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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.192 Lisboa set. 2009

 

Henrika Kuklick(org.), A New History of Antropology, Malden, Oxford, Carlton, Blackwell Publishing, 2008, 402 páginas.

 

A história da antropologia é um embaraço. Tais poderiam ser as palavras de abertura deste livro. A New History of Anthropology revela uma dificuldade inaudita em gerir e em transmitir o legado da antropologia dos séculos xx e xix. Sob o pretexto, academicamente correcto, de não favorecer as tradições norte-americana, britânica, francesa e germânica, em detrimento da produção antropológica de outros países, é desferida a maior machadada de sempre na árvore daquelas tradições, sem dúvida as mais prolíficas, relevantes e influentes na cena internacional. A desvalorização deste facto resulta no cantonamento da antropologia dos Estados Unidos da América, da Inglaterra, da França e da Alemanha/Áustria a quatro fugazes capítulos da primeira parte, intitulada, apesar de tudo, "Major traditions".

Numa altura em que seria de esperar um alargamento do naipe de antropólogos e etnógrafos abordados, com inovadora referência a obras menos conhecidas e ainda pouco estudadas pelos historiadores da antropologia, assiste-se, ao invés, a uma redução drástica da própria linha da frente, ignorando por completo demasiados nomes capitais. Basta dizer que o livro não tem uma única linha sobre Lévi-Strauss. O capítulo sobre a antropologia francesa, confiado a Emmanuelle Sibeud, é por si só elucidativo: não se trata de uma evocação de ideias antropológicas, tão-pouco de métodos ou de contributos etnográficos, mas somente de conflitos de poder entre as instituições savantes. Se Mauss, Durkheim ou Lévy-Bruhl entram nesta história, é apenas pela disputa que mantiveram com os etnográfos "coloniais" do Institut Ethnographique International de Paris. Bem interessante seria que Sibeud desse, ao menos, a conhecer algum trabalho dos muitos administradores coloniais e missionários caídos no esquecimento. Afinal de contas, a "reabilitação" dessa gente, feita embora em detrimento dos homens de ciência, é um contributo assaz positivo do pós-modernismo para a história da antropologia. Veja-se o exemplo do próprio James Clifford, que trouxe para a arena o missionário Maurice Leenhardt. Agora, porém, nem uns nem outros. A única entrada de Marcel Mauss na bibliografia é o seu artigo de 1913, "L'ethnographie en France et à l'étranger". Como se não bastasse, o capítulo pára abruptamente em 1930, deixando de fora oito décadas cruciais da produção francesa.

Esta "burocratização" da história da antropologia deve-se, em última instância, à própria Henrika Kuklick, não apenas enquanto editora, mas por dar o mote no capítulo de sua autoria, "The British tradition". Só na aparência tem o mérito de não ficar encerrado no tempo de Evans-Prichard, pois, se acompanha a antropologia britânica até ao dealbar do século xxi, é apenas para uma reflexão de duas páginas sobre questões como o financiamento governamental dos departamentos de antropologia ou as taxas de empregabilidade dos doutorados. Poderia pensar-se que a segunda parte do livro, intitulando-se "Early obsessions", colmataria um pouco as insuficiências da primeira ao identificar temas que apaixonaram os pioneiros. Só de forma muito parcelar o faz, no entanto, pois há algo de muito errado na selecção feita. Se foi, de facto, prevalecente depois de Tylor, o dossier da religião primitiva confundia-se de tal forma com o da cultura greco-latina que não faz sentido tratá-los em separado numa obra que deixa tanto de fora. De permeio, num gesto extravagante, Kuklick encaixou a percepção das cores, que foi tudo menos um tema dominante da antropologia no tempo em que Rivers se lhe dedicou. Poderiam ser evocadas tantas outras "obsessões" mais importantes, mas é suficiente referir que o livro ignora por completo as questões de parentesco.

