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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.192 Lisboa set. 2009

 

Max Weber, Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música, São Paulo, Edusp — Editora da Universidade de São Paulo, 1995, 168 páginas.

 

Entre os fundadores da sociologia, foi Max Weber (1864-1920) quem estudou e escreveu de modo mais sistemático e aprofundado sobre a arte, como mostra o seu trabalho dedicado à música moderna ocidental, Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música. Neste texto menos difundido de Weber, o estudo da esfera artística e da música, em particular, constitui outra via de conjugar o tema de fundo das obras weberianas: o processo de racionalização, tendo por referência a especificidade das suas diversas manifestações no mundo ocidental moderno. Escrita por volta de 1911, a obra manteve-se, durante décadas, secundarizada no lugar de apêndice do livro Economia e Sociedade, de 1922. Traduzida nos EUA no final dos anos 50 do século xx, é actualmente considerada a peça fundadora da sociologia da música.

Na sua análise da esfera artística e da música, em especial, enquanto manifestação da racionalização cultural, Weber concentrou-se na arte, dando ênfase aos meios técnicos e ao modo como a racionalização os atingiu e influenciou desenvolvimentos aos níveis da criação e da recepção, passando pela difusão. Com esta abordagem abre-se e desenvolve-se, de forma rasgada, a visão de que a arte — tendo, como todas as diversas esferas têm, linhas de acção próprias — se relaciona, em ligações de menor ou maior tensão, com outras dimensões da vida social.

Através da aproximação a outros textos do autor, torna-se mais claro o lugar do seu estudo sobre a música moderna, bem como se obtém uma visão mais ampla do seu pensamento sobre a racionalização e a arte (no texto de Weber, a expressão "música moderna" designa a música do Ocidente desde, aproximadamente, 1700). Como aponta Leopoldo Waizbort na excelente introdução à obra — trata-se da única tradução disponível em língua portuguesa —, afigura-se pertinente convocar especialmente dois textos de Weber: "Consideração intermediária" (Zwischenbetrachtung), de 1915, e "Introdução" (Vormerberkung), uma das últimas peças produzidas pelo autor. Se a "Consideração intermediária" tem a virtualidade de destacar a autonomização da arte, bem como a de outras dimensões, em consequência do processo de racionalização, o interesse da "Introdução" reside no facto de aí se sistematizar de modo particularmente desenvolvido a problemática que mais atravessa os estudos weberianos, ou seja, a compreensão dos factores que explicam por que motivos apenas no Ocidente determinadas formas — da ciência à economia, passando pelo direito e pela arte — são praticadas de modo racional e sistemático.

Na primeira parte de Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música é focada a racionalização dos materiais sonoros. Uma linha condutora liga o que representa para Weber a circunstância inicial decisiva para o processo de racionalização — a divisão aritmética da oitava e a consequente criação dos intervalos — até à formulação do que entende ser o facto fundamental da racionalização do material musical sonoro: o temperamento. Neste percurso é largamente usado o método comparativista característico da sociologia weberiana, apreciando-se em paralelo sistemas sonoros do Ocidente e do Oriente — com a finalidade de salientar diferenças e fundamentar a música racionalizada harmonicamente (a ocidental), em contraposição com a música racionalizada de forma não harmónica, que privilegia a melodia (a oriental).

A exposição ao longo da qual Weber introduz outras marcas e problemas característicos da música moderna ocidental evolui de modo muito imbricado. Repare-se: da divisão da oitava decorre a formação de intervalos e de escalas; o diatonismo e o cromatismo encontram-se no centro da formação das escalas; das escalas dependem, por sua vez, os procedimentos vocais, que influenciaram as formas composicionais; a própria notação musical foi influenciada pelos sistemas de composição.

No que se refere especificamente à notação, Weber assinala a sua extrema importância na racionalização da música quando defende que apenas a "elevação da música polivocal à condição de uma arte escrita produziu então verdadeiros `compositores' e assegurou às condições polifónicas do Ocidente, em oposição às de outros povos, duração, repercussão e desenvolvimento continuado" (Weber, p. 119). A invenção da moderna notação musical — em que assenta a especificidade do desenvolvimento da música ocidental — e a fixação da obra na partitura possibilitaram também, no entender de outros estudiosos, uma profunda alteração qualitativa nos procedimentos da música ocidental.

Ao permitir a transmissão e reprodução das obras de arte musical moderna, a notação reforçou as propriedades dos criadores e a sua especialização. Se, por um lado, apenas a elevação da música polivocal a arte escrita produziu "verdadeiros compositores" — e garantiu às criações ocidentais repercussão e desenvolvimento continuado —, por outro lado, a substituição das "velhas fórmulas sonoras típicas" por sistemas escritos atribuiu maior destaque à figura do artista profissional educado para a interpretação virtuosa.

