adquirindo ao Estado a propriedade das cantinas abandonadas pelos antigos colonos portugueses, transformadas pelo poder revolucionário em “lojas do povo”, alguns africanos negros vão tornar-se negociantes e, posteriormente, proprietários dos seus espaços comerciais, com a alienação do património imobiliário nacionalizado pelo Estado. A distribuição da propriedade é muito diferente daquela que existia aquando da independência. Os comerciantes brancos praticamente desapareceram, enquanto os indianos souberam perdurar, sobrevivendo ao processo político pós-independência e aceitando, não sem alguma acrimónia, a presença forte dos africanos. Como mostra a figura n.º 2, mais de três quartos dos estabelecimentos mudaram de dono, com a propriedade a passar das mãos de colonos brancos para indianos e, em menor grau, para africanos.

 

Mudança da propriedade comercial após a independência

[figura n.º 2]

 

De referir ainda que os três estabelecimentos que não existiam no período colonial são propriedade de dois africanos negros e de um indiano. A situação descrita revela uma das mais importantes alterações sociais na Manjacaze pós-colonial: a saída dos colonos brancos dá origem a uma pequena burguesia negra. Repetindo, de certo modo, a situação vivida no período colonial com os portugueses, os moçambicanos contam com o apoio do Estado, no qual ocupam agora a grande maioria dos lugares político-administrativos. A sua força reside não apenas no número, mas também (e sobretudo) no sucesso comercial de alguns e, obviamente, na valia proporcionada pelos seus avantajados recursos políticos. Note-se ainda que esta classe social, beneficiária directa das mudanças políticas e das vantagens do que se pode designar por blackempowerment, é composta por empresários com ligações à Frelimo, muitos com experiência no exercício de cargos públicos, outros ainda com responsabilidades na vida político-partidária.

 

Conclusões

Os usos do espaço em Manjacaze são indissociáveis das dinâmicas políticas e sociais que se desenvolvem ao longo do tempo. As estruturas que definem a matriz urbana e, em particular, o modo como elas se distribuem nela dependem largamente da acção política do Estado e das estratégias colocadas em prática pelos actores sociais. A Manjacaze moderna é consequência, em boa medida, de um acto de vontade do poder colonial, como aconteceu com muitos outros lugares gerados a partir da ocupação portuguesa. Neste caso concreto, é de relevar a sua força simbólica, palco da derradeira batalha que opôs o império de Gaza ao exército português. Símbolo da oposição ao colonialismo, a sua ocupação por parte do Estado colonial, através da implementação de um centro urbano moderno, dotado de estruturas político-administrativas e comerciais, era fundamental para a afirmação do novo poder estatal. Se este factor foi certamente decisivo, o sucesso urbano deste espaço é inseparável da abundância de recursos populacionais e agrícolas. Por último, mas não menos significativo, temos a posição geográfica deste lugar no interior sul de Moçambique, que acabaria por justificar, entre outros aspectos, a passagem da linha de caminho-de-ferro da capital moçambicana em direcção ao centro do território. Espaço dominado pela construção de edifícios modernos destinados a utilização comercial e que foram eloquentemente descritos por Eduardo Mondlane, Manjacaze é um arquétipo vigoroso, qualquer que seja o ponto de observação do modo como a modernização se constrói em Moçambique.

O factor político foi também importante enquanto mecanismo de apoio a determinados grupos em detrimento de outros. Através da mobilização de diferentes recursos, nomeadamente relacionais, os actores sociais tentam explorar em seu proveito as oportunidades existentes. Estas variam com o tempo histórico, como ficou especialmente evidente em relação à evolução dos tipos e propriedade dos negócios de comércio em Manjacaze. No caso dos mercados informais, que deram origem a dois novos espaços urbanos vincados por usos sociais específicos, eles são consequência directa das alterações políticas e económicas produzidas pela implantação do neoliberalismo em Moçambique. Nele trabalham e procuram sobreviver mulheres e homens negros, animados pela crença, profundamente individualista, da responsabilidade própria nos seus destinos de vida e na concomitante expectativa de enriquecimento económico e ascensão social, de certa forma comprovada pelos raros exemplos que conhecem, transformados pelos discursos dominantes em paradigmas do trabalho esforçado, ao alcance de qualquer um que possua iniciativa e força de vontade, ou seja, que possua o tão proclamado “empreendedorismo”. Quanto ao mercado formal, os comerciantes negros detêm já uma projecção económica e política que lhes garante uma posição quase hegemónica. Tal exprime uma mudança socialmente relevante que implicou a transferência de património imobiliário (incluindo lojas e residências) entre pessoas sem ligações de parentesco.