A hegemonia americana acaba por marcar a própria estrutura da obra, dando-se espaço às quatro subdivisões tradicionais da antropologia norte--americana com resultados insólitos. Veja-se, a título de exemplo, o capítulo dedicado à arqueologia na China, da autoria de Hilary Smith, especialista em história da ciência e da sociedade chinesas. A própria autora o reconhece: "Com efeito, muitos arqueólogos chineses ficariam perplexos ao encontrar um ensaio sobre a sua disciplina numa história da Antropologia." Esse capítulo chinês é o último de uma parte essencial da obra, intitulada "Neglected pasts", onde justamente surgem antropologias alternativas ao anglo-french core. O sueco Christer Lindberg ressuscita admiravelmente o seu compatriota Erland Nordenskiöld e o finlandês Edward Westermarck. Segue-se um capítulo sobre o apogeu e declínio dos museus etnográficos holandeses e outro sobre os "etnógrafos" socialistas exilados na Sibéria da Rússia imperial do final do século xix. Não teria sido preferível fazer uma nova história da antropologia dedicada de facto, com mais critério e menos arbitrariedade, às tradições ditas "periféricas"? Como justificar que de fora ficassem, por exemplo, a antropologia do Brasil ou a da Índia? Em vez disso, temos direito a uma quarta parte laconicamente intitulada "Biology".

Apesar de ter como título "New directions and perspectives", a quinta e última parte trata de questões bem antigas. Lyn Schumaker faz uma reflexão sobre as alterações socioculturais que ao longo do século passado favoreceram ou desfavoreceram o lugar das mulheres no terreno e na academia. Bem mais útil é o capítulo "Visual anthropology", de Anna Grimshaw, uma incursão na fotografia e no filme etnográfico desde o século xix. O capítulo "Anthropological regionalism", de Rena Lederman, é o momento maior da obra, pela actualidade da questão das áreas culturais e pela sua importância passada, não apenas nas correntes difusionistas, mas como enquadramento tácito, e por vezes tabu, de toda a empresa etnográfica pós-malinowskiana.

Lederman coloca o dedo na ferida ao demonstrar o ascendente de temáticas e conceitos localizados, utilizando mesmo a expressão "Torre de Babel das antropologias regionais". A reflexão é trazida ao presente em torno das problemáticas da globalização, que têm provocado um inesperado revival das questões difusionistas, agora sob o prisma de "conexões contemporâneas entre gentes, objectos e ideias". No capítulo final, "Applied anthropology", o especialista em questões de HIV Merrill Singer surpreende pela sua recapitulação desta vertente da antropologia no universo anglo-saxónico desde os tempos do colonialismo.

A New History of Anthropology foi hiperbolicamente louvada em recensões críticas anglo-saxónicas pelas suas "provocative views" e "surprising synergies", quando, na realidade, é uma obra desequilibrada na estrutura e muito desigual nos contributos individuais. Não aprofunda nem actualiza o conhecimento do passado e deixa de fora temas actuais da maior importância. Poderíamos esperar, por exemplo, um balanço já possível do debate writing culture; ou uma primeira perspectiva historiográfica do dossier neo--animista. Parece depreender-se que Kuklick teve a intenção de chocar pela diferença. Teria relevância se este projecto fosse levado mais longe, criando, de facto, um percurso alternativo e original. Ora o resultado obtido é, sobretudo, perigoso pela influência que pode e certamente irá exercer em novas gerações de antropólogos, que ficarão com uma imagem distorcida e incompletíssima do passado da disciplina. Apesar de ser apresentada na contracapa como "um instrumento ideal tanto para o ensino como para a aprendizagem da História da Antropologia", esta obra é desaconselhada para tais fins. O seu interesse reside, sobretudo, na ideia dos "neglected pasts", mas fica muito aquém da ideia. Salva-se o valor isolado de alguns capítulos.

 

Frederico Delgado Rosa

Departamento de Antropologia da FCSH da UNL

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