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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.192 Lisboa set. 2009

 

O seguro social obrigatório em Portugal (1919-1928): acção e limites de um Estado previdente

José Luís Cardoso*

Maria Manuela Rocha**

 

Este artigo analisa a experiência de criação e desenvolvimento do sistema de seguros sociais obrigatórios ao longo da I República, ensaiando uma explicação para as razões do relativo fracasso desta iniciativa. Toma como referência central a actividade da instituição responsável pela concretização deste novo sistema de previdência social, assim como o ambicioso enquadramento legal produzido, destacando o papel do legado mutualista na construção do sistema de seguros sociais da I República. Procura ainda analisar a oposição política movida pelos ideólogos do regime de previdência social da fase inicial do Estado Novo (década de 30) e discutir em que medida se mantiveram os motivos responsáveis pelo reconhecido fracasso da experiência dos seguros obrigatórios.

Palavras-chave: seguros sociais; mutualismo; corporativismo; Estado-providência.

 

The compulsory social insurance system in Portugal (1919-1928): scope and limits of state intervention

At the end of World War I, new legislation on compulsory social insurance was introduced in Portugal. It is commonly accepted that the outcome of this experience of the Portuguese first Republic was weak. Taking into account the ambitious legal framework and the main activities of the institutions in charge of the implementation of the system of social insurance, this article seeks to explain the very foundations of the system put forward by the mutual associations in the last decade of the nineteenth century and first decades of the twentieth century. It is also the aim of this article to discuss the reasons for the opposition raised by the corporatist movement in the 1930s, in the early beginnings of the Estado Novo regime, in order to explain whether the motives for the failure of the creation of an efficient system of social insurance were maintained.

Keywords: social insurance; mutual associations; corporatism; welfare state.

 

 

Introdução

O estudo da instalação e funcionamento do sistema de seguros sociais obrigatórios em Portugal durante a I República permanece em larga medida por fazer. No entanto, apesar de escassas, as apreciações de que dispomos sobre esta experiência destacam a sua inoperância e o seu fracasso. Para os ideólogos do Estado Novo, a actividade desenvolvida entre 1919 e 1928 pelo Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e Previdência Geral (ISSOPG) foi reduzida a mero sinal da ineficiência das instituições sociais e políticas do Estado republicano, não lhe sendo reconhecida qualquer contribuição válida para a construção de um moderno sistema de segurança social em Portugal. Tal balanço negativo não é apanágio exclusivo daqueles que mais proximamente conviveram com o legado do sistema de seguros obrigatórios da I República. Com efeito, a escassa tradição historiográfica relativa a este tema tem também avaliado de forma negativa os resultados desta experiência1.

As resistências à aplicação da legislação aprovada em Maio de 1919 surgiram desde logo por parte do movimento mutualista, das organizações patronais e do corpo médico, obstáculos estes que foram agravados pelo contexto inflacionista do pós-guerra, que limitou as possibilidades financeiras do Estado e rapidamente desactualizou os escalões salariais fixados para a delimitação dos beneficiários (Pereira, 1999, pp. 56-59). Para além destas dificuldades ditadas pela situação conjuntural então vivida, o fraco envolvimento dos actores sociais que mais directamente poderiam beneficiar desta legislação terá também contribuído para os modestos resultados alcançados (Guibentif 1997, p. 221). Este argumento explicativo destaca as circunstâncias e motivações de natureza política, quer de ordem interna, quer de ordem externa, como factores decisivos para a introdução da legislação de seguros sociais obrigatórios em Portugal. No plano interno, cumpre sublinhar a determinação decisiva e a vontade política do responsável pela pasta do Trabalho, o ministro socialista Augusto Dias da Silva, que via esta matéria como um instrumento essencial para levar por diante um programa mais ambicioso de reformas e políticas sociais. No plano externo, cabe reconhecer a forte influência que as experiências europeias em matéria de política social exerceram nos pensadores e legisladores portugueses, assim como a pressão indirecta que se fez sentir por se transformar em certeza a presunção de que a admissão de Portugal na Sociedade das Nações seria favorecida pela adopção imediata dos seguros sociais obrigatórios. Ou seja, o papel da elite política e académica que esteve directamente implicada neste processo foi determinante para a introdução da legislação, revelando-se um factor bastante mais decisivo do que o impulso das organizações profissionais e laborais ou do que a iniciativa das associações mutualistas (Pereira, ibid.).

Este enunciado de motivos ou razões que ajudam a compreender a experiência da I República em matéria de política social abre dois temas centrais de análise que importa prosseguir. Em primeiro lugar, a análise da relação entre o sistema de seguros sociais obrigatórios e o mutualismo livre preexistente. Terá sido a resistência das associações de socorros mútuos uma reacção de defesa perante uma suposta ofensa ou ameaça à sua autonomia? Ou terá sido justamente a experiência anterior das mutualidades uma condição preparatória para o arranque dos seguros obrigatórios em 1919? Esta última interrogação parece ser particularmente relevante, uma vez que era do seio do próprio movimento mutualista que, antes da publicação da lei, provinham os apelos à intervenção estatal em matéria de apoio social, ao mesmo tempo que se reconheciam as insuficiências do associativismo livre perante as necessidades da população.

O segundo tema a merecer análise particular refere-se à relação entre a experiência fracassada de implantação de um sistema tecnicamente complexo de seguros obrigatórios e a montagem de um novo regime de previdência social, de enquadramento corporativo. A imagem negativa construída pelo Estado Novo terá efectiva correspondência num modelo que subitamente se desfez e do qual foi feito tábua rasa? Ou terá havido algum exagero na denúncia da ineficiência de um sistema de seguros que, afinal, o próprio regime corporativo acabou por incorporar com os seus defeitos e virtudes? Também aqui estas interrogações balizam o quadro de problemas que este texto procurará esclarecer.

Neste sentido, é fundamental ter em devida conta a documentação produzida e as acções empreendidas pelo ISSOPG, organismo estatal especificamente criado para promover o desenvolvimento dos seguros sociais obrigatórios. Este organismo constitui um pólo de observação essencial, pelo que as informações fornecidas pelas actas das reuniões do seu conselho de administração, até agora nunca exploradas de forma sistemática, se afiguram centrais para o aprofundamento do tema, oferecendo material de estudo para a compreensão do processo de construção do Estado-providência em Portugal e para a comparação com congéneres experiências registadas noutros países europeus2. O estudo que aqui fazemos sobre esta documentação inédita representa, por conseguinte, um valor acrescentado de investigação que permitirá confirmar ou infirmar a apreciação habitualmente feita sobre o alcance dos seguros obrigatórios ao longo da I República.

Após esta introdução, que enuncia os objectivos e a motivação geral do artigo, prosseguimos na secção seguinte com a análise dos antecedentes dos seguros obrigatórios, os quais remontam à tradição das associações de socorros mútuos e ao desenvolvimento que conheceram na segunda metade do século xix. Na terceira secção analisa-se o conteúdo e significado do pacote legislativo de 1919, um passo intermédio indispensável à compreensão das acções empreendidas pelo ISSOPG e pelo seu conselho de administração, de cujas actas se faz relatório circunstanciado na secção dedicada à actuação do ISSOPG. A secção sobre a visão construída pelo corporativismo discute o modo como o Estado Novo penalizou os resultados da experiência dos seguros obrigatórios, sem, todavia, deixar de prosseguir alguns dos seus atributos. Finalmente, na última secção apresenta-se uma breve conclusão sobre a pesquisa efectuada e um balanço final sobre o significado histórico dos seguros sociais da I República no quadro mais amplo da construção dos sistemas de previdência e segurança social em Portugal.

 

Antecedentes do seguro obrigatório

A organização de sistemas embrionários de previdência social ocorre em Portugal a partir da década de 30 do século xix, sob a responsabilidade directa das associações de socorros mútuos então emergentes. A mais antiga tradição assistencialista e de protecção aos desamparados da sociedade — que no nosso país foi matéria que se manteve sobretudo sob a alçada das misericórdias e instituições filantrópicas — prosseguia agora em novos moldes, procurando fazer face aos problemas sociais suscitados pelo desenvolvimento do capitalismo industrial e pelas inevitáveis consequências negativas no que se refere às deficientes condições de vida de largas camadas da população trabalhadora.

O testemunho prestado por Costa Goodolphim, um dos autores que mais pugnaram pelo desenvolvimento do associativismo mutualista em Portugal na segunda metade do século xix (Goodolphim, 1889), permite reconstituir os atributos e realizações de diversas instituições de natureza associativa com relevância no domínio da previdência social, tais como as cooperativas de consumo, de produção e de crédito, as caixas económicas e os organismos destinados a cobrir pensões de invalidez. Na sua obra confere um destaque natural às instituições das quais mais havia a esperar neste domínio, ou seja, as associações de socorros mútuos.

Apesar de descrever de forma positiva as iniciativas de diversas associações de socorros mútuos existentes em 1889 (num total de 392 associações, das quais 77% nos distritos de Lisboa e do Porto, abrangendo um total de 138 870 associados), apesar de ser um incondicional adepto das formas de organização e associação espontâneas e não dirigidas, Costa Goodolphim admite que "a associação é uma grande força social, mas é necessário que ela seja convenientemente apropriada […] É tempo de conjurar contra este estado de anarquia, e já que a iniciativa particular se torna impotente, haja uma direcção superior que estude conscienciosamente estes assuntos" (Goodolphim, ibid., p. 128).

A sua análise vai, pois, no sentido de abdicar de alguns princípios organizativos assentes na ideia básica de liberdade de associação, uma vez que a dimensão das tarefas de previdência exigia outro tipo de recursos técnicos e administrativos e apelava a outro tipo de responsabilidade que ultrapassava o enquadramento político dos organismos associativos regionais ou de classe. Por isso, trinta anos antes da criação do sistema de seguros obrigatórios, acompanhando a corrente internacional que igualmente reflectia sobre as insuficiências de um sistema assente no associativismo espontâneo, afirmava:

Seria um erro querer, com as instituições de previdência, remodelar as bases da sociedade. Mesmo com referência às associações de socorro mútuo estamos convencidos que, num futuro mais ou menos próximo, elas deverão sofrer notável transformação, porque, como actualmente existem, encerram em si, é certo, um princípio de fraternidade e de abnegação, mas como instituições sociais representam um antagonismo económico [Goodolphim, ibid., pp. 132-133].