A estas rupturas contrapõem-se algumas continuidades, mormente no uso dos espaços. Apesar das mudanças políticas e sociais ocorridas e que não deixaram de se repercutir nos edifícios e noutras estruturas urbanas que organizam o espaço urbano, o modo como são usados não se alterou de modo significativo. Na velha zona de comércio formal os edifícios continuam a ser utilizados como espaços comerciais, permanecendo os comerciantes e suas famílias “agarrados”, como sempre, às suas lojas, confundindo-se estas com as suas residências. O mesmo pode ser dito para os edifícios públicos, ainda que tal deva ser articulado com outros aspectos que acentuam a ruptura no quadro da aparente continuidade. Apesar de manterem as mesmas funções, o contexto político é radicalmente diferente e os protagonistas são também outros. À frente das instituições estatais que funcionam nos edifícios referidos estão hoje os representantes do Estado moçambicano, e já não os agentes do poder colonial português, facto que implica a produção de olhares bem diferentes sobre estes edifícios: em lugar de símbolos da ocupação colonial, constituem símbolos do Estado saído da luta armada contra a presença portuguesa. Tal convoca a nossa atenção para o papel do poder político-estatal na estruturação dos espaços urbanos e nas mudanças sociais e simbólicas. Se este foi decisivo para tornar possível, pós-independência, novos olhares vinculados a narrativas e símbolos distintos do passado colonial, o poder político-estatal jogou também uma acção fundamental, como vimos, na formação de uma pequena burguesia negra em Manjacaze. Aqui há que considerar também, com a prudência que a perspectiva teórica assumida exige, a acção dos actores sociais. Procurando a todo o tempo tirar partido da margem de manobra proporcionada pelo campo político-institucional e suas orientações, mormente em termos económicos, é manifesto que alguns africanos negros souberam utilizar em seu proveito as oportunidades abertas pelas transformações verificadas no país. Por sua vez, os comerciantes de origem indiana souberam perdurar na actividade comercial, superando com razoável perícia os escolhos colocados pelo trajecto histórico do país, em especial durante o período revolucionário.

Em suma, este espaço urbano mostra que a mudança social, mormente a que se relaciona directamente com a vida comercial, objecto central do texto, é feita de rupturas e de continuidades. Lugar híbrido, tingido por lutas encarniçadas e pelo cruzamento de povos e culturas muito diferentes, a acção do Estado assume um papel decisivo na configuração das estruturas, incluindo as que se relacionam com a organização dos espaços urbanos. Ela faz-se num quadro político-social complexo no qual se opõem diferentes grupos sociais e étnicos, em que sobressai a relativa, mas apesar de tudo importante, margem de manobra dos actores sociais e institucionais para agirem sobre as estruturas, transformando-as de acordo com os seus interesses e projectos. Ou seja, Manjacaze revela que o modo como o espaço é apropriado, utilizado e transformado depende das dinâmicas sociais, económicas e políticas, como defendem os teóricos marxistas, assumindo o factor político, conforme sustentam os teóricos weberianos, um papel assinalável, ainda que em grau variável, cuja intensidade e influência dependem do contexto histórico.

 

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Notas

[1] Em termos conceptuais, e como justamente argumenta Aboim (2008, p. 275), “o hibridismo constitui afinal uma ferramenta conceptual útil que nos leva […] a repensar os processos de modernização no mundo contemporâneo”, incluindo os que atingem a África subsariana. Falar de modernização no mundo contemporâneo implica discutir, ainda que de forma muito breve, a globalização e suas tendências. Conceito multifacetado, envolvendo dimensões económicas, sociais, políticas, religiosas, culturais e jurídicas, entre outras, a globalização produziu uma compressão geográfica radical e a intensificação da consciência do mundo como um todo (Robertson inSteger, 2006, p. 19). Porém, ela não levou à homogeneização nem à uniformização imaginada por Marx, antes parece combinar, como sustenta Santos (2001, pp. 32 e segs.), universalismo — dissolução de fronteiras nacionais, cosmopolitismo – com particularismo – diversidade local, pertença étnica, comunitarismo. Se é certo que o centro exerce uma influência colonizadora sobre as periferias, estas não deixam de pôr em prática outros modos de lidar com a sua própria cultura, mormente através do uso criativo de recursos tecnológicos e simbólicos (Hannerz, 1987 e 1992). Ou seja, da globalização emerge uma tensão essencial e estruturante entre homogeneização e diferenciação marcada por tendências e dinâmicas contraditórias que, em caso algum, podem ser relacionadas com o encontro simpático de diferentes culturas. E isto porque nesta tensão parece ser dominante, como defende Jameson (2001), a tendência para a transformação de uma cultura e de um modo de vida particular na cultura e modo de vida hegemónico que tem no consumismo a sua força suprema.

[2] Settingspodem ser definidos como “cenários” que condicionam e de certa forma organizam a produção de relações sociais através do espaço e do tempo.

[3] Como o leitor notará, existem diferentes grafias para o nome do último imperador de Gaza. Sempre que a referência não apareça dentro de um excerto citado, optar-se-á pela expressão Ngungunhane, em vez de Gungunhana, termo este traduzido para o português pelo poder colonial.

