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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.190 Lisboa  2009

 

Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica

Marcio Goldman*

A partir da discussão sobre o estado actual dos estudos afro-brasileiros, este trabalho aborda o debate, recentemente retomado, em torno das ideias outrora famosas de "fetiche" e "fetichismo". Partindo do modo como esse debate tem tido lugar nos estudos sobre as "religiões afro-brasileiras", são utilizados dados bibliográficos e de campo relativos a uma dessas religiões — o candomblé —, a fim de apresentar a teoria nativa do processo de criação subjacente ao que foi denominado, de fora, "fetiche" e "fetichismo". Em resumo, essa teoria sustenta que o processo de criação consiste mais na actualização de virtualidades já existentes do que na produção ex nihilo da nossa cosmologia judaico-cristã e capitalista.

Palavras-chave: religiões afro-brasileiras; fetichismo; história; antropologia simétrica.

 

Histories and fetishes of Afro-Brazilian religions: an essay in anthropological symmetrization

Starting out from discussion of the current state of Afro-Brazilian studies, this article addresses the recently revived debate over formerly widely disseminated ideas concerning "the fetish" and "fetishism". It first examines how that debate has been conducted in studies of Afro-Brazilian religions, using bibliographical and field-work data on one of those religions — candomblé — to describe the native theory of the creation process which underlies that which outsiders have labelled "fetish" and "fetishism". Briefly, the theory holds that process of creation actualizes existing virtualities rather than producing, out of nothing, our Judaeo-Christian and capitalist cosmology.

Keywords: Afro-Brazilian religions; fetishism; history; symmetrical anthropology.

 

Introdução**

Como em tantos outros campos da antropologia, a história dos estudos antropológicos a respeito das chamadas religiões afro-brasileiras é, em geral, contada por meio de um procedimento recursivo que situa essas religiões numa história que lhes é exterior para, em seguida, reduzir o seu estudo ao desvendamento do seu verdadeiro lugar nessa história previamente fixada. Teríamos, nesse esquema, uma primeira fase evolucionista e/ou culturalista — situada, grosso modo, entre o final do século XIX e o início da década de 70 —, em que os autores estariam exclusivamente preocupados em detectar "sobrevivências africanas", descrevendo, para isso, o sistema de culto, os objectos rituais, os símbolos e os mitos (visão "interna", como se costuma dizer). E, depois, uma "reviravolta", sob a influência da antropologia social britânica, sustentando, a partir de meados dos anos 70 do século XX, que esses ritos, mitos e símbolos deveriam ser analisados como a expressão de relações sociais concretas contemporâneas, e não como sobrevivências de um passado mais ou menos remoto (visão "externa", portanto)1.

Como escrevi recentemente (Goldman, 2005, pp. 104-105 e 119-120), não é tão fácil aceitar essa versão um pouco narcisista dos estudos afro-brasileiros. Em parte, porque o modelo utilizado é, ele próprio, evolucionista, na medida em que supõe um inequívoco progresso entre as falsas teorias internalistas e a revelação externalista — e, ao menos em parte, culturalista —, uma vez que, quase invariavelmente, se ampara em supostas especificidades da sociedade brasileira.

Além disso, é muito claro que a maior parte dos autores geralmente classificados na primeira rubrica nunca deixou de se interessar por questões sociopolíticas mais amplas. Desde Nina Rodrigues (1900), preocupado em saber se os "africanos no Brasil" estariam aptos para a integração na sociedade brasileira, até Roger Bastide (1971), que explora a fascinante questão do que pode ocorrer com um sistema de crenças e valores quando perde o seu enraizamento social em sentido estrito. Nesse último caso, é, no mínimo, curioso que não se reconheça o carácter francamente sociológico do modelo de Bastide, que acreditava ser a diáspora africana no Brasil uma espécie de laboratório ideal para uma experiência em torno dos desajustes e reajustes entre uma "superestrutura" (para usar o seu vocabulário) que perdeu a sua base e uma "infra-estrutura" que contribui para engendrar, mas que, ao mesmo tempo, é trabalhada por forças que escapam ao controlo dos agentes e que actuam sobre o conjunto, modificando-o continuamente2.

Em terceiro lugar, é evidente que depois da década de 70 continuaram a ser realizados trabalhos de pesquisa mais "internalistas", seja sob a forma da análise de sistemas cosmológicos e rituais (por exemplo, Lépine, 1978, e Santos, 1977), seja sob a forma de monografias mais afinadas com técnicas etnográficas e concepções teóricas que recusam, em maior ou menor grau, implícita ou explicitamente, a separação durkheimiana e estrutural-funcionalista entre a base sociológica e as "representações colectivas"3.

Enfim, porque, quando bem observadas, as diferenças entre autores mais "internalistas" e "externalistas" podem não ser tão óbvias como às vezes se imagina. Certamente é possível observar que a ênfase parece ter sido desviada de preocupações com o detalhe sobre os cultos para os aspectos sociológicos e, mais especificamente, sociopolíticos aparentemente mais amplos. Além disso, uma atenção preferencial em relação a tópicos como o ritual, a mitologia, a possessão, etc., foi cedendo espaço a um interesse crescente pelas formas de interacção e convivência com a chamada sociedade abrangente. Finalmente, também pode, até certo ponto, ser observado um certo deslocamento do objecto empírico de formas tidas, por vezes, como mais "puras" (o candomblé baiano fornecendo o paradigma para esse tipo de análise) para aquelas mais "sincréticas" (como a umbanda).

Deve-se notar, entretanto, que mesmo a perspectiva evolucionista e, por vezes, racista dos trabalhos mais antigos buscava estabelecer conexões com contextos sociais mais abrangentes. Conexões eminentemente negativas, uma vez que a questão crucial consistia, basicamente, em tentar desvendar essa espécie de mistério constituído pela estranha permanência dessas religiões primitivas num país que se modernizava ou se devia modernizar. Questão resolvida, claro, com o apelo à noção de "sobrevivência", que explicava, por meio de uma espécie de inércia própria das instituições culturais, a permanência das crenças e costumes "africanos". Crenças e costumes que, como escreveu Arthur Ramos (1934) — fiel à máxima de Tylor (1913, p. 453) segundo a qual "a antropologia é a ciência do reformador" —, a "lenta obra da cultura" deveria extinguir progressivamente.