Este tipo de posição viria a ser assumido por outros adeptos incondicionais do movimento associativo e de mutualidade livre que viram com bons olhos a passagem a um sistema de seguros obrigatórios. Entre eles conta-se um dos principais mentores e executores da legislação de Maio de 1919, José Francisco Grilo.

No livro que dedicou à matéria específica do mutualismo rural e do crédito agrícola (Grilo, 1912) manifesta fortes reticências em relação ao interesse ou à possibilidade de o Estado poder assumir responsabilidade activa na atribuição de pensões de invalidez ou velhice. Todavia, considera que a difícil situação das classes trabalhadoras, sobretudo no sector agrícola, exigia um empenho activo do Estado e dos poderes públicos no sentido de ser dada forma legal obrigatória à mutualidade rural. Caberia aos proprietários, rendeiros e, em contribuição mais modesta, aos próprios trabalhadores rurais assegurar o financiamento das caixas de mutualidade rural. Ao Estado apenas se pedia um papel cívico activo na promoção e divulgação da obrigatoriedade de existência de tais instituições em cada freguesia do país.

As propostas de José Francisco Grilo vão ao encontro de teses semelhantes apresentadas no Congresso Nacional da Mutualidade em 19113. São quase sempre enquadradas por preocupações em garantir instrumentos eficazes de paz social e de conciliação de interesses entre o trabalho e o capital. No caso destas reflexões aplicadas ao sector agrícola surgem igualmente expressas as preocupações em se evitar o êxodo rural e o acréscimo de emigração para o Brasil, assim como a intenção de criar um sistema inovador de crédito agrícola, constituído a partir dos fundos das mutualidades, que possibilitasse um significativo incremento da produção na agricultura portuguesa.

Apesar de se declarar sempre fiel ao princípio da "mutualidade invencível", um conceito que toma de empréstimo a Proudhon, Grilo inflecte ligeiramente a sua posição ao expressar, no final da sua obra, a admiração e aplauso que lhe merecia a recentíssima legislação sobre seguros sociais aprovada em Inglaterra em 1911, de iniciativa e responsabilidade política de Lloyd George. Em declaração que alarga o âmbito das suas propostas para o conjunto dos sectores da economia portuguesa afirma:

Chegou a hora de se estudar e de se encarar resolutamente o problema mutualista português. Temos de lançar os alicerces da mutualidade obrigatória sobretudo para a inabilidade, preparando um horizonte de bem-estar às classes activas do comércio e da indústria nas suas variadas manifestações.

A Inglaterra, com o seu bill sobre seguro obrigatório, decretado este ano, lançou ao mundo trabalhador o grande exemplo a seguir na evolução do problema social [...] Os profissionais de todas as indústrias e de comércio devem estar ligados pela solidariedade mutualista obrigatória, contribuindo o Estado, patrão e profissional numa percentagem mínima, mas assente numa base que possa fortalecer os alicerces da mutualidade [Grilo, 1912, pp. 388-389, sublinhado do autor].

A posição de José Francisco Grilo deixa antever outro tipo de receptividade face ao papel activo que poderia vir a ser desempenhado pelo Estado perante a constatação de que a dimensão dos problemas a resolver exigia a presença de instrumentos de promoção e coordenação mais eficazes. Três anos antes de apresentar publicamente este ponto de vista, o assunto tinha também sido objecto de uma atenta e minuciosa reflexão na obra que José Lobo d'Ávila Lima apresentou na Universidade de Coimbra como requisito de provas académicas dedicada ao tema dos socorros mútuos e seguros sociais (Lima, 1909). Vale a pena recordar os aspectos essenciais desta obra ainda escrita no período da monarquia e que, sem margem para dúvidas, constitui um momento alto do processo de justificação doutrinal do sistema de seguros sociais obrigatórios que viria a ser adoptado pela I República dez anos mais tarde.

Na primeira parte do livro, José Lobo d'Ávila Lima procede a uma apresentação minuciosa dos três tipos principais de organização mutualista existentes no mundo, nomeadamente o sistema de mutualidade livre prevalecente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, inspirado e fundado na tradição das friendly societies inglesas, o regime de seguros obrigatórios, assente num modelo de forte intervencionismo do Estado, à luz dos preceitos ditados pela legislação de Bismarck na Alemanha nas décadas de 80 e 90 do século xix, e que também colhia adeptos na Áustria, e o regime que intitula de "liberdade subsidiada" e que corresponde à situação intermédia (entre a liberdade e o intervencionismo) vivida em países latinos, como a Itália, a França e a Bélgica. É sobre esta terceira modalidade que recai a sua escolha implícita relativamente à experiência que devia ser seguida em Portugal.

A segunda parte do livro é justamente dedicada a expor a evolução do sistema de socorros mútuos em Portugal e, sobretudo, a discutir no plano da ciência do direito a natureza jurídica das associações de socorros mútuos enquanto pessoas de direito privado com funções no domínio da previdência, dotadas de personalidade moral, que obrigava a considerar a especificidade do seu estatuto e modo de funcionamento. Se bem que não seja essa a perspectiva que nos interessa aqui contemplar, não podemos deixar de sublinhar o cuidado da reflexão doutrinal e a abundância da literatura jurídica estrangeira (sobretudo francesa, italiana e alemã), que Lobo d'Ávila Lima cita e utiliza na sua exposição académica.

A terceira parte do livro incide sobre o sistema de seguros sociais e sobre as possibilidades da sua aplicação em Portugal. E é aqui que o autor discute a questão da obrigatoriedade do seguro no quadro mais amplo dos atributos e funções do Estado moderno. O seu propósito é identificar as soluções mais adequadas para se resolver a questão social, ou seja, as situações de dificuldade e carência que exigiam protecção e assistência pública. Após passar em revista crítica as posições doutrinais advogadas pelas correntes de pensamento individualistas e socialistas, Ávila Lima sustenta os méritos e vantagens de uma via intermédia, conciliadora, inscrevendo os seus argumentos nas proposições da corrente de solidarismo social advogada por autores como Frédéric Le Play, Charles Gide e Paul Pic.

Esta moldura doutrinal funcionaria como justificação segura para erguer um regime de seguros obrigatórios:

Nenhuma forma de intervencionismo legal melhor se conforma com a noção e programa solidaristas, que a generalização do seguro obrigatório,que não só permite elevar a condição das massas proletárias, mas amplamente facilita a realização de obras de previdência social, que redundam em obras de extrema utilidade colectiva [Lima, 1909, p. 320, sublinhado do autor].

À luz deste projecto, o Estado surge investido como representante do interesse geral ou bem comum da sociedade e, de forma implícita, também como agente do progresso social e económico. A sua missão de vigilância e tutela em relação ao funcionamento do sistema de seguros obrigatórios — extensivos às situações de doença, invalidez e velhice, acidentes de trabalho e desemprego — não deveria impedir o livre curso da iniciativa privada e a participação directa dos principais beneficiários e responsáveis do sistema. Mas era fundamental contar com a cumplicidade da intervenção limitada do "Estado-previdência" (Lima, ibid., p. 321), cujos organismos dedicados ao desenvolvimento dos seguros obrigatórios estariam dotados dos recursos estatísticos e técnicos sem os quais o rigor e a estabilidade de todo o sistema não se poderiam sustentar.

Ávila Lima não hesita em criticar os vícios presentes na intervenção do Estado, ou na sua ausência:

A entidade colectivista orçamental, que em Portugal se chama o Estado, quando não mantém sobre os mais problemas nacionais uma nirvânica indiferença, aborda-os timidamente e, em vez de facultar os meios para uma solução franca e livre, prefere cifrar todo o seu viciado empenho em embargar as iniciativas individuais nos moldes estranguladores de uma sôfrega tutela [Lima, ibid., p. 488].

Conclui, assim, que a organização dos sistemas de mutualidade e previdência social seria precisamente uma das esferas de intervenção do Estado em que poderia ser demonstrada a razão da sua existência e as vantagens de uma actuação bem ponderada:

É em nome dessa função nobilitante e suprema [função social do Estado] que ao Estado português compete cada vez mais redimir a sua passada inacção, lançando a esta terra, agitada por um fecundo ímpeto de consciente renovação, os fundamentos indispensáveis duma obra de bem-estar e perfeição sociais [...] O sistema de seguros sociais, introduzido gradualmente, atento o seu indiscutível custo, nas colunas do orçamento social português, condensa certamente a maior parcela de felicidade e justas garantias com que se devem contemplar as classes menos favorecidas da nossa terra (Lima, ibid., p. 491).

Esta é a herança que os políticos republicanos vão procurar valorizar e prosseguir a partir de 1919. A ideia de seguro obrigatório que defenderam insere-se numa mesma visão de conjunto sobre os atributos e funções do Estado, sobre as formas de participação cívica e a sua moldura social, e enquadra-se na matriz doutrinal comum do organicismo e solidarismo social de que Ávila Lima foi acérrimo defensor. Não se tratava, portanto, de uma ideia nova, mas sim de um projecto longamente amadurecido que, no final da Primeira Guerra Mundial, conhecia, finalmente, as condições políticas indispensáveis à sua concretização.

 

Âmbito e significado da legislação de 1919

A legislação dos seguros obrigatórios promulgada em Portugal em 1919 acompanha o movimento doutrinal em matéria de política social, o qual se foi desencadeando, um pouco por toda a Europa, nos finais do século xix e primeiras décadas do século xx. Ao Estado passam a caber responsabilidades de intervenção neste domínio, sendo a sua acção desenhada para estimular e completar as formas tradicionais de assistência privada, beneficência e ajuda mútua, e não para as substituir. Por detrás desta nova motivação do Estado encontram-se diferentes factores, de que a crescente perturbação da ordem social desencadeada pelo movimento reivindicativo do operariado e as necessidades de aumento de produtividade das classes trabalhadoras reconhecidas pelo meio patronal são referências correntes na historiografia sobre o tema4. A intervenção social do Estado respondia assim, neste período concreto, à modernização das economias capitalistas, visando a criação de um clima de ordem social baseado na conciliação de interesses entre o trabalho e o capital.