[4] Os muchopes constituíam uma das etnias que viviam no território no período pré-colonial. Mantiveram sempre uma oposição tenaz aos nguni, nomeadamente durante a dominação exercida por Ngungunhane.

[5] V. anexo n.º 1 — lista de correspondência dos edifícios.

[6]As árvores têm uma presença constante na mitologia da resistência ao colonialismo. Tal como acontece em Manjacaze, em Chilembene, aldeia natal de Samora Machel, também existe uma velha árvore onde Maguiguane — chefe guerreiro do império de Gaza, capturado e morto pelo exército colonial português a 10 de Agosto de 1897 — dava as suas ordens (Christie, 1986, pp. 27-28).

[7] Nascidos ainda durante a fase final do período colonial, é com a independência que se dá a sua organização administrativa, e daí a utilização de nomes com fortes ligações à luta armada.

[8] É o caso da empresa que comercializa os refrigerantes da Coca-Cola.

[9] A expansão da pequena produção mercantil e das actividades informais atinge as mais diversas zonas do globo, fazendo-se sentir com especial intensidade em África e na América Latina. Como observou Colorado-Mansfeld (2002, pp. 124-125), este tipo de actividades constitui uma janela de oportunidade para todos aqueles que foram colocados na margem pelos novos cenários induzidos pela penetração das políticas neoliberais. Trata-se de um sector que não é exterior ao modo de produção dominante nem à economia-mundo capitalista, antes os integra, embora de uma forma subordinada e dependente (Santos e Rodríguez, 2003, p. 44). Como notaram há mais de duas décadas Gerry e Birkbeck (1981 e 1985), é formado por indivíduos que desenvolvem actividade por conta própria, como vendedores ambulantes dos mais variados bens por conta de uma empresa ou indivíduo, e por lumpen-capitalistas, proprietários de pequenas oficinas, estabelecimentos comerciais e de serviços que põem a funcionar a partir de um pequeno capital.

[10] A barraca é um pequeno estabelecimento comercial de aldeia ou vila, construído com materiais precários, nomeadamente caniço. Os proprietários mais afortunados podem recorrer ao cimento e à chapa. Nelas vende-se todo o tipo de mercadorias, podendo algumas servir refeições e bebidas.

[11] Aqui há que distinguir a exploração da propriedade. Como foi possível apurar pelo levantamento efectuado, existem negócios cuja propriedade não pertence às mulheres que os exploram, mas antes a homens, por vezes sem qualquer relação de parentesco. Mais sujeitas do que os homens a formas extremas de privação material, sobretudo quando associadas ao divórcio, viuvez, abandono do marido e filhos numerosos para sustentar, o comércio é a possibilidade derradeira de muitas mulheres para continuarem a lutar pela sobrevivência.

[12] Paredes-meias com o mercado central está o estádio de futebol, com piso de terra e uma bancada em cimento. Mais à frente, cerca de 400 metros, temos a mesquita. Um pouco depois, já fora do centro urbano, situam-se as instalações abandonadas da Wenela (Witwatersrand Native Labour Association), a mais importante organização de recrutamento de mão-de-obra moçambicana para as minas sul-africanas, e a fábrica de processamento de castanha de caju.

[13] Desafiando a história algo esquiva desta actividade, T. C. e Silva (2002, pp. 82-83) coloca as origens dos mercados informais em 1987, com o pequeno negócio de esquina feito normalmente por mulheres, nas ruas das cidades e vilas, ou nas estradas mais frequentadas. Embora se possa encontrar na guerra civil uma causa remota para o aparecimento dos “dumbanengues”, ao provocar o êxodo de população das zonas rurais para as grandes cidades, em particular para Maputo, e a desorganização e perturbação da economia, este fenómeno acentua-se precisamente com a paz. É nas opções económicas tomadas, quer dizer, na adesão às políticas de ajustamento estrutural que em Moçambique tomaram o nome de programas de reabilitação económica, cujo impacto concreto se mede em destruição do tecido produtivo e desemprego em massa, que reside o quadro explicativo para a expansão e consolidação dos dumbanengues. Expansão e consolidação, e não origem, importa sublinhar, pois o sector informal tem as suas raízes na pequena produção mercantil, que, como justamente salientam Gerry e Birkbeck (1985), constitui uma forma económica concreta que pode existir em diferentes modos de produção, nomeadamente capitalista e socialista. Como parece atinente considerar, a sua importância varia conforme a evolução e as reconfigurações do modo principal de produção ao qual está subordinado, neste caso o capitalismo, que na sua fase actual favorece a expansão do sector informal.

[14]A concorrência provocada pelos transportadores alternativos, conhecidos por “chapas”, levou esta empresa à falência em 2006.

[15] Esta obra contém as memórias de infância escritas por Mondlane a pedido de Clerc, da Missão Suíça, cuja primeira edição foi publicada em 1947 na Suíça, em língua francesa.  

 

Anexo

 

Lista de correspondência dos principais edifícios do centro administrativo

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