O "problema" é que em 1970 isso "ainda" não havia ocorrido. Não é, pois, de admirar que, escrevendo justamente num momento em que as religiões de matriz africana pareciam estar a sofrer um processo de crescimento e expansão, os autores que começaram a pesquisar nessa década tenham sido tentados, por assim dizer, a fazer da necessidade virtude. Se o "mistério" consistia em compreender a convivência das "religiões africanas no Brasil" com os processos de modernização, e se já não era possível aplicar conceitos como os de "sobrevivência", nada melhor do que fazer da própria modernização a causa da permanência e até mesmo do desenvolvimento dessas religiões. Foi desse modo que se passou a uma ênfase quase exclusiva nas relações externas dos grupos religiosos, explicando as suas características como efeito de estruturas mais amplas e mais actuais que as sustentariam (Goldman, 1984, pp. 107-109, e 1985, pp. 25-31).

Em poucas palavras, parece-me que o que aproxima "internalistas" e "externalistas", a despeito das suas inegáveis diferenças, é o seu respeito excessivo pela história. Uns e outros tendem a conceber as religiões afro-brasileiras como entes mergulhados numa historicidade que não lhes pertence, cabendo-lhes tão-somente resistir a esse fluxo temporal externo — mantendo-se então imutáveis ou, mais frequentemente, degradando-se lentamente até desaparecerem —, ou acomodar-se a ele, passando assim a sofrer transformações que apenas repercutem aquelas, mais fundamentais, da "sociedade abrangente".

Se aceitarmos, contudo, com Deleuze e Guattari (1980, p. 537), que "a história somente traduz em sucessão uma coexistência de devires", que "tudo coexiste em perpétua interacção" (Deleuze e Guattari, 1980, p. 536) e que a única maneira de escapar do "tema absurdo da sociedade sem história ou da sociedade contra a história" (Deleuze e Guattari, 1980, p. 536) é contornar a própria história e levar em conta a coexistência dos elementos", esse quadro de referências deve, necessariamente, passar por profundas alterações4.

Ora, é exactamente este o ponto de Roger Bastide na segunda parte de As Religiões Africanas no Brasil, significativamente intitulada "estudo sociológico das religiões afro-brasileiras". Após resumir as semelhanças e diferenças entre o candomblé baiano e o xangô pernambucano e constatar que as primeiras são muito mais marcantes do que as segundas — que poderiam, no limite, ser atribuídas exclusivamente a uma diferença de nível económico entre os fiéis dos dois cultos (Bastide, 1971, pp. 266-272) —, o autor prolonga a reflexão e levanta a mesma questão para as relações entre o candomblé e o xangô, em conjunto, quando confrontados com as religiões africanas donde teriam tido origem. A conclusão é que as variações podem sempre ser atribuídas à necessidade de adaptação "às novas condições de vida" (Bastide, 1971, p. 277):

Se estudarmos, pois, com cuidado as transformações que parecem ter-se operado na passagem do culto de um continente a outro, percebemos que essas transformações, na realidade, não são mais do que variações geográficas ou o que os antropólogos chamam algumas vezes de "alternativas culturais" [Bastide, 1971, p. 279].

As "variações geográficas" explicam, por exemplo, as mudanças no calendário das festas, em função da mudança de hemisfério (Bastide, 1971, p. 278), ou o facto de cada terreiro cultuar todas as divindades, dado que "a relativa fraqueza demográfica de cada `nação' impediu a constituição de confrarias separadas por divindades" (Bastide, 1971, p. 278), ou ainda as diferenças na quantidade dos orixás reconhecidos, já que a flutuação demográfica pode fazer com que não haja devotos de um ou de outro, o que é sinónimo da sua desaparição, segundo o próprio modelo africano (Bastide, 1971, p. 279), e assim por diante.

Entretanto, mais do que isso — e aqui reside a novidade da contribuição de Bastide em relação a este ponto —, na maior parte dos casos, as transformações não são arbitrárias, mas consistem na actualização de alternativas já presentes nas religiões africanas, motivada pelas novas condições objectivas (Bastide, 1971, pp. 278-281):

Parece-nos justamente que as oposições que podemos encontrar entre os modelos "africanos" e os "modelos" afro-brasileiros desaparecem quando estudamos essas diversas alternativas de ação permitidas aos próprios ioruba por suas normas culturais […] Não há, portanto, diferenças de fatos, mas apenas a predominância de certos termos de alternativas num país, e de outros, no outro [Bastide, 1971, pp. 279-280].

Assim, a substituição da regra de determinação de pertença a um orixá (por meio da divinação, e não da descendência patrilateral) é uma actualização de uma alternativa já existente em África, ainda que só utilizada em poucos casos (doenças, descoberta de orixás oriundos da linhagem materna que podem ser adoptados, o facto de ter sido criado no templo de uma certa divindade, etc. — Bastide, 1971, p. 280). Da mesma forma, a redução do tempo de iniciação de três anos, em África, para nove meses, no Brasil, significa apenas a actualização do modelo masculino africano, já diferente do feminino (Bastide, 1971, p. 281). Nesse sentido, o que em África é apenas uma "tendência […] e o que lá não é mais que uma alternativa, torna-se regra, no Brasil" (Bastide, 1971, p. 281), e isso, claro, em função de pressões sociológicas, que fazem com que as mulheres disponham de mais tempo para o culto, uma vez que os homens devem trabalhar, ou que seja muito difícil, dadas as estruturas familiares na escravidão, estabelecer a linhagem de alguém.