Porém, ao contrário de outras experiências europeias que introduziram sistemas de seguros obrigatórios e pensões de invalidez de forma faseada, a legislação portuguesa de 1919 propôs um esquema global que integrava em simultâneo a totalidade das matérias: doença, acidentes de trabalho, invalidez, velhice e sobrevivência5. O ordenamento jurídico e o enquadramento legal e regulamentar do regime de seguros sociais obrigatórios foram estabelecidos num conjunto de cinco decretos com força de lei, todos datados de 10 de Maio de 1919, cada um deles abrangendo as seguintes matérias específicas: seguro social obrigatório na doença (Decreto n.º 5636); seguro social obrigatório contra desastres no trabalho (Decreto n.º 5637); seguro social obrigatório contra a invalidez, velhice e sobrevivência (Decreto n.º 5638); organização das bolsas sociais de trabalho (Decreto n.º 5639); organização do Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e de Previdência Geral (Decreto n.º 5640), organismo integrado no Ministério do Trabalho e responsável por toda a administração e execução do programa de seguro social obrigatório deste modo instituído6.

Cada um destes decretos é introduzido por um preâmbulo próprio que situa e enquadra a razão da legislação produzida. Existem traços comuns nas motivações e nas explicações políticas contempladas em cada preâmbulo, devendo ser destacados alguns aspectos que conferem um sentido global e coerente a este núcleo legislativo. Saliente-se, em primeiro lugar, o reconhecimento da influência internacional, cujo exemplo é explicitamente referido e utilizado para legitimar a intervenção estatal em Portugal. É destacado o facto de a legislação sobre os seguros sociais obrigatórios estar já em vigor noutros países europeus (nomeadamente na Alemanha, Áustria, Suíça, Dinamarca, Suécia e Noruega), enquanto se ultimavam reformas semelhantes em França e em Espanha. Particular relevo merece a acção desenvolvida em Inglaterra e as medidas impulsionadas pelo primeiro-ministro Lloyd George, cuja figura de "valoroso estadista" é expressamente homenageada na legislação portuguesa (Decreto n.º 5636 e Decreto n.º 5638). Apontam-se ainda as condições favoráveis criadas por um ambiente europeu propício, tendo em atenção o clima de paz social no contexto do final da Primeira Guerra Mundial e o papel da Sociedade das Nações no sentido da defesa dos direitos e condições laborais das classes trabalhadoras. Finalmente, assinale-se a visão integrada de todas as medidas legislativas enquanto fundamentos de um novo estado social que corresponde aos ideais políticos republicanos e é expressão da vontade de que esse novo edifício seja "em breve o maior baluarte da aliança entre o capital e o trabalho, pois é nessa aliança que se encontra a solução de todos os problemas futuros de natureza económica e social" (Decreto n.º 5640, p. 484).

As bases para a execução prática do modelo português assentavam em dois pressupostos: o reconhecimento explícito da importância do papel anteriormente exercido pelas mutualidades livres e pelas associações de socorros mútuos, por um lado, e a dispensa de apoio financeiro directo por parte do Estado na constituição dos fundos das pensões, por outro.

Na verdade, as funções exercidas pelo mutualismo livre são exaltadas, representando estas "um organismo de solidariedade que prestou, através dos tempos, os mais humanitários serviços à causa dos simples e dos humildes, minorando muitas dores e infortúnios" (Decreto n.º 5636, p. 427). O seu importante papel não impedia, contudo, a constatação da insuficiência dos esforços desenvolvidos por estas instituições. Verificava-se a existência de um número elevado da população activa (cerca de 2 milhões de indivíduos) não abrangido por nenhuma forma de previdência ou assistência social e vivendo em situação próxima da pobreza e miséria, pelo que as soluções para esta situação teriam de ser enquadradas numa base institucional estável e com plenas garantias de êxito. Segundo o entendimento do legislador, tal só poderia ser concebido no âmbito dos seguros sociais de carácter obrigatório, cabendo ao Estado a administração dos fundos de pensão. A sua criação contava com o movimento mutualista já existente, ao qual era concedido lugar de destaque na transição para o novo regime obrigatório, uma vez que se esperava que estas associações se transformassem por livre vontade em sociedades de seguro obrigatório. Em contraste com outras experiências europeias, o modelo português isentava o Estado de uma contribuição financeira significativa, sendo os fundos dos seguros constituídos exclusivamente pelas quotizações dos interessados, consagrando a singularidade do caso nacional.

Vejamos agora, em linhas gerais, aspectos específicos do conteúdo de cada um dos decretos promulgados em 10 de Maio de 1919, procurando deste modo esclarecer problemas relacionados com a sua execução que não têm sido devidamente elucidados.

O Decreto n.º5636, relativo ao seguro social obrigatório na doença, estabelece o carácter universal do seu âmbito de aplicação mediante a obrigatoriedade de inscrição de todos os indivíduos dos 15 aos 75 anos de ambos os sexos. Tal obrigatoriedade decorreria da criação de mutualidades privativas de socorro na doença, prevendo-se a existência de pelo menos uma mutualidade em cada concelho; naqueles onde já existiam associações de socorros mútuos, estas podiam, após alteração estatutária, transformar-se em sociedades compostas por todos os indivíduos obrigados por lei à inscrição como sócios; nos concelhos onde estas associações não existiam seriam formadas comissões a partir das quais, após a promulgação dos respectivos estatutos, se instituiriam mutualidades. Assim, algumas das mutualidades livres já existentes transformar-se-iam, por vontade própria ou, na prática, por cedência à persuasão do legislador, em mutualidades obrigatórias. O texto legal que estipula os benefícios define também os tipos de sócios das mutualidades obrigatórias: "sócios efectivos", com rendimento anual inferior a 900 escudos, pagando uma quota mensal variável entre 30 e 50 centavos e que seriam os únicos beneficiários do seguro de doença, e "sócios natos", com rendimento anual superior a 900 escudos e que pagariam uma quota mensal entre 50 centavos e 3 escudos, conforme o seu escalão de rendimento, e que não teriam direito a beneficiar do seguro ou de qualquer subsídio. Tratava-se, portanto, de uma fórmula de financiamento que impunha às classes de maior rendimento a obrigatoriedade de proporcionarem de forma directa apoio social aos mais desfavorecidos. Das quotas pagas ou subsídios recebidos seria efectuado o respectivo registo em cadernetas próprias que constituíam título de inscrição e de participação no sistema de seguros sociais. Uma das medidas porventura mais polémicas e de mais difícil execução era a obrigatoriedade de prestação de serviços pelos médicos municipais. Esta atitude de pressão ditada pelo Estado enquadra-se num pressuposto geral de intervenção baseado na auto-sustentação financeira do fundo necessário ao funcionamento deste seguro constituído a partir das quotizações definidas. Ao Estado caberiam as despesas gerais inerentes à administração e à fiscalização, no âmbito mais alargado das actividades do ISSOPG, assim como a cedência gratuita de instalações para funcionamento dos serviços a prestar pelas mutualidades obrigatórias.

O Decreto n.º 5637, referente ao seguro social obrigatório contra desastres no trabalho, sustenta-se no princípio básico da responsabilidade dos patrões em assumir os riscos inerentes ao exercício de actividade dos trabalhadores sob a sua direcção. Com o objectivo de tornar extensivo a todas as actividades profissionais tal princípio de responsabilidade patronal, procura-se contribuir para o reforço da aliança entre o capital e o trabalho e para o fortalecimento do espírito de justiça e de equidade nos processos de organização do trabalho. O decreto procede a uma definição rigorosa da tipologia de pensões e indemnizações que deveriam ser pagas em caso de acidente, tendo em atenção a sua gravidade, o valor do salário do trabalhador vitimado e a dimensão do agregado familiar. A administração e exploração deste ramo de seguros seriam feitas através de sociedades mútuas de patrões ou através de companhias de seguros nacionais ou estrangeiras, as quais deveriam fazer o depósito antecipado das garantias e das reservas matemáticas das pensões (à taxa de 4,5% sobre o valor do salário) na tesouraria do ISSOPG. Deste modo, o Estado limitava-se a tutelar e fiscalizar a gestão deste seguro obrigatório integralmente suportado pelas entidades patronais.

O Decreto n.º 5638, que regula o seguro social obrigatório contra a invalidez, velhice e sobrevivência, acentua no seu preâmbulo a mensagem política de que se trata de aprovar medidas da maior relevância para minorar situações de miséria social. Concebido como complemento dos seguros de doença e acidentes de trabalho, a sua aplicação englobava todos os indivíduos entre os 15 e os 65 anos com salário anual inferior a 900$, independentemente do seu estatuto profissional ou funcional. O fundo para a manutenção deste seguro seria constituído por quotas pagas pelas entidades patronais, correspondentes a 6% do valor dos salários do pessoal ao seu serviço, e pelas contribuições dos trabalhadores assalariados, correspondentes a 1,5% do seu salário. Também aqui o Estado não possuía qualquer encargo de despesa ou responsabilidade directa na constituição do capital necessário à manutenção deste seguro, competindo-lhe, porém, a respectiva gestão. Para tal efeito, o ISSOPG ficava expressamente autorizado a "celebrar operações de seguros contra a invalidez com um consortium de sociedades de seguros nacionais legalmente constituídas no ramo vida, ficando a seu cargo o pagamento da renda dos pensionistas".

O Decreto n.º 5639 refere-se à organização de bolsas sociais de trabalho, designação que corresponde ao que modernamente se chama "centros de emprego". Eram concebidas como instrumentos destinados a promover o recenseamento e produção de informação sobre "desocupados" com vista à sua contratação futura e, de um modo geral, a fomentar a proximidade e intermediação entre a procura e a oferta de trabalho, isto é, seriam "organismos destinados a desempenhar uma altíssima função para o ressurgimento das forças produtivas da economia nacional". Apesar de o decreto não o referir expressamente, estas bolsas terão sido inspiradas em modelo semelhante criado na Bélgica no início do século (Lima, 1909, p. 101). A estes organismos eram atribuídas funções de três tipos: de componente estatística, através da publicação regular de informações sobre o estado do mercado de trabalho por sector e profissão, promovendo um efectivo conhecimento da oferta e da procura; de investigação, mediante a organização de conferências e promoção de estudos sobre as causas das crises no mercado de trabalho; de natureza formativa, associada à organização de cursos nocturnos para analfabetos e à colaboração noutras iniciativas diversas de formação profissional. Num tom que é bem revelador do enquadramento doutrinal subjacente à sua criação, visando uma aliança mais duradoura entre o capital e o trabalho, afirma-se:

As Bolsas Sociais de Trabalho serão os modernos templos do direito e da educação das populações activas, para as orientar, instruir e guiar perante a fase social, emancipadora, que se está esboçando em toda a Humanidade, sem ódios, sem lutas violentas para a conquista das aspirações generosas que a justiça assegura aos que, num trabalho constante, dão o seu mais poderoso concurso para a criação de todas as fontes de riqueza [Decreto n.º 5639, p. 476].