Um dos principais traços distintivos da racionalização do material sonoro no Ocidente reside, segundo Weber, no seu carácter intramusical, a partir do interior do sistema sonoro, o que significa `temperamento' — e aqui desemboca a linha condutora desfiada a partir da questão da divisão da oitava, com que Weber inicia a discussão da racionalização da música ocidental. Na perspectiva weberiana, o temperamento orientado harmonicamente representa a grande realização do racionalismo ocidental na esfera musical, em claro contraste com a racionalização extramusical do sistema sonoro oriental.

Na segunda parte de Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música, Weber centra a análise no desenvolvimento de alguns dos modernos instrumentos musicais: violino, órgão, piano. Trata-se agora de salientar o processo de racionalização na construção dos instrumentos e averiguar os seus efeitos na música em vários planos (criação, difusão, recepção).

Na abordagem do órgão — o instrumento que mais se aproxima da máquina, pela maior intensidade da ligação entre quem o utiliza e as possibilidades objectivas que a técnica proporciona em termos de configuração do som —, Weber destaca o papel central do monacato no desenvolvimento da moderna música ocidental. Com efeito, sendo o órgão um instrumento privativo das catedrais e dos mosteiros, apenas nestes contextos encontrou condições para evoluir e contribuir para o desenvolvimento dos materiais sonoros, isto por duas vias distintas. Uma de natureza mais material — pois os construtores de órgãos e organistas eram inicialmente monges ou técnicos de conventos, ensinados pelos primeiros. Outra de carácter mais imaterial — eram aqueles agentes que coordenavam procedimentos como a afinação do órgão e da afinação em geral, "pois no órgão pode-se de fato observar de modo especialmente fácil os batimentos na afinação impura" (p. 143). O autor considera ainda que o período de maior aperfeiçoamento técnico do órgão foi simultâneo de uma época de grandes inovações na polivocalidade, participando o instrumento significativamente na racionalização do canto polivocal.

Outra é a história do piano, cuja "actual posição imperturbável", que Weber lhe atribui, assenta nos seguintes aspectos: utilização universal para a apropriação doméstica da maior parte do acervo da literatura musical; abundância da literatura que lhe é dedicada; primazia enquanto instrumento de acompanhamento e de formação escolar; adequação a peça mobiliária da cultura burguesa.

Tendo raízes em instrumentos distintos — o clavicórdio e o clavecin, ou cembalo —, o piano e a sua música emanciparam-se da estilística do órgão devido, em primeiro lugar, à influência da dança na música instrumental francesa (p. 146). O "virtuosismo pianístico incipiente", no século xvii e princípios do século xviii, aliado ao nascimento de uma grande indústria do cembalo, representou as "últimas grandes transformações técnicas do instrumento e da sua padronização" (p. 147).

A relação entre culturas e diferentes apropriações do piano é um tópico que Weber também aborda. Assim, embora o desenvolvimento do moderno pianoforte (Hammerklavier) tenha tido lugar nos territórios italiano e alemão, o aproveitamento desta descoberta conheceu diversa intensidade num e noutro país. Com efeito, a cultura italiana permanecia distante do "carácter camerístico" da cultura musical do Norte, devendo-se esta limitação, no olhar de Weber, à ausência em terras italianas do culto do conforto doméstico burguês, por motivos climáticos e históricos. Foi, pois, a Saxónia que se tornou o centro da produção e do desenvolvimento técnico posterior do piano.

O triunfo do Hammerklavier radicou, segundo Weber, na crescente necessidade de editores musicais e empresários de concertos e no acentuado consumo musical, de acordo com uma lógica de mercado. A produção do instrumento proliferou primeiro em Inglaterra (com a marca Broadwood na segunda metade do século xviii) e estendeu-se depois à América, sendo que no início do século xix o piano era um objecto de comércio regular. Para o aperfeiçoamento técnico do instrumento contribuíram vários factores, como a muito forte concorrência entre fabricantes e a criação de exposições e salas de concerto específicas na proximidade das fábricas de instrumentos.

No estudo de Weber sobre a música moderna ocidental assume especial importância a ideia de que a racionalização na arte incide nos meios artísticos: materiais sonoros, instrumentos, formas de composição. O modo como se desenvolvem os meios musicais tem múltiplos efeitos: a invenção da notação, por exemplo, foi a condição da objectivação da obra e da atribuição de um maior relevo aos criadores — é pela partitura e por um suporte impresso que é possível preservar e transmitir a obra, bem como pode ser melhor aferido um desempenho; as mutações nos meios técnicos concorrem para a afirmação e especialização de perfis artísticos; os factores culturais influem no favorecimento (ou não) da cultura musical; as lógicas de mercado e os factores económicos condicionam a configuração e circulação dos instrumentos. Desenha-se, assim, uma história social da música e da arte que relaciona meios técnicos, agentes, mercado. E é pelo acento na importância dos meios técnicos para o desenvolvimento da arte que a visão weberiana vem demonstrar a relação muito directa que existe entre o sentido da expressão artística e as condições da sua produção.

 

Teresa Duarte Martinho

Observatório das Actividades Culturais (OAC)

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