Isso significa, como demonstrou bem mais recentemente Erwan Dianteill (2002, pp. 123 e 126), que nunca existiu uma religião yoruba, que mais tarde viria a "sincretizar-se" com outras igualmente unas e puras. A religião yoruba — como qualquer outra, aliás — é um patchwork ou um "complexo" que contém inúmeras possibilidades ou virtualidades que se actualizarão com maior ou menor força segundo as situações5. Nesse sentido, não há qualquer razão para repetir Bastide, que limitou a sua hipótese aos candomblés de origem yoruba e fon, insistindo na busca de decadências e degenerações quando abordava as religiões de origem bantu. Como no caso dos mitos estudados por Lévi-Strauss, estamos sempre às voltas com sistemas em que cada singularidade pode e deve ser tratada como uma transformação das demais. Se não há origem, tão-pouco há invenção.

 

O fetichismo hoje

Creio que um tópico que pode permitir uma abordagem um pouco mais concreta das questões até aqui levantadas é o famoso, ou famigerado, tema do "fetichismo". Como é sabido, o termo foi empregue pela primeira vez em 1760 por Charles de Brosses a fim de caracterizar "a primeira religião da humanidade". Sabe-se também que esse fetichismo consiste numa elaboração do termo "fetiche", cunhado nos séculos XVI e XVII por navegantes e comerciantes portugueses e holandeses na costa ocidental de África. Termo destinado a designar os objectos materiais que os "africanos" elaboravam e aos quais estranhamente atribuíam supostas propriedades místicas ou religiosas, passando então a adorá-los.

A partir do século XIX, o termo conheceu um estranho destino. Por um lado, foi usado como conceito central por alguns dos principais fundadores das ciências humanas modernas: Comte, Marx e Freud, para citar apenas os maiores. Por outro, foi quase unanimemente considerado por etnógrafos e antropólogos uma simples má tradução de ideias e objectos variados e, até certo ponto, muito heterogéneos.

Aparentemente, a série de três artigos que William Pietz dedicou ao assunto — publicados em 1985, 1987 e 1988 na revista de estética Res, sob o título geral de "O problema do fetiche" — reactivou um certo interesse pelos aspectos etnográficos e históricos do tema, se não pela sua dimensão de conceito geral. Pietz, de facto, traçou minuciosamente a história do que denomina um "problema-ideia singular"; para isso acreditou ser necessário refutar as quatro ordens de argumentos que, segundo ele, são simultânea ou alternadamente utilizados para afastar a possibilidade de qualquer emprego do termo "fetiche". Nem os argumentos "universalistas" (que reduzem o fetichismo a um caso particular de formas universais de simbolismo ou de erro lógico), nem os "históricos" (que fazem do conceito a projecção etnocêntrica do discurso ocidental), nem os "particularistas" (condenando o conceito como má etnografia, resultante de textos superficiais e preconceituosos escritos por viajantes e comerciantes), o convencem. Contra a crítica etnográfica, por exemplo, Pietz resume assim a sua tese:

Esse método ignora o estatuto histórico e transcultural desses textos, numa tentativa de reconstruir as culturas singulares das sociedades primitivas na sua pureza autónoma. Entretanto, também é possível estudar esses textos coloniais e antigos relatos de viagens como produções originais, resultantes do encontro abrupto de mundos radicalmente heterogéneos. Como registos descritivos, eles são frequentemente fantasmáticos, mas por isso mesmo é possível encará-los como resíduos da elaboração criativa de novas formas de consciência social [Pietz, 1985, p. 6].

Em termos muito sumários, o fetichismo pode não dizer muita coisa sobre as sociedades africanas, mas seria extremamente eloquente sobre nós mesmos. A "África", desenhada pelas narrativas a que Pietz se refere, teria fornecido a imagem sobre a qual trabalharam os filósofos iluministas e, depois deles, todos os que, de alguma forma, empregaram a noção de fetichismo. Se os primeiros estenderam a crítica à "superstição" e ao "interesse", supostamente na base das religiões africanas, a todos os tipos de religião instituídos, outros, mais tarde, darão continuidade a esse trabalho, aplicando a crítica a todo o tipo de conhecimento não científico, ou melhor, a todo o tipo de conhecimento definido pela ciência como não científico.

Assim, se o fetichismo foi inicialmente concebido como uma espécie de falsa física, que aplicaria mal o princípio de causalidade, atribuindo a seres inanimados um poder que não têm, essa concepção acabou por ser substituída ou suplementada pela de fetichismo como uma espécie de falsa sociologia, que fixaria a agência social onde ela "certamente" não está. E, ainda que nos dois casos sejam duas ciências que aparentemente garantem o que é real e, portanto, a possibilidade de denunciar a ilusão, no segundo há uma espécie de duplicação do processo crítico, pois é uma sociologia "verdadeira" que pretende não apenas denunciar como explicar uma "falsa". Deveríamos aqui prolongar a observação de Alfred Gell (1998, p. 101) acerca da magia. Do mesmo modo que esta não é uma teoria física alternativa ou falsa, mas uma teoria que funciona na ausência de uma teoria física e que tem bases num certo tipo de experiência, o mais interessante do chamado fetichismo não é que seja uma teoria sociológica falsa, mas um saber que funciona na ausência (e não na falta) de uma sociologia — quer dizer, da própria ideia de sociedade. Assim como a noção de causalidade não é propriedade particular da física, a de socialidade certamente não o é da sociologia6.

Entretanto, este não é o ponto central do texto de Pietz, cujo método, segundo nos diz:

Estuda a história do uso do "fetiche" como um campo de acontecimentos exemplares que não testemunham nenhum modelo ou verdade anterior ou externa ao próprio "arquivo". Ele encara o fetiche como um objecto radicalmente histórico que não é nada além da totalidade das séries de seus usos particulares [Pietz, 1985, p. 7].