O mesmo decreto prevê a constituição de 100 bolsas, organizadas regionalmente ao nível concelhio e integradas no ISSOPG (de quem dependiam financeiramente), constituídas por uma comissão de cinco membros remunerados pelo Estado através de verba orçamental inscrita no ISSOPG. Do conjunto das iniciativas legislativas que definem o sistema de seguros sociais obrigatórias, a criação de bolsas sociais de trabalho surge como aquela em que o Estado é chamado a desempenhar uma intervenção e responsabilidade directas.

Ao Estado competia também uma acção de enquadramento geral e de tutela, o que fica expresso no Decreto n.º 5640, relativo ao processo de organização interna do ISSOPG. A justificação sobre a necessidade de se criar um organismo responsável por todo o sistema de seguros sociais obrigatórios é feita nos seguintes termos:

Os seguros sociais obrigatórios na doença, desastres de trabalho, invalidez, velhice e sobrevivência são inadaptáveis sem um organismo especial que execute, dê forma, faça enfim caminhar dentro da órbita traçada todo o complexo maquinismo em que assenta a base inicial do seu movimento. Uma obra desta natureza que se apresentasse isoladamente seria repelida pelo meio e não passaria jamais dos domínios de uma generosa iniciativa [Decreto n.º 5640, p. 486].

Ou seja, ao Estado, através de um organismo criado para o efeito, cabia promover esta iniciativa, estimular e orientar as mutualidades livres para que se tornassem obrigatórias e fomentar a formação de novas mutualidades numa base concelhia. A direcção e coordenação do ISSOPG eram asseguradas por um conselho de administração composto por onze vogais, sob a presidência do ministro do Trabalho7, e a sua orgânica interna correspondia aos serviços associados a cada tipo de seguro (doença, desastres, invalidez e velhice), às bolsas sociais de trabalho, ao acompanhamento das actividades de mutualidades livres e organizações não integradas, ao funcionamento dos tribunais de desastres de trabalho e demais serviços de inspecção e fiscalização relacionados com a assistência e previdência social. Para além das dotações orçamentais em vigor, transferidas dos serviços das Direcções-Gerais de Previdência Social e de Assistência Pública entretanto extintas, o funcionamento do ISSOPG seria assegurado através de receitas próprias provenientes das seguintes quotizações: 2% do valor dos prémios cobrados pelas companhias de seguro nacionais; 3,5% do valor dos prémios cobrados pelas companhias de seguro estrangeiras e 1,5% do valor do capital emitido pelas sociedades bancárias. O decreto apresenta ainda estimativas detalhadas sobre o valor das receitas e despesas anuais (prevendo um saldo positivo anual de 360.000$00) e define a estrutura do quadro de pessoal previsto, que englobaria um total de 310 pessoas, das quais 42 provenientes das estruturas do Ministério do Trabalho já existentes. Previa ainda a contratação de 600 agentes auxiliares para operações de recenseamento e recolha de informação, o que revela, sem dúvida, uma pesada estrutura de custos fixos com o pessoal.

A finalizar esta breve resenha do conteúdo da legislação de 1919, refira-se que a estrutura do ISSOPG viria a ser profundamente alterada com a aprovação do Decreto n.º 11 267, de 25 de Novembro de 1925, o qual extingue o Ministério do Trabalho e integra o ISSOPG no Ministério das Finanças. As funções de investigação e análise do funcionamento do mercado de trabalho, de previsão e prospectiva e difusão e promoção de ideias relativas à organização do trabalho e da vida económica e social passam para a dependência de um novo organismo, designado Instituto Social do Trabalho. O tom geral do preâmbulo apresenta de forma muito negativa a experiência de funcionamento do Ministério do Trabalho, muito especialmente do ISSOPG, do qual apenas é destacado algum sucesso no desenvolvimento do sistema de seguros contra os desastres no trabalho, interrogando-se mesmo o legislador sobre qual terá sido a acção desenvolvida em relação aos outros seguros na criação das bolsas de trabalho e nas acções de recenseamento e divulgação. Por isso se escreve, lapidarmente:

Não se carece de pôr em dúvida a honorabilidade dos funcionários para se justificar o fracasso daquela ideia generosa. Apenas convém advertir que outros resultados havia a esperar de uma instituição evidentemente criada com o fim de melhor se administrar [Decreto n.º 11 267, p. 1620].

Assim, e como veremos na próxima secção, os problemas relacionados com o deficiente funcionamento do ISSOPG eram conhecidos e enfrentados pelos seus mentores e promotores iniciais, numa clara revelação da incapacidade de se gerir uma máquina demasiado pesada para se alcançarem os fins desejados.

 

A actuação do ISSOPG: ambições e bloqueios

Quinze dias após a publicação dos decretos que instituíram os seguros obrigatórios e criaram o ISSOPG realizou-se a primeira reunião do conselho de administração, ao qual pertenciam dois dos mais destacados nomes do movimento mutualista8. A rapidez com que se formou este organismo e a frequência inicial das reuniões dos seus dirigentes9 são sinais do empenho colocado na concretização do sistema de previdência preconizado directamente por alguns dos seus membros. As primeiras preocupações dirigiram-se, para além da inevitável montagem da estrutura administrativa e logística do Instituto, para a divulgação dos seguros obrigatórios. As acções de propaganda eram consideradas essenciais e, nesse sentido, o Instituto actuou rapidamente e de forma intensa. Foram distribuídas milhares de circulares, publicados editais e impressos cartazes enviados para todo o país. A ideia era patentear "de forma acessível [...] e ao mesmo tempo com elevado espírito patriótico o que é o seguro na doença, na invalidez e velhice, os desastres no trabalho e, enfim, toda a obra social do Instituto a fim de levar a todos os pontos do país o conhecimento da melhor obra da República em favor das classes menos abastadas" [acta n.º 2 de 30 de Maio de 1919]10.

Assim, através das actas do conselho de administração que assinalam a evolução das actividades do Instituto, percebe-se o desenrolar de uma fase de arranque que se terá prolongado até ao final de 1920, ao longo da qual o Instituto procurou dar início e sequência às tarefas que a lei lhe impunha. Para facilitar o processo de criação de estatutos por parte das futuras mutualidades obrigatórias, o ISSOPG procedeu à redacção e divulgação de modelos de estatutos que as mutualidades poderiam adaptar. Iniciaram-se ainda os trabalhos para o recenseamento geral da população a ser sujeita aos seguros obrigatórios, instrumento considerado de absoluta necessidade e prévio à implementação dos seguros. Na verdade, note-se que se ignorava a dimensão da população que estaria sujeita aos seguros obrigatórios, pois, dos 2 milhões de trabalhadores que se estimava não estarem abrangidos por qualquer forma de assistência, desconhecia-se a distribuição dos seus rendimentos e era, portanto, impossível apurar quantos integravam os escalões definidos pela lei para beneficiarem do sistema. Visando o desenvolvimento deste trabalho, procedeu-se a uma consulta às entidades que estariam em condições de dispensar funcionários para o recenseamento e elaboraram-se ainda os modelos de cadernetas, selos e respectivas instruções sobre os procedimentos a concretizar aquando da execução dos seguros.

As actas do conselho de administração permitem observar os resultados destas acções. Refira-se, em primeiro lugar, que foram goradas as expectativas dos promotores do sistema preconizado na lei de 1919, os quais acreditavam numa rápida capacidade de mobilização do mutualismo livre no sentido de se transformar no núcleo inicial do movimento de seguros obrigatórios. Que essa adesão era esperada, demonstra-se com o debate ocorrido no conselho de administração logo um mês e meio após a sua primeira reunião. Aí se constata o reduzido número de mutualidades livres que espontaneamente se haviam dirigido ao Instituto para requerer a sua passagem a associações de seguro obrigatório, o que levou este conselho a decidir a prorrogação do prazo que a lei estabelecera para este fim e a optar por proceder a visitas directas às mutualidades com o objectivo de demonstrar as vantagens da sua transformação em associações de seguro obrigatório (acta de 16-7-1919). Merece reparo a convicção do Instituto de que seria possível obter resultados da legislação num tão curto espaço de tempo e a sua preocupação em fazer avançar o processo de forma mais célere. Esta atitude voluntariosa foi surtindo alguns frutos, conforme se constata no relatório de finais de 1920 sobre o seguro na doença. As mutualidades livres foram mostrando sinais do seu interesse no novo sistema à medida que o Instituto procedia ao esclarecimento de dúvidas acerca dos dispositivos legais que enquadravam esta reforma (Boletim de Previdência Social, n.º 10, Janeiro-Dezembro de 1920, p. 118).

Uma questão que parece ter assumido particular relevo prendia-se com o destino dos fundos das mutualidades livres que se viessem a integrar ou a converter em obrigatórias. Dado que a interpretação da legislação suscitava dúvidas, o conselho de administração adiantou a sua opinião, segundo a qual tais fundos nunca deveriam reverter para o Estado, sendo restituídos às mutualidades livres no caso de dissolução das respectivas mutualidades obrigatórias (acta de 5-2-1920).

A acção do Instituto no sentido de dinamizar o seguro de doença foi particularmente visível nesta primeira fase da sua actividade. Em Fevereiro de 1920 foi criada uma estrutura mais leve do que o conselho de administração, composta pelos vogais dos vários tipos de seguros, ficando cada vogal responsável por uma das zonas em que o país se dividiu no sentido de incrementar a constituição de comissões locais que dessem início à implementação do sistema. O resultado deste esforço relativo ao seguro de doença, tema frequentenas actas da administração11, permitia constatar a constituição efectiva no final desse ano de 17 mutualidades obrigatórias, das quais 7 eram antigas mutualidades livres (Pereira, 1999). Estavam ainda em fase de formação 255 outras associações.

No final de 1920, o balanço feito pelo Instituto era positivo quanto ao cumprimento das tarefas que fora chamado a desempenhar12. Para além do seguro de doença, o ISSOPG ocupara-se dos seguros de invalidez, velhice e sobrevivência, estando em fase de impressão 600 mil cadernetas e 60 milhões de selos comprovativos das prestações pagas, estimando-se que em Março de 1921 estivesse concluída esta tarefa prévia à execução efectiva dos seguros.

Nos relatórios produzidos sobre a actividade desenvolvida até ao final de 1920 é ainda salientada de forma positiva a intervenção do Instituto ao nível dos desastres de trabalho. Desde a criação do ISSOPG e até ao termo do referido ano algumas dezenas de entidades patronais, nas quais se incluíam várias empresas de grande dimensão, responsáveis por cerca de 50 000 indivíduos, assumiram a responsabilidade directa dos sinistros. Para além destas empresas, outras haviam contratado o seguro dos seus trabalhadores com mutualidades e companhias de seguros, tendo estas últimas emitido 12 758 apólices, ascendendo o valor dos salários e ordenados seguros a cerca de 50 000 contos. Também os tribunais de desastres de trabalho mostravam desenvolvimento. Antes da criação do Instituto existiam apenas 3 tribunais, mas no final de 1920 estavam já 18 em funcionamento. A concretização dos objectivos visados pela legislação neste domínio é perceptível através do número crescente de participações de acidentes13 e de processos entrados em tribunal. Era em Lisboa e no Porto que estes tribunais registavam maior actividade, sendo evidente o seu incremento após a legislação de 1919. Durante o ano de 1918 o tribunal de Lisboa havia registado a entrada de 2310 processos; em 1920 os processos entrados ascendiam a 5631, número superior ao que se havia registado durante os quatro anos decorridos entre 1914 e o 1.º semestre de 1919 (4042 processos). No Porto, durante estes mesmos quatro anos, haviam entrado 1161 processos; apenas entre os meses de Maio a Dezembro de 1919 registaram-se 5136 entradas.

Outra área de intervenção do ISSOPG era, como sabemos, o desenvolvimento das bolsas de trabalho. Apesar da criação formal destes organismos — até ao final de 1920 estavam formalmente criadas 36 bolsas —, a sua efectiva instalação não se concretizou devido às dificuldades de obtenção de edifícios e mobiliário. Sublinhe-se que as despesas inerentes ao funcionamento das bolsas não constituíam uma prioridade para o ISSOPG, que via nos seguros sociais "a pedra angular da grande obra do Instituto" (acta de 26-7-1919). Quando foi proposta uma afectação de despesas para o pessoal dos serviços das bolsas sociais, o conselho de administração não hesitou em rejeitá-la, argumentando que "a criação das bolsas é uma experiência que se faz, e, se corresponderem ao fim que se visou, então se tratará do seu desenvolvimento» (ibid.).

A acção do Instituto foi relevante numa outra área das suas competências: a elaboração de estatísticas, quer no domínio do custo de vida, das condições económicas do operariado, dos valores dos salários, quer no movimento de cooperativas, mutualidades e seguradoras. A demonstrar a permanente actividade desta secção do Instituto estão as informações publicadas de forma contínua ao longo dos vários números do Boletim da Previdência Social.

Por fim, há que sublinhar o trabalho do Instituto no âmbito da assistência pública e beneficência privada. Durante o ano de 1920 foram criadas quatro novas instituições de assistência (escolas maternais, profissionais e colónias agrícolas), sendo também patente a preocupação da direcção do Instituto face às dificuldades financeiras sentidas pelas instituições de assistência em geral (actas de 28-6-1919, 5-7-1919, 26-1-1920, 8-7-1920 e 15-7-1920). Num período fortemente inflacionista, a manutenção dos serviços destas instituições tornava-se particularmente difícil, pelo que o Instituto diligenciou junto do governo para a concessão de diversos subsídios.

À medida que avançava o ano de 1921, as actas do conselho de administração deixavam perceber que se ia ultrapassando a fase inicial de maior preocupação com a propaganda dos seguros obrigatórios e a montagem do sistema. Depois deste arranque, em que toda a atenção se tinha voltado para a promoção de uma nova atitude em relação aos problemas da economia social, segue-se uma fase intermédia, de cruzeiro, que decorre sensivelmente até meados de 1923. Nas actas das reuniões do conselho de administração o relevo é assumido por questões de natureza técnica (com destaque para o acompanhamento das reservas matemáticas) e processuais (integração institucional, análise de irregularidades, situação financeira de instituições dependentes, estatutos, fiscalização de funcionários, subsídios e cobranças). Os seguros obrigatórios não dominam o discurso, mas permanecem nas preocupações da direcção. Neste domínio reitera-se a necessidade urgente de finalizar o recenseamento geral para a aplicação do seguro na invalidez e velhice e discutem-se novos regulamentos para os seguros em geral (acta de 12-1-1922) e para a lei dos desastres de trabalho (actas de 3-3-1923, 12-5-1923, 17-5-1923 e 24-5-1923).

Em Outubro de 1923 parece iniciar-se um processo de reflexão interna sobre o papel do ISSOPG, associado à necessidade de contenção de despesas com pessoal e consequente remodelação, que se estende a finais de 1925. As actas dão conta, de forma sistemática, da discussão sobre a fusão ou extinção de serviços do Instituto e produz-se um novo regulamento que viria a ser aprovado em Setembro de 1924 (acta de 23-9-1924).

A extinção do Ministério do Trabalho (em finais de 1925) introduz a fase final da vida do ISSOPG. Do interior do governo da República ouvem-se afirmações sobre o fracasso da experiência (decreto de 25 de Novembro de 1925). Dentro do Instituto mantêm-se as rotinas, sobretudo no que se refere ao cálculo de reservas matemáticas de seguros, atribuição de subsídios, desastres de trabalho, regulamentos internos e situações diversas de irregularidades e incumprimentos processuais. Apesar das reestruturações de pessoal já referidas, a necessidade de novas reduções orçamentais neste campo era ainda patente no final da actividade do Instituto, sinal de que a máquina burocrática inicialmente prevista era demasiado pesada, tendo em conta a capacidade financeira disponível. O orçamento para 1928-1929 propunha uma redução de pessoal na ordem dos 40% relativamente a 1919, não entrando em linha de conta com os agentes recenseadores, dos quais nunca foram contratados mais de 60 dos 600 inicialmente previstos (Boletim da Previdência Social, n.º 19, Janeiro-Julho de 1928). Mas, se a estrutura administrativa era impossível de manter na óptica da despesa, a redução de pessoal levantou problemas tais que a direcção passou a discutir a própria insustentabilidade do ISSOPG daí decorrente (actas de 16-2-1928, 31-5-1928, 21-6-1928 e 6-9-1928).

Perante este quadro, que descreve as acções levadas a cabo pelo ISSOPG e a sua evolução ao longo do tempo, importa perceber qual a responsabilidade deste organismo no proclamado falhanço da experiência republicana em matéria de seguros obrigatórios. É certo que os seguros obrigatórios não chegaram a ser concretizados nos termos em que foram idealizados, mas será sempre possível argumentar que este malogro não foi da total responsabilidade do Instituto, uma vez que a este cumpria, acima de tudo, fazer a difusão do sistema e organizar a máquina que o colocaria em actividade. Como podemos verificar pelo que atrás ficou exposto, as comissões locais para o seguro de doença estavam criadas no final de 1920 e o trabalho preliminar ao recenseamento indispensável ao seguro de invalidez e velhice estava igualmente concretizado na mesma data. No âmbito do seguro de doença, foram as comissões que não avançaram para a obtenção de personalidade jurídica através da promulgação dos seus estatutos — processo prévio à implementação do sistema — e foi o não recrutamento de recenseadores que impediu o passo seguinte para a prossecução dos seguros de invalidez e velhice.

Importa, portanto, recolocar a discussão quanto à não concretização dos seguros obrigatórios noutros termos, retirando o ónus da responsabilidade total ao organismo criado para montar e supervisionar o sistema. Nesse sentido, é sobretudo necessário indagar por que razão ocorreu o estrangulamento do processo nos dois aspectos que a análise anterior fez destacar: a não promulgação de estatutos das comissões e a inexistência de recrutamento de recenseadores.

As actas do conselho de administração apontam uma possível resposta para esta questão. Na verdade, logo no início de 1921, ao constatar que as comissões criadas para a institucionalização do seguro de doença não tomavam a iniciativa de elaborar os estatutos cuja aprovação as dotaria de personalidade jurídica indispensável ao exercício da sua acção, a direcção do ISSOPG decidiu estimular o processo, "realizando o que a estas competia" e mandando assim elaborar os processos de organização legal (acta de 17-2-1921). Uma vez mais se verifica a preocupação dos responsáveis do Instituto em fazer avançar o sistema e se percebe que o problema residia a jusante das suas competências. A documentação analisada permite descobrir, por fim, que a razão para a inércia das comissões instaladoras das mutualidades era de natureza objectiva. Em causa estava a desactualização dos escalões dos rendimentos que a lei estipulava para se poder beneficiar do seguro. Na reunião de 12 de Maio, Mariano de Melo Vieira introduz este assunto, chamando a atenção do conselho para a sua enorme importância. Face à proposta de estatutos enviada pela comissão instaladora da mutualidade obrigatória do concelho de Valongo, que incorporava alterações nos valores atribuídos aos rendimentos dos sócios face ao disposto na lei, o conselho de administração era colocado perante um novo problema. Os estatutos não podiam ser aprovados porque não correspondiam ao definido legalmente, mas as associações não tinham qualquer interesse em activar um modelo que mantivesse os escalões previstos na lei de 1919. Por isso, o conselho reconhece que "a mutualidade obrigatória não tem qualquer vantagem para o operário", que, em virtude da inflação verificada, recebia mais do que os 900 escudos de rendimento anual que a lei de 1919 decretava ser o montante máximo para usufruir do seguro de doença (acta de 12-5-1921).

Quanto à ausência de recenseadores, a questão era bem simples: não havia capacidade financeira para a sua contratação. Tema por diversas abordado no conselho de administração, a falta de recenseadores é inequivocamente designada como "o principal entrave à realização do sistema" (acta de 12-1-1922).

Esta questão suscita o tema da capacidade financeira do Instituto, das suas receitas e do papel que o Estado reservava para si próprio em termos do financiamento da sua política social. A concepção do sistema passava por excluir o Estado de responsabilidade financeira directa na atribuição das pensões. Como afirmava Francisco Grilo no final da década de 20, a legislação republicana de 1919 foi "feita tendo em atenção que sendo o Estado pobre não poderia ter encargos" e, por isso, não participaria na constituição dos fundos de pensões, em claro contraste com as demais experiências europeias em que o Estado contribuía, em maior ou menor escala, tal como faziam os patrões e operários (Boletim da Previdência Social, n.º 19, Janeiro-Julho de 1928, p. 9). Como vimos, o próprio funcionamento do ISSOPG não dependia do orçamento de Estado, estando prevista a obtenção de receitas próprias provenientes das taxas a extrair aos bancos e seguradoras. Até que ponto foi veemente a reacção destas instituições e, por conseguinte, limitada a capacidade financeira do Instituto, é assunto que importa explorar. Também aqui a leitura das actas do conselho de administração oferece uma primeira aproximação nesse sentido14.