É certo que os objectivos de Pietz não são aqueles que, em geral, os antropólogos perseguem. Apesar disso, ele toca numa questão que paira há algum tempo sobre a antropologia: seremos capazes de dizer algo interessante sobre outras formas de pensamento e de socialidade naquilo que têm de diferente em relação às nossas? Ou estamos limitados ao que nos parece, e que nós definimos como "comum", a nós mesmos e aos outros7?

Aparentemente, adoptando esta última posição, a crítica historicista de Pietz logo se detém no que Latour (1996, p. 29) considera uma tolerância excessiva para com os usos freudianos e, principalmente, marxistas da noção de fetichismo8. Como se algum tipo de "corte epistemológico" pudesse ser estabelecido entre as falsas elucubrações de De Brosses ou dos iluministas e o estatuto verdadeiramente científico que Marx e Freud teriam conseguido alcançar.

No final de contas, as consequências do método adoptado por Pietz não deveriam deixar de intrigar os antropólogos. Por maiores que sejam a erudição e a profundidade dos seus textos, é difícil deixarmos de indagar se, no caso do fetichismo, os povos africanos envolvidos nessa história de facto não teriam "nenhum modelo ou verdade anterior ou externa ao próprio `arquivo'" ou, ao menos, se não fariam parte das "séries de seus usos particulares". Mais precisamente, se eles não teriam algo a dizer sobre o assunto, ou se aquilo que inegavelmente têm a dizer não deveria também, e no mínimo, fazer parte do dossier.

Foi contra essa ausência, de resto intencional e explícita, no texto de Pietz, que um antropólogo protestou num trabalho recente:

No que se segue examinarei a história de Pietz a respeito da origem do fetiche para então tentar suplementar a sua explicação (extraída quase exclusivamente de fontes ocidentais) com algum material que nos possa fazer vislumbrar o que os personagens africanos da história podem ter pensado que estava a ocorrer… [Graeber, 2005, pp. 410-411].

O protesto de David Graeber, entretanto, acaba por soar algo tímido quando observamos que, ao longo do seu texto, "o que os personagens africanos da história podem ter pensado que estava a ocorrer" se limita a algumas práticas rituais e especulações cosmológicas muito genéricas, além de a uma teoria sobre a ordem social que o autor estranhamente assimila ao contratualismo europeu (Graeber, 2005, p. 14-15). Ou seja, o discurso sobre os fetiches — ou, mais precisamente, aquilo que, nesses discursos, não se parece com os nossos modos de pensar e definir a realidade — continua a ser silenciado em benefício daquilo que os euro-americanos, comerciantes ou antropólogos, consideram fundamental.

Além disso, num imenso esforço para salvar o sentido marxista do fetichismo, Graeber conclui que os fetiches, de facto, constituem "objectos que parecem assumir qualidades humanas, que, em última instância, derivam de facto dos próprios actores" (Graeber, 2005, p. 425). O equívoco dos nativos derivaria apenas, como nos lembra o autor, da "extraordinária complexidade" dos processos de criação, o que dificultaria a percepção da totalidade social, conduzindo à compreensível ilusão de que não se é responsável por aquilo de que se é pelo menos co-autor (Graeber, 2005, p. 428). Graeber observa ainda, simpaticamente, que, desse ponto de vista marxista, os fetiches africanos seriam, por assim dizer, singularmente pouco fetichizados (ou pouco fetichistas), uma vez que o seu carácter socialmente fabricado não poderia deixar de aparecer para actores tão interessados em relações sociais como seriam os africanos. Na verdade, seriam os europeus, pouco preocupados com relações sociais e obcecados com os objectos de valor, que teriam projectado o seu próprio fetichismo sobre os africanos (Graeber, 2005, p. 432).

Do ponto de vista africano, prossegue Graeber, "um fetiche é um deus em processo de construção" (Graeber, 2005, p. 427), e pelo menos esse fetichismo pré-capitalista pode ser salvo como uma forma de "criatividade social". "O perigo", conclui o autor, "vem quando o fetichismo dá lugar à teologia, a certeza absoluta de que os deuses são reais" (Graeber, 2005, p. 431) — além da mercadoria, é claro.

Por mais simpática que seja a posição de Graeber, ela tende a deixar-nos algo confusos. Primeiro, porque a sua tentativa de salvar os africanos é conduzida à revelia deles mesmos:

É claro que seria ir longe demais dizer que a visão fetichista é simplesmente verdadeira: Lunkanka não pode realmente amarrar os intestinos de ninguém; Ravololona não pode realmente impedir que o granizo caia sobre a plantação de ninguém. Como observei em outro lugar […] em última instância estamos lidando aqui apenas com o paradoxo do poder, o poder sendo algo que só existe se outras pessoas pensarem que existe; um paradoxo que, como igualmente argumentei, também reside no coração da magia, que sempre parece rodeada por uma aura de fraude, exibicionismo e ardil. Mas poder-se-ia argumentar que isso não é apenas o paradoxo do poder: também é o paradoxo da criatividade [Graeber, 2005, p. 430, itálicos meus].

O que é "realmente" dificil é entender por que motivo o autor experimenta essa necessidade de limitar os saberes nativos num texto que pretende justamente captar a perspectiva africana sobre o problema do fetiche. Mais do que isso, o que é "realmente" difícil de compreender é de que forma a conversão do fetichismo em poder, ou mesmo em "criatividade social", poderia ser esclarecedora, ainda que possa ser tranquilizadora. Pois sustentar que "um fetiche é um deus em processo de construção" pode ser muito caridoso, mas é altamente duvidoso que esse enunciado possa ser aceite pelos directamente interessados no tema (voltarei a este ponto). E embora, como assinalou Sansi (2007, p. 27), seja difícil determinar até que ponto "fetisso" se tornou uma palavra crioula ou permaneceu apenas como expressão pidgin (posição de Pietz, 1985, p. 5), tendo a acreditar que o termo tenha servido fundamentalmente para tentar explicar aos europeus algo que os africanos poderiam compreensivelmente imaginar que estes jamais entenderiam9.