Os sinais da preocupação quanto ao pagamento por parte dos bancos e companhias de seguro são evidentes em vários momentos (actas de 23-8-1919, 12-7-1919, 4-3-1920, 12-4-1920, 22-7-1920 e 2-12-1920). Na verdade, dois meses após a sua entrada em funções, a direcção do ISSOPG constatava as reacções negativas dos bancos, que requeriam a isenção do pagamento da taxa de 1,5% a que o Instituto tinha legalmente direito nos termos da sua constituição estatutária (acta de 12-7-1919). Francisco Grilo referia-se a esta oposição como uma campanha com fins políticos, visando resistir a medidas de protecção e auxílio às classes proletárias, oposição tanto mais criticável quanto provinha de instituições cujos lucros, obtidos sem risco, resultavam do esforço de milhões de indivíduos (acta de 12-7-1919). Oito meses mais tarde, na reunião do conselho de administração na qual esteve presente o ministro do Trabalho, deu este conta da proposta que havia endereçado ao parlamento "no sentido de promover a nacionalização dos seguros […] visando aumentar o rendimento do Instituto" e indagava acerca da evolução da contribuição dos bancos imposta pela legislação (acta de 4-3-1920). No mês seguinte, Francisco Grilo informava os restantes vogais de que o pagamento dos bancos "seguia o seu curso", apesar de se antever que só em Maio estivesse este processo completamente organizado. Mas previa que alguns bancos se recusassem ao pagamento, pois propôs na mesma data o recurso à coacção legal através do envio das respectivas execuções fiscais a tribunal relativamente aos bancos faltosos (acta de 12-4-1920). Em Maio havia expectativas positivas neste domínio. Consideravam-se ultrapassados os obstáculos financeiros, estando acordada a contribuição das companhias de seguros em cerca de 300 a 400 contos e das instituições bancárias em 100 contos (acta de 13-5-1920).

Quando realizou o seu relatório de actividades no final de 1920, o Instituto não deixou transparecer indícios deste tipo de problemas e a situação financeira era avaliada de forma positiva. Aí se declara que uma parte significativa da receita era constituída pelos recursos privativos do Instituto, os quais em grande parte permitiam custear os encargos próprios e dotar ainda vários serviços de assistência. Tal situação fazia por isso prever "que a manterem-se as fontes de receita poderia vir o Estado a ficar definitivamente aliviado de todo o custeio do Instituto do S. S. O." (Boletim da Previdência Social, n.º 9, Janeiro-Dezembro de 1920). O total da receita era então de 6 710 630$85, registando-se um saldo de 2 355 047$81. O conselho fiscal, mais cauteloso, notava, porém, o peso demasiado avultado das despesas com pessoal relativamente aos encargos totais do Instituto e sugeria a utilidade na remodelação de serviços a fim de promover a contracção dessa despesa (Boletim da Previdência Social, n.ºs 12 e 13, Outubro de 1921 a Junho de 1922). O excesso de despesas com pessoal viria, de facto, a revelar-se um assunto crítico na vida do Instituto. O quadro de pessoal inicial, que previa 310 funcionários e 600 recenseadores, sofreu diversas reduções, a primeira das quais com reflexos logo no ano de 1923 (Decreto n.º 8 416, de 9 de Outubro de 1922), que reduziu as 11 direcções de serviço e 27 secções iniciais a 6 direcções de serviço e 15 secções. Esta diminuição de pessoal não foi suficiente, pois entre Janeiro e Abril de 1924 as actas dão conta da discussão sistemática sobre o projecto de remodelação interna do ISSOPG, designadamente no que se refere à fusão ou extinção de serviços.

A documentação compulsada reflecte, pois, os limites impostos pela necessidade de contracção das despesas. Em 1919 o Estado procurou ser suficientemente previdente para gizar um sistema que não lhe exigisse recursos excessivos. A sua missão, claramente inserida na óptica liberal dominante, passava pelo enquadramento legal e criação de uma estrutura de organização e supervisão do sistema, para a qual estabelecia, prudentemente, um esquema de obtenção de receitas próprias. Não terá sido bem calculada a dimensão das despesas inerentes ao funcionamento desse organismo, para as quais as receitas se manifestaram exíguas. Por isso, em Janeiro de 1922 o ministro do Trabalho declarava no conselho de administração do ISSOPG que este realizaria "uma obra elevada quando pudesse receber todas as suas receitas" e um dos vogais, evocando a experiência de outros países nos quais as instituições de seguros sociais eram dotadas de verbas elevadas, exortava Portugal a dotar-se dos instrumentos financeiros necessários ao desenvolvimento de uma efectiva política social (acta de 12-1-1922).

De acordo com as fontes de informação em análise, a oposição do mutualismo livre ao modelo dos seguros sociais da I República não surge como um obstáculo decisivo para a sua concretização. Nas actas do conselho de administração há sinais de alguma reacção inicial das mutualidades, mas, a crer nos depoimentos expressos na documentação, essa rejeição ter-se-ia esbatido posteriormente. Como se regista numa das actas de Janeiro de 1922, "no princípio ocorreu relutância das mutualidades livres em aceitarem o sistema de mutualidades obrigatórias, mas agora apenas as pouco escrupulosas dele discordam" (acta de 12-1-1922). Não encontramos, assim, indícios de uma rejeição veemente por parte do mutualismo livre, mas sobretudo de desinteresse e apatia. Ainda na fase inicial da actividade do ISSOPG, dedicada à propaganda e divulgação dos seguros sociais, um dos vogais expressava o seu lamento quanto aos resultados desta acção: "é dificílimo fazer compreender aos operários a necessidade de ser previdente" (acta de 22-7-1920).

Em síntese, a leitura das actas do conselho de administração não permite atribuir uma importância decisiva às reacções negativas das mutualidades livres, do sector operário e do corpo médico15, enquanto obstáculos com um peso decisivo na concretização do sistema. O destaque explicativo deve ser sobretudo atribuído à inércia dos mais directos beneficiários, associada também ao esvaziamento de sentido da legislação perante o contexto inflacionista que desactualizou os escalões salariais fixados para delimitar os que podiam usufruir dos seguros. Denota-se ainda uma grande dificuldade em organizar de forma eficiente a vida interna do Instituto, surgindo a imagem de um organismo enredado em problemas de pessoal e com uma deficiente coordenação de serviços. O elevado absentismo dos funcionários, as reclamações e quezílias frequentes, acabaram por ocupar uma parte demasiado significativa dos esforços da estrutura de topo do ISSOPG. Todavia, esse desvio de atenção para problemas de funcionamento interno não equivale a dizer que tivesse existido falta de empenho dos dirigentes deste organismo na promoção do modelo de seguros previsto na lei.

Este diagnóstico da actividade do Instituto não se afasta do balanço realizado por Francisco Grilo no final da década de 20, quando já se fazia sentir a alteração do ambiente político que prenunciava o advento do Estado Novo. Em 1928 e 1929 Francisco Grilo fez publicar um conjunto de artigos que traduzem um último fôlego na defesa da "obra glorificadora da República", nos quais insiste na sua "fé inabalável" nos seguros sociais obrigatórios e responde aos seus críticos reformulando a legislação de 191916.

A sua análise de todo o processo não omite as dificuldades encontradas, que claramente identifica: a inflação que pôs em causa o limite salarial fixado na legislação inicial, a indiferença e inércia dos possíveis beneficiários, alguns aspectos processuais da lei que tornavam a sua execução complexa. Mas a lentidão na execução efectiva de uma legislação social desta envergadura, limitação que outros países, aliás, partilharam17, não significa ausência ou reduzida importância na actividade do Instituto. A relevância dos serviços prestados, abrangendo "um grande capítulo na economia social", incidiu no apoio à assistência privada, aos hospitais, e à luta contra a tuberculose e a sífilis; na organização de estudos sobre convénios internacionais e questões de trabalho, como os horários de trabalho, seguro de desemprego, regime cooperativo e caixas económicas, estudos que apoiaram a legislação laboral neste período, em particular a fixação das oito horas de trabalho e a protecção de crianças e mulheres; a elaboração de estatísticas sobre o custo de vida, salários, acidentes de trabalho e movimento cooperativo; o apoio aos seguros de acidentes de trabalho. O crescimento da responsabilidade patronal no âmbito dos desastres de trabalho, fruto da legislação de 1919, é um aspecto sempre sublinhado: dez anos após esta iniciativa, os salários e ordenados seguros ascendiam a mais de 500 000 contos e as indemnizações e pensões pagas desde Junho de 1919 a Dezembro de 1928 atingiam cerca de 18 500 contos e 3000 contos, respectivamente.

Face a alguns problemas de aplicação da legislação de 1919, Francisco Grilo propõe um conjunto de alterações, mantendo-se o mesmo espírito e o papel atribuído ao mutualismo voluntário. A resenha que então elabora acerca da dimensão do movimento mutualista e do necessário caminho a desenvolver nesta área não regista significativas diferenças face ao quadro fornecido dez anos antes. No início da década de 30 estavam registados nas associações de socorros mútuos de doença pouco mais de 500 000 indivíduos, distribuídos por menos de 600 associações em todo o país, donde a necessidade de fortalecimento desta forma de associativismo, que, embora prestando importantes serviços, não permitia a solução integral para o problema da previdência18. Daí o papel do Estado e a necessidade de tornar obrigatória a inscrição dos segurados nas associações já existentes e organizar ainda 200 novas associações para cobrir os cerca de 1 500 000 indivíduos ainda não integrados. A fórmula preconizada para a obrigatoriedade insistia na criação de comissões municipais de previdência e na formação do Fundo de Previdência Social.

Também no âmbito do seguro de invalidez e velhice, as alterações propostas não ferem os princípios anteriores: apenas se actualiza o limite anual de salários, que passaria para 9000$00, muda-se o intervalo de idade dos beneficiários, que passaria a ser entre os 15 e os 65 anos, e reformula-se a contribuição, que passaria a corresponder a 2,5% do salário, a pagar pela entidade patronal, sendo igual a percentagem a pagar pelo segurado.

No quadro da nova proposta, a manutenção do Instituto é claramente defendida por Francisco Grilo. Em seu entender, a existência de um organismo único de coordenação do sistema traduz-se em "economia e vantagens", que contrastam com a dispersão de serviços que noutros países existe e cuja experiência se desaconselha. Compreende-se a necessidade de contenção das despesas com pessoal, pelo que se propõe uma reorganização do quadro, que, face ao proposto em 1919, reflecte uma redução de 40%.

Ou seja, para Francisco Grilo, todos os obstáculos podiam ser ultrapassados. Bastava a reorganização da legislação, tarefa que apresentava concluída. O importante era levar à prática os seguros sociais obrigatórios, "acompanhando assim a evolução social que se está desenhando em todos os países para dar às classes trabalhadoras uma situação de bem-estar a que têm direito os que consagram a sua energia física e a sua actividade durante a existência à produção da riqueza". A perspectiva que presidia a esta obra enquadrava-se, porém, dentro do espírito sempre reiterado pelos promotores da legislação republicana: "um espírito conciliador, baseado na cooperação activa do Capital e do Trabalho". Em termos financeiros, o Estado era poupado a participar, manifestando-se assim o que Grilo designa como a "característica original" do sistema português. Ora, este articulado de ideias revela bem a ausência de uma diferença radical em termos doutrinais face às propostas do Estado Novo, não obstante as fortes críticas que os doutrinadores da primeira fase do corporativismo moveram à política social da I República. Tais críticas eram inevitáveis, dado o novo ambiente político, que deixava de ser propício ao reconhecimento de eventuais méritos que pudessem ser atribuídos ao sistema de seguros sociais do período republicano.

 

A visão construída pelo corporativismo

Os ideólogos corporativistas construíram um modelo de organização do sistema de previdência social a partir da convicção, real ou forjada, de que tudo tinha de ser feito de raiz devido ao fracasso do sistema de seguros sociais obrigatórios instituídos pela I República em 1919.

As palavras de Pedro Teotónio Pereira, um dos grandes arquitectos do edifício corporativo, são, a este propósito, bem elucidativas. Depois de verberar, em abstracto, os políticos que buscam efeito e sucesso fácil de reformas efémeras e inexequíveis, afirma:

Esses processos, seguiram-nos entre nós os velhos políticos, deixando muitas dezenas de páginas do Diário do Governo cobertas de legislação de previdência social que nunca foi além do papel. É caso bem frisante o que aconteceu com a de 1919.

De facto, em matéria de seguros sociais nada nos falta quanto a textos legislativos. Temos postos em decretos, para valer como leis, o seguro social obrigatório na doença, o seguro social na invalidez e na velhice, o seguro social contra desastres no trabalho.

De tudo isto e de muita coisa que correlativamente se publicou, só floriu no campo dos factos a legislação de reparação às vítimas de desastres no trabalho, que apenas no nome se pode confundir com um seguro social obrigatório [Pereira, 1937 [1933], pp. 46-47].

A sua acusação vai no sentido de não terem sido feitos estudos técnicos de forma rigorosa, de existir uma forte contradição entre a orientação teórica contida na lei e os seus efeitos práticos reais, de apenas abranger cerca de 20% do universo previsto. Por isso, congratula-se com o facto de a situação económica, fortemente marcada pela inflação e desvalorização da moeda, ter criado alguma contenção dos agentes privados e falta de entusiasmo dos poderes públicos para levarem por diante as reformas programadas na lei.

Nesse mesmo ano de 1933, outro testemunho acentua que não bastava ter boas intenções para se ter um bom sistema e aponta como principais factores do malogro da concretização efectiva da legislação de 1919 (com excepção dos seguros de acidentes de trabalho) os seguintes aspectos: falta de adesão das mutualidades livres e apagamento gradual da chama do mutualismo português; desinteresse e oposição do patronato no cumprimento das obrigações de quotização previstas na lei; resistências do operariado e suas estruturas associativas e sindicais em aceitarem as formalidades burocráticas e cadernetas de registo impressas pelo ISSOPG.

A acusação de ineficiência e insucesso manter-se-ia em diversos textos de divulgação e propaganda do regime de previdência social do Estado Novo, considerando-se que os seguros sociais obrigatórios "não constituíam um sistema de soluções, ou lhes faltava a condição essencial da viabilidade [...] condenados pela excessiva uniformidade das fórmulas, pelo monstruoso volume dos encargos e pelo enorme aparato da sua administração" (Previdência Social, 1945, p. 3).

Outras vezes surge também a ideia de excesso de ambição de um desenho legal que ia muito além daquilo que países com mais longa tradição mutualista e de organização de seguros obrigatórios tinham logrado alcançar, o que tornava inevitável o fracasso perante expectativas tão elevadas (Fernandes, 1947, pp. 16-25).

Note-se que as críticas não incidem sobre a diferença essencial de concepção dos sistemas de seguros sociais ou de previdência social em presença. Com efeito, para os defensores do modelo corporativo, que não atribuíam ao Estado, no plano formal, responsabilidade directa pelo funcionamento e gestão do sistema de previdência, não é tanto esta visão de enquadramento doutrinal do Estado que é invocada como motivo de discórdia. Até porque, para muitos dos defensores do corporativismo, a crítica ao sistema de seguros obrigatórios não implicava negar o reconhecimento da necessidade de intervenção supletiva do Estado, cujo papel na fixação de normas e princípios reguladores das antigas associações de socorros mútuos, ou até na atribuição de subvenções ao seu funcionamento, não é de forma alguma questionado. Com efeito, parece manter-se algum consenso relativamente à aceitação, quer em Portugal, quer no contexto internacional, da necessidade de um sistema de seguros obrigatórios que envolvesse os diversos actores sociais nele interessados, incluindo, naturalmente, o próprio Estado.

Mesmo que pudessem existir pretextos para um debate doutrinal mais sério, a crítica incide sobretudo na ingenuidade, na generosidade excessiva e na falta de sentido prático dos que conceberam um sistema sem cuidar da sua viabilidade. Assim, em tom ainda mais peremptório, e com o mesmo propósito propagandístico, dizia-se:

Autêntica improvisação, animados da mais generosa mas da mais ingénua das intenções, os decretos de 1919 organizavam o seguro para todos os trabalhadores, sem distinção de profissão, de sexo ou de idade. Equivaliam a simples declarações de princípios que se destinavam, afinal, a não passar do papel. Porque se não deu conta da verdadeira magnitude do problema, das suas dificuldades técnicas, do volume dos encargos a assumir, apenas se praticou um acto de boa vontade que não viria a ter qualquer espécie de projecção na ordem das coisas práticas [ABC do Seguro Social, 1949, p. 51].

Catorze anos mais tarde, teria de se partir de zero, do zero absoluto, para se construir um sistema de seguros sociais em correspondência com as realidades da nossa existência colectiva e em harmonia com os nossos recursos, um sistema capaz de viver e durar, apto a garantir efectivamente a segurança dos trabalhadores portugueses.

A antipatia em relação ao clima político da I República acabou por se impor como um dos principais factores da visão negativa construída pelos ideólogos corporativistas. Por isso diziam:

Após um período estéril, em que o tempo foi pouco para dissídios, pugnas parlamentares, quedas de governos e resoluções à mão armada, surgiram os célebres decretos de 10 de Maio de 1919, nos quais se estabeleciam as linhas mestras de uma estrutura de seguros sociais, construção meramente teórica, que não foi possível sequer ensaiar [Figueira, 1949, p. 55].

Todavia, o libelo de acusação, sempre centrado na questão da ineficácia das medidas práticas, acaba por perder algum sentido quando expressamente se admite que, afinal, a organização corporativa ressuscitou das cinzas o sistema que a I República implantara:

Aquilo que ficara nos Diários do Governo, como paisagem triste de um período de verdadeira guerra civil, nos espíritos e na administração pública, ressuscitou-o sob inspiração nova, em 1933, o Estatuto do Trabalho Nacional, diploma basilar da Revolução Corporativa Portuguesa [Figueira, ibid., p. 55].

Esta sugestão de continuidade possível entre a I República e o Estado Novo não ignora as diferentes condições políticas de exercício de actividade das instituições directamente envolvidas no desenvolvimento de sistemas de previdência social. Como já ficou expresso em anteriores reflexões sobre o tema, a passagem do sistema da I República para o modelo corporativo, ao implicar uma ruptura com a concepção democrática dos problemas sociais e, por conseguinte, com o desenvolvimento dos direitos sociais, representa uma cisão não negligenciável (Pereira, 1999). No entanto, o destaque que aqui se pretende introduzir quanto ao reconhecimento que os ideólogos corporativistas faziam acerca do papel supletivo do Estado — nisso aproximando-se do discurso republicano, assim como do discurso solidarista protagonizado por Ávila Lima — traz a vantagem de explicar que grande parte da retórica corporativa contra os seguros sociais obrigatórios assentava em razões exteriores ao objecto da aparente discórdia. Assim sendo, o Estado Novo não partiu do zero para a construção do seu sistema de previdência, mas prosseguiu em novos moldes uma experiência da qual não podia fazer tábua rasa.

Ao decretarem a obrigatoriedade do seguro social, os políticos republicanos não pretendiam que o Estado pudesse assumir o controlo efectivo de todo o sistema, sobretudo no que se refere à garantia do seu financiamento. Também nesse aspecto convergiram os doutrinadores sociais da primeira fase do Estado Novo, logo após a aprovação do Estatuto do Trabalho Nacional. Diferenças poderiam existir quanto à avaliação do alcance da função reguladora e da intensidade dos mecanismos burocráticos estabelecidos pela legislação de 1919. No entanto, aqueles que no início da década de 30 acusaram os legisladores republicanos de inoperacionalidade e ineficácia, tal a ânsia controladora que matava o seguro social à nascença, também viriam mais tarde a ser criticados pelos seus continuadores (bem dentro da mesma família política) pela ingenuidade com que ambicionaram um sistema de previdência social espontaneamente surgido da dinâmica das organizações corporativas, sem se acautelar devidamente a sua coordenação.