Em segundo lugar, a tentativa de Graeber para salvar Marx é conduzida justamente a partir do que há de mais problemático e menos original no marxismo, a saber, o cientificismo que compartilha com boa parte do seu século. Pois é apenas desse ponto de vista que se pode sustentar a possibilidade de atingir uma visão privilegiada da totalidade do sistema social, sendo fetichistas todos aqueles que, limitados aos seus pontos de vista particulares, estão condenados a enxergar apenas uma parte desse todo, ao qual apenas alguns privilegiados teriam acesso. Como observou François Châtelet (1975, pp. 31-32), o mais interessante em Marx não é certamente esse tipo de cientificismo positivista, mas um perspectivismo que abre inúmeras outras possibilidades. O Capital, como sustenta Châtelet, consiste, sobretudo, numa descrição etnográfica e histórica do sistema capitalista efectuada do ponto de vista do proletariado — e não da burguesia, justamente. Que esse ponto de vista tenha sido considerado mais totalizante e, em consequência, mais verdadeiro ou científico, apenas contribuiu para a desgraça política e teórica do marxismo e não deveria hoje ser utilizado nem como estratégia analítica, nem, muito menos, como postura política destinada a salvá-lo.

Finalmente, a fim de salvar os africanos (e o marxismo), Graeber parece acreditar ser necessário condenar os europeus (ao menos os capitalistas). Estes seriam os únicos que, de facto, se enganariam a respeito da natureza da vida colectiva, imaginando que aquilo que, na verdade, não passa da objectificação das relações sociais estaria na origem dessas mesmas relações. Se a expressão me for perdoada, o único verdadeiro fetichismo seria o da mercadoria e o único fetichista verdadeiro aquele que denuncia o fetichismo dos outros.

O caráter, evidentemente, vicioso desse tipo de proposição não escapou a Bruno Latour no pequeno, mas fundamental, livro que dedicou ao fetichismo. Além disso, de forma bem diferente da de Graeber, Latour não pretende salvar os africanos ou o seu fetichismo. Bem pelo contrário, o fetichismo africano servirá justamente para salvar os europeus do seu antifetichismo, ou seja, da estranha tese que parecem sustentar segundo a qual a "modernidade" os teria livrado de um fantasma que assombra todas as formações pré-modernas, a saber, o fantasma da crença (Latour, 1996, pp. 9-10, 15, 29, 33-35 e 55).

A argumentação de Latour é complexa e sofisticada e dela não reterei aqui mais do que um ponto, aquele em que o autor deixa claro que o seu interesse pelo tema diz respeito exclusivamente à sua própria sociedade:

Foi somente por mim, é claro, que me interessei, ou antes, por esses infelizes brancos, os quais se quer privar da sua antropologia, encerrando-os em seu destino moderno de antifetichistas [Latour, 1996, p. 96]10.

Latour pretende, assim, demonstrar que, como toda a gente, também o europeu "é ligeiramente superado por aquilo que construiu" (Latour, 1996, p. 43); que entre Pasteur e os fetichistas a diferença é apenas de grau, não de natureza, uma vez que um e outros não são nem inteiramente realistas nem inteiramente construtivistas; que é possível afirmar, tanto do ácido láctico do primeiro quanto dos fetiches dos segundos, que são, ao mesmo tempo, descobertos e produzidos. O único problema, do ponto de vista dos antropólogos, é que a realização desse projecto exige que Latour deixe explicitamente de lado o que os "fetichistas" têm a dizer a respeito do que fazem, concentrando-se exclusivamente nas suas "práticas" (Latour, 1996, pp. 85-89).

Este ponto é aqui crucial, uma vez que nele Latour localiza o que parece considerar a dificuldade fundamental da antropologia, provavelmente a mesma que fez com que, a partir de 1991, a sua obra venha progressivamente a afastar-se da "antropologia simétrica", que então anunciava, na direcção de uma nova sociologia. Assim, em 2005, Latour escreverá que para que "a sociologia possa enfim tornar-se tão boa quanto a antropologia" é necessário "conceder aos membros das sociedades contemporâneas tanta flexibilidade para se definirem a si mesmos quanto aquela oferecida pelos etnógrafos" (Latour, 2005, p. 41). Essa derradeira e aparente homenagem, contudo, logo se converte em crítica aberta. Pois tudo indica que a sociologia não seja apenas "tão boa" quanto a antropologia, mas melhor do que ela:

Para o melhor e para o pior, e ao contrário da sua irmã, a antropologia, a sociologia não se satisfez jamais com a pluralidade das metafísicas: ela tem também necessidade de abordar a questão ontológica da unidade desse mundo comum [Latour, 1996, p. 259].

Prisioneira do "culturalismo" e do "exotismo", a antropologia não seria capaz, portanto, de cruzar "esse outro Rubicão, o que conduz da metafísica à ontologia" (Latour, 1996, p. 117), na medida em que reduz as metafísicas que descobre a representações, apelando para o relativismo cultural, que, no final de contas, acaba por pressupor a unidade de um mundo explicável pela ciência. Não se trata, pois, de tentar descrever a "coerência de um sistema de pensamento" (Latour, 1996, p. 90), mas de reconhecer que:

Encontro mais exatidão no meu fermento de ácido láctico se o ilumino com a luz das divindades do candomblé. No mundo comum da antropologia comparada, as iluminações cruzam-se. As diferenças não existem para serem respeitadas, ignoradas ou subsumidas, mas para servirem de chamariz para os sentimentos, de alimento para o pensamento [Latour, 1996, pp. 102-103].

Compreende-se perfeitamente que, ao estudar cientistas, Latour tenha adoptado como método uma atenção, se não exclusiva, ao menos privilegiada das suas práticas. Na medida em que tendemos a conceder à ciência o direito de definir a nossa realidade, o discurso dos cientistas teria, sem dúvida, o poder de impor como pontos de vista os recortes e as categorias que, ao invés, se trata de estudar. No entanto, não é assim que as coisas se passam quando escutamos um "fetichista" ou um adepto do candomblé. Os seus discursos, ao contrário daqueles dos cientistas, tendem a ser considerados falsos ou, em todo o caso, como enunciando uma verdade que não é a nossa; nesse sentido, possuem um potencial de desestabilização dos nossos modos de pensar e definir o real, que, creio, cabe aos antropólogos explorarem. O que significa que a simetria entre a análise das práticas científicas e aquelas dos africanos ou do candomblé só pode ser obtida mediante a introdução de uma assimetria compensatória, destinada a corrigir uma situação assimétrica inicial. Mais ou menos que uma "antropologia simétrica", tratar-se-ia então de elaborar simetrizações antropológicas.

Como vimos acontecer com Pietz — e até certo ponto com Graeber —, as dificuldades sentidas, pelo menos por alguns antropólogos, em relação a Latour parecem derivar dessa sua "solidariedade com o ponto de vista do observador", por meio da qual, há muito tempo, Lévi-Strauss (1958, p. 397) definia a sociologia em oposição à antropologia11. De facto, nas suas conceptualizações acerca do fetiche e do fetichismo, os três autores — cada um a seu modo e por diferentes motivos — evitam a análise cuidadosa das teorias nativas sobre o tema. Consequência, creio, dessa hipótese, implícita ou explícita, de que apenas "a unidade de um mundo comum" pode garantir a possibilidade ou estar na base do interesse por outras sociedades e por outros pensamentos.

Há cerca de quarenta anos, Pierre Clastres (1979, pp. 36-37) sustentava que a antropologia possui um caráter intrinsecamente paradoxal, derivado do facto de, mesmo estando profundamente enraizada na razão ocidental, não poder deixar de estabelecer relações com os saberes dominados, com os quais o Ocidente havia, em princípio, recusado qualquer aliança, com essas "linguagens estranhas", como as denomina Clastres, dos índios, dos camponeses, dos operários — das minorias, enfim. Essas relações funcionam como forças centrífugas que afastam a antropologia das formas dominantes do conhecimento e fazem com que a história da disciplina se desenrole no espaço aberto entre o conhecimento científico dos outros e o diálogo com eles.

Diálogo que, entretanto, está, evidentemente, longe de ser o avesso da ciência. Como demonstraram Isabelle Stengers (2002, pp. 167-176) e Stengers e Chertok (1990, p. 36), a homogeneidade do campo científico não passa de uma quimera. Se as "ciências de laboratório" se constituíram aplicando procedimentos homólogos aos do "julgamento", isso não significa que esta seja a única forma dotada do poder de objectivar um conhecimento científico. Ao julgamento, Stengers opõe a "aprendizagem", condição de possibilidade do que denomina "ciências de campo", entre as quais eu, ao contrário da autora, também incluiria a antropologia12.

Essa perspectiva pluralista sobre a história das ciências convida os antropólogos a substituírem completamente o julgamento pela aprendizagem, partindo, assim, de uma hipótese oposta, ou distinta, daquela dos "mundos em comum": a de que o valor do diálogo com outras formas de pensar e viver se deve apoiar justamente naquilo que estas têm de diferente. As demais secções deste texto serão então dedicadas a esboçar a análise de uma problemática "fetichista" a partir do que os assim denominados têm a dizer sobre o assunto. Análise que não apenas alimenta a esperança de compreender melhor o fenómeno em questão, mas até mesmo de tornar mais interessante a sua utilização "iluminadora" sobre nós mesmos, estabelecendo conexões mais ricas do que aquelas a que nos limitamos quando apelamos para a necessidade de um "mundo em comum". Trata-se, em resumo, e se é que a entendo bem, de seguir uma proposta lançada por Marilyn Strathern:

Ao antropologizar alguns desses temas […] não estou a apelar para outras realidades culturais simplesmente porque quero negar o poder dos conceitos euro-americanos […] O ponto é estendê-los com imaginação social. O que implica perceber como são postos para funcionar no seu contexto indígena e, ao mesmo tempo, como poderiam funcionar num contexto exógeno [Strathern, 1996, p. 521].

 

Os estudos afro-brasileiros hoje

"Encontro mais exactidão no meu fermento de ácido láctico se o ilumino com a luz das divindades do candomblé", escrevia Latour (1996, p. 103). De facto, a par de um romance escrito por um autor indiano, é com um exemplo extraído de uma pequena etnografia sobre o candomblé que o autor trabalha. Mais precisamente, o que chamou a sua atenção sobre essa religião foi uma das suas principais e mais impressionantes características, a saber, o facto de que as suas divindades (orixás, voduns ou inquices, dependo da "nação" de cada terreiro ou templo) são feitas no processo de iniciação. E feitas ao mesmo tempo em que são feitas as pessoas dos próprios iniciados, aqueles que deverão ser possuídos pelas divindades por ocasião de cerimónias específicas. "Fazer o santo" ou "fazer a cabeça" são justamente os nomes pelos quais é conhecido esse complexo ritual de iniciação (Goldman, 1984 e 1985).

O exemplo, percebe-se, parece feito por medida para as teses de Latour: divindades produzidas por humanos. O problema é que quando se passa rápido de mais pelas subtilezas de um mundo conceptual qualquer corre-se sempre o risco de perder algo essencial. Pois, se perguntarmos a um adepto do candomblé se é ele quem faz as divindades, a resposta será certamente negativa13. Por outro lado, se a questão for se esta ou aquela divindade foi feita por alguém, a resposta deverá ser positiva. Isso porque as divindades, como as pessoas, já existem antes de serem feitas — ainda que, claro, não existam da mesma maneira. O ponto crucial, para simplificar muito, é a distinção estabelecida entre os "orixás gerais" (Iansã, Ogum, Omolu), que existem em número finito, e a multiplicidade intensiva dos orixás individuais ou pessoais (a Iansã de tal pessoa, o Ogum dessa outra, o meu Omolu — v. Goldman, 2005, p. 9). Apenas dos segundos se pode dizer que são feitos, os primeiros existindo desde sempre ou desde os tempos míticos. A partir do nascimento, cada um de nós é de um orixá (geral), mas apenas alguns de nós seremos convocados para a iniciação e apenas nesse momento teremos o "nosso" orixá (pessoal). Essa diferença é, geralmente, marcada pela utilização exclusiva do termo português "santo" para designar o objecto da feitura: ninguém diz que fez o orixá, mas que fez o santo — ainda que essas palavras, noutros contextos, possam funcionar como sinónimos (Serra, 1978, pp. 59-60, e 1995, pp. 266-270; Sansi, 2005, p. 152).

Como demonstrou Serra (1978, p. 60), o santo e a filha-de-santo nascem de uma espécie de enlace entre o orixá e a inicianda. O que significa que "fazer o santo" ou "fazer a cabeça" não é tanto fazer deuses, mas, neste caso, compor, com os orixás, um santo e uma outra pessoa. Neste caso, porque não são apenas os humanos que "são" dos diferentes orixás, mas tudo o que existe e pode existir no universo: grupos sociais, animais, plantas, flores, comida, pedras, lugares, dias, anos, cores, sabores, odores… Todos os seres pertencem a determinados orixás e, ao mesmo tempo, alguns devem ou podem ser consagrados, preparados ou feitos para eles.

Desde o começo, os estudiosos do candomblé ficaram confusos com essa modalidade de ontologia. Assim, na última década do século XIX, o primeiro trabalho sobre o tema, da autoria de Nina Rodrigues (1900), significativamente intitulado O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, tinha dificuldades em decidir se o candomblé seria "fetichismo" ou "animismo difuso", ou seja, atribuição de vida a seres inanimados ou a simples escolha de certos objectos como residência material momentânea de um ser espiritual. Além disso, aos olhos do autor (médico legista e psiquiatra, lembremos) a religião dos orixás também aparecia como uma espécie de politeísmo confuso, uma vez que as divindades pareciam, simultaneamente, existir em si mesmas, ser meramente representadas por objectos ou imagens e ser "fixadas" em objectos inanimados. Assim, ao perguntar "a um africano" — certamente com segundas intenções — "se Ogum não era um simples objecto de ferro", ouve como resposta que "sim, um simples pedaço daquele trilho de bonde que ali está é ou pode ser Ogum, mas somente depois de o pai do terreiro o ter preparado" (Rodrigues, 1900, p. 59, itálicos meus).

O ponto aqui, claro, não é "aplicar" esta ou aquela teoria, ou esta ou aquela crítica, do fetichismo ao candomblé, mas, justamente, delinear um confronto entre essas teorias e críticas com aquelas existentes no próprio candomblé. Assim, mais de um século após o trabalho de Nina Rodrigues, e mais de meio século após o aparente abandono dessa temática (considerada etnocêntrica ou exotizante), um novo interesse pelos objectos materiais do candomblé parece ter provocado um certo retorno aos tópicos outrora agrupados sob a confusa e certamente acusatória rubrica de "fetichismo". Uma série de trabalhos recentes parece ter, assim, reintroduzido, em maior ou menor grau, implícita ou explicitamente, o que poderíamos denominar "o problema do fetiche" (ou do fetichismo) no candomblé (v., entre outros, Anjos, 1995 e 2001, Sansi, 2003, 2005 e 2007, Opipari, 2004, e Halloy, 2005).

"A feitura do santo", escreveu ainda Nina Rodrigues (1900, p. 75), "compreende duas operações distintas, mas que se completam: a preparação do fetiche e a iniciação ou consagração do seu possuidor". O orixá é "fixado" ou "plantado", simultaneamente, na cabeça da filha-de-santo e num conjunto de objectos dispostos sobre um tipo de prato. Esses objectos variam muito, mas a ferramenta simbólica do orixá, algumas moedas e ao menos uma pedra, encontra-se em quase todos os conjuntos. A esse conjunto dá-se o nome de "assentamento", espécie de "duplo" da filha-de-santo, que dele deverá cuidar (limpando-o e oferecendo sacrifícios periódicos) ao longo de toda a vida. Ao morrer, o assentamento será "despachado" com ela, ou melhor, com o seu espírito.

Foi justamente o assentamento que fez com que os primeiros estudiosos do candomblé não tivessem dúvidas em considerar essa religião uma forma de "fetichismo", sendo os assentamentos os fetiches. E é curioso que, de entre todos os objectos que compõem um assentamento, as pedras (otãs, otás ou itás) sempre tivessem chamado mais a atenção, como se fosse mais escandaloso atribuir vida a esses seres inanimados por excelência. E é curioso observar também que, de um modo ou de outro, os trabalhos mais recentes sobre o tema também se concentram nas pedras, que constituem, afinal, apenas um dos elementos que compõem os assentamentos. Porque, ainda que elas sejam um dos melhores exemplos desse processo em que algo se torna o que já é, talvez seja, se me for permitida a expressão, uma certa fixação nessas pedras aquilo que explica por que parecemos continuar com a mesma dificuldade que assombrava Nina Rodrigues há mais de cem anos.