 

Conclusão

As dificuldades observadas pela I República na concretização do sistema de seguros sociais obrigatórios prestaram-se à crítica que o Estado Novo moveu a esta iniciativa. O corporativismo não teve de artificialmente forjar o quadro que sintetizava o revés da experiência. Com efeito, o reconhecimento do fracasso partia da própria avaliação daqueles que haviam promovido a legislação republicana, conforme ficou bem ilustrado pelo testemunho de Francisco Grilo. Por isso se procedia a um balanço crítico e se sugeriam alterações para superar as dificuldades técnicas de execução, sem que se renegassem os princípios orientadores da necessária e previdente intervenção do Estado.

As acusações do corporativismo traduziam, por isso, objectivos de natureza política, mais do que distinções em termos da concepção do sistema.

Também para os corporativistas era necessária uma acção impulsionadora do Estado na promoção da previdência social. Tal acção visava minorar as dificuldades económicas de largos sectores da população e, simultaneamente, manter a paz social através da aliança entre o trabalho e o capital. Ao Estado cumpria a organização e promoção do sistema de previdência, cabendo aos interessados os encargos financeiros para a obtenção das subvenções. Ora, estas são perspectivas que não deixam transparecer diferenças substanciais nos princípios fundadores propalados pelos dois regimes políticos.

É ainda importante constatar que uma das dificuldades de concretização do sistema, particularmente sentida pela I República, irá ser precisamente idêntica à verificada no momento inicial de criação do quadro de previdência social do Estado Novo. A crítica à ingenuidade republicana, que não acautelara devidamente a capacidade de mobilização dos interessados, voltará a ser ouvida, desta feita no interior do corporativismo, quando em meados da década de 40 se constata a fraqueza das iniciativas de 193319. A crença de que espontaneamente a população carenciada se mobilizaria em torno das propostas do Estado para garantir a sua segurança social era tão infundada na década de 20 quanto o seria dez anos mais tarde.

Para além deste evidente obstáculo à concretização dos objectivos da I República em matéria de política social, sobressai a dificuldade associada à construção da máquina burocrática e administrativa que a execução do seguro social exigia. A comparação internacional destaca precisamente este aspecto. Portugal não desconhece as experiências estrangeiras que marcaram as primeiras décadas do século xx, durante as quais se assistiu à transferência das preocupações sociais para a acção política e à mobilização das elites governativas para a introdução de reformas neste campo. Parte das motivações subjacentes a este movimento era também partilhada noutros ambientes externos. A harmonia social, a prevenção da agitação política e o aumento do bem-estar das classes trabalhadoras inspiraram uma nova geração de políticos, como Lloyd George e Churchill em Inglaterra, cujo reconhecimento era expresso pelos ideólogos portugueses. No entanto, se a intervenção estatal na vida colectiva era teoricamente aceite, na prática o investimento financeiro estava ausente da proposta nacional. A par desta distinção crucial, as dificuldades de instalar no terreno o sistema arquitectado foram particularmente visíveis no caso português. A avaliação global da intervenção republicana neste domínio faz destacar, assim, os obstáculos e bloqueios institucionais internos como explicação para o reduzido impacto verificado, a par dos problemas financeiros inerentes à conjuntura inflacionista após a Primeira Guerra Mundial.

Esta avaliação não ignora que outros aspectos merecem ser considerados para uma análise mais aprofundada desta experiência. O confronto entre as diferentes perspectivas políticas e ideológicas em combate neste período interferiu certamente no resultado do projecto social que a lei de 1919 incorporou. Os ecos da desconfiança com que muitos sectores olhavam para a acção do ISSOPG chegavam à sua direcção e a pesquisa destas reacções trará, sem dúvida, novas visões sobre este tema. Todavia, a análise levada a cabo neste artigo permite perceber que por parte do organismo responsável pela montagem dos seguros obrigatórios existia a máxima vontade em fazer avançar o processo e em colaborar com o mutualismo livre, cuja experiência anterior foi considerada crucial para o arranque do modelo republicano. A relação entre o movimento mutualista livre e os promotores dos seguros obrigatórios necessita de um outro olhar que se focalize na posição dos primeiros, pois na estrutura directiva de topo do ISSOPG não se manifestam sinais de hostilidade recíproca. Por outro lado, ficou demonstrado que na construção do modelo republicano nunca esteve presente uma opção por um excessivo protagonismo do Estado, como pretendiam fazer crer os ideólogos do corporativismo.

A criação dos seguros sociais obrigatórios na I República constitui, assim, uma experiência histórica da maior importância para se compreender não apenas o alcance deste instrumento de política social, mas também os constrangimentos inerentes ao seu funcionamento. A atitude vigilante e a acção previdente do Estado republicano em matéria de política social, por muito voluntariosas e bem-intencionadas que possam ter sido, necessitavam de condições económicas, ambiente político e moldura institucional mais adequados à concretização bem sucedida dos seus propósitos.

 

 

Fontes e bibliografia

Fontes

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Boletim da Previdência Social (1919-1930).

 

Bibliografia

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Notas

 

1 Merecem referência alguns trabalhos pioneiros que alertaram para a importância e fixaram as balizas de análise (v. Guibentif, 1985 e 1997, Almeida, 1997, Leal, 1998, e Pereira, 1999 e 2000).

2 A abordagem histórica comparativa sobre a instituição dos seguros sociais obrigatórios na Europa não constitui o objecto do presente texto. É vasta a bibliografia sobre os antecedentes do Estado-providência no contexto europeu. A título meramente indicativo, citam-se as seguintes referências: Digby (1989), Thane (1996), Biornson (1999), Gladstone (1999), Calle Velasco e Esteban de Vega (1999), Machtan (1999), Dutton (2002), Fraser (2003) e Harris (2004).

3 Designadamente as propostas de Estêvão de Vasconcelos relativamente aos seguros de acidentes de trabalho. A dimensão do problema excedia em larga escala os números apresentados pelas estatísticas oficiais, pelo que advoga o empenho do Estado na aprovação de legislação que reafirmasse o princípio da responsabilidade dos patrões em matéria de seguros de acidentes de trabalho (Vasconcelos, 1910 e 1912). Estas ideias transitaram para o debate parlamentar e estiveram na base da lei sobre acidentes de trabalho publicada a 24 de Julho de 1913 (Pereira, 1999, pp. 50-53).

4 Para uma síntese das principais escolas de pensamento e teorias que visam explicar esta intervenção social do Estado, v. Harris (2004, pp. 15-27).

5 A lei sobre acidentes de trabalho de 1919 estendia a todos os trabalhadores os benefícios já atribuídos pela legislação de 1913 aos trabalhadores do sector industrial.

6 Todas as referências a este conjunto de diplomas legais são feitas a partir da compilação publicada no Boletim da Previdência Social, n.º 8, Julho-Dezembro de 1919.

7 Por decreto de 19 de Janeiro de 1924 o número de vogais foi reduzido a 3.

8 O conselho de administração era composto por João Luís Ricardo da Silva, José Francisco Grilo, José Tomaz de Aquino Costa Júnior, Augusto Baeta das Neves Barreto, Álvaro Augusto Fróis Passolo de Sousa, Francisco da Silva Lino Gameiro, Alfredo Maria da Costa Andrade, Francisco Alberto da Silveira, José Maria de Andrade Saraiva, Mário de Magalhães Infante de Lacerda e Mariano de Melo Vieira. A primeira reunião do conselho de administração ocorreu a 26 de Maio de 1919. Sobre o papel de João Ricardo da Silva e Francisco Grilo — indivíduos com fortes ligações ao movimento mutualista _ na preparação da lei de 10 de Maio de 1919, v. Pereira (1999).

9 A periodicidade das reuniões do conselho de administração era semanal durante os primeiros anos, mas, com frequência, nesta fase inicial ocorriam duas reuniões semanais.

10 Livros de actas do conselho de administração do ISSOPG. Trata-se de uma documentação recentemente incorporada no AN/TT, anteriormente depositada no arquivo do Departamento de Estatística e Planeamento — Ministério do Trabalho e Segurança Social. O conjunto analisado perfaz cerca de 360 actas para o período compreendido entre 1919 e a extinção do Instituto.

11 Sobre o seguro de doença, v., em particular, actas de 14-8-1919, 11-11-1919, 4-12-1919, 5-2-1920 e 9-12-1920.

12 Para um balanço deste primeiro período, v. os diferentes relatórios publicados no Boletim da Previdência Social, n.os 9 e 10, Janeiro-Dezembro de 1920.

13 Entre 29 de Maio de 1919 e 31 de Dezembro de 1920 entraram nos serviços do Instituto 14 164 participações, número que ainda não correspondia, porém, ao total de acidentes ocorridos. Como afirmava o conselho de administração, nem todas as entidades obrigadas ao envio de participações ao ISSOPG realizaram este procedimento.

14 Um aprofundamento desta questão pode ser alcançado com a análise dos orçamentos do ISSOPG, o que não foi objecto deste trabalho.

15 Sobre a reacção operária, v. acta de 22-7-1920, e sobre reacção do corpo médico, v. acta de 20-5-1920.

16 Boletim da Previdência Social, n.º 19, Janeiro-Julho de 1928, n.º 20, Agosto de 1928 a Julho de 1929, e n.º 21, Janeiro-Dezembro de 1930. Todas as referências às posições de Francisco Grilo que a seguir se citam são provenientes dos artigos publicados nestes números: "Exposição do conselho de administração acerca dos serviços do Instituto de Seguros Obrigatórios e reduções no orçamento", Boletim da Previdência Social, n.º 19, Janeiro-Julho de 1928, pp. 8-35; "Estudos de previdência social", n.º 20, Agosto de 1928 a Julho de 1929, pp. 14-31; "Legislação social em Portugal", n.º 21, Janeiro-Dezembro de 1930, pp. 1-13.

17 Francisco Grilo refere, em particular, o exemplo francês. Sobre a experiência deste país neste período ao nível dos seguros obrigatórios, v. Dutton (2002, pp. 38-65).

18 Para uma análise da evolução do movimento mutualista nas primeiras décadas do século xx, v. Pereira (2000).

19 Para uma análise da doutrina corporativista portuguesa em matérias de política social e sua repercussão no funcionamento do sistema de previdência durante o período do Estado Novo, v. Cardoso e Rocha (2003).

 

 

* ICS, Universidade de Lisboa, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. e-mail: jcardoso@ics.ul.pt.

** ISEG, Universidade Técnica de Lisboa, Rua do Quelhas, 6, 1200-781 Lisboa, Portugal. e-mail: manuelar@iseg.utl.pt.

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