Por outro lado, e contra as antigas interpretações que supunham o carácter inteiramente fortuito da descoberta da pedra que fará parte do assentamento de alguém14, Sansi observou com precisão que, mesmo havendo algo de casual na descoberta da pedra que deverá fazer parte do assentamento do santo, essa descoberta é, ao mesmo tempo, uma espécie de encontro, "um hasard objectif, para utilizar a expressão surrealista" (Sansi, 2005, p. 143), determinado, em parte, pelo desejo da própria pedra. É ela que, de alguma forma, "pede" à futura filha-de-santo que a encontre; mas a pedra só pode fazê-lo porque compartilha algo com aquela de cujo assentamento fará parte, a saber, a pertença a um mesmo orixá. Diferentes orixás exigem pedras diferentes: escuras e de ferro para Ogum, porosas para Omolu, de dupla face para Xangô, e assim por diante:

Reconhece-se a agência incorporada nas pedras antes de sua consagração, ainda que essa agência só seja reconhecível no momento certo pela pessoa certa — constituindo uma dádiva do objecto para essa pessoa [Sansi, 2005, p. 143].

Na sua monografia sobre o candomblé no Recife, Arnaud Halloy sublinha a distinção nativa entre pedra "cheche" (comum) e otã propriamente dito, ou seja, uma pedra "que é um orixá" (Halloy, 2005, p. 515). Em relação a esta, "não há nenhuma dúvida: `o otã é o orixá'" (Halloy, 2005, p. 514)15. No entanto, e ao mesmo tempo, diz o autor, "os participantes no culto" dizem que "`o otã representa o orixá'" e que o otã é "a morada do orixá" (Halloy, 2005, p. 515). É o jogo divinatório dos búzios que determina "o estatuto ontológico" das pedras (Halloy, 2005, p. 531), estatuto que, não obstante, só se actualizará na "cerimónia de assentamento", "o acto de investidura que funda a passagem do estatuto de objecto ordinário àquele de objecto cultual" (Halloy, 2005, p. 518). Noutras palavras, a pedra, que só se torna o orixá após o assentamento, já é o orixá desde o começo. O que significa que todas as pedras do mundo se repartem segundo três possibilidades ontológicas aparentemente distintas: pedras comuns, que nunca deixarão de ser o que são; pedras especiais, que podem tornar-se orixás; e pedras que são orixás. Distinção meramente relativa, bem entendido, uma vez que, mesmo "comuns", todas as pedras pertencem a orixás específicos e que entre poder tornar-se orixá e ser orixá existe apenas uma distância a ser suplantada no ritual (Anjos, 1995, pp. 141 e 145).

Nesse sentido, somos todos como as pedras. Também nós podemos ser "comuns", podemos ser destinados à iniciação e podemos, se nos iniciarmos, tornar-nos parcialmente divinos. Como sugeriu Valdina Pinto (1997, p. 54), usando como exemplo a religião dos kimoyo (povo de língua bantu), pode bem ser que um certo "vitalismo", e não o "animismo", esteja no coração do candomblé. Uma espécie de vitalismo generalizado que poderia talvez estar próximo do "modelo Dakota" (Gell, 1998, pp. 247-248), que Lévi-Strauss (1962, pp. 144-145) havia aproximado da filosofia da evolução criadora de Bergson16 e que Gell (1998) aplicou às obras de arte17. Modulações de uma força única denominada axé (similar das bem conhecidas noções de mana e orenda, entre outras) constituem tudo o que existe e pode existir no universo, seguindo um processo de diferenciação e individuação. A unidade dessa força garante que tudo participa em tudo, mas as suas modulações fazem com que haja graus de participação18.

Num vocabulário mais actual, poderíamos dizer que, se somos como as pedras, é porque humanos, pedras e tudo o mais são "pessoas distribuídas" (Gell, 1998), feitos de "conexões parciais" (Strathern, 2005) recíprocas. Ao contrário de Donna Haraway (1991, p. 181), uma filha-de-santo não tem de escolher entre ser uma deusa e um cyborg: ela é ambos ao mesmo tempo.

Na sua monografia sobre os terreiros candomblé em São Paulo, Carmen Opipari propõe a utilização dos conceitos deleuzianos de "virtual" e "actual" a fim de descrever essa "ontologia de geometria variável" (Latour, 1991, p. 116, e 1996, p. 78) característica do candomblé:

Em resumo, o ritual da "feitura" pode ser encarado como um processo no qual o orixá, que só existia de forma virtual, se actualiza. Essa actualização não pressupõe uma individualização no sentido ocidental do indivíduo, quer dizer, uma unificação do ser, mas uma singularização e uma personalização. Em lugar de uma identificação do actor-adepto ao personagem-orixá, vemos substituir-se um bloco indissociável, adepto-santo, que, por meio de um movimento recíproco de "virar", aparece numa performance cujo gestual é reconhecido pelo grupo [Opipari, 2004, p. 276]19.

O único problema, parece-me, é que a autora não concede ênfase suficiente ao facto de que, no pensamento deleuziano, o par virtual-actual se opõe ao par possível-real, característico de um certo kantismo, que, na antropologia, foi consagrado por Lévi-Strauss. Mesmo quando não actualizado, o modo de existência do virtual não é o de uma mera possibilidade, mas já, a seu modo, o de uma realidade. Voltarei a este ponto, pois, como já observei de passagem, o que parece ocorrer com todos os seres convocados pelo candomblé é que, de algum modo, eles já são aquilo que podem ou que devem vir a tornar-se. Além disso, já deve ter ficado claro para o leitor que não há qualquer tipo de "dialéctica" envolvida nesse processo: o virtual não é um "negativo" cujo lento trabalho transformaria as coisas a partir das suas contradições internas. Ao contrário, ele é uma pura positividade que apenas ou ainda não foi actualizada.

 

O candomblé hoje

Nesse sentido, e antes de uma rápida conclusão, gostaria de tornar tudo isto um pouco mais concreto e, ao mesmo tempo, tentar acrescentar um passo aos que vêm sendo dados nos últimos anos na direcção de uma compreensão mais justa da complexidade envolvida nos modos de pensar e viver do candomblé. Para isso apelarei à ajuda dos meus amigos do Terreiro Matamba Tombenci Neto, situado em Ilhéus, uma cidade de média dimensão localizada a sul do estado da Bahia, no nordeste brasileiro, onde há muito tempo desenvolvo o meu trabalho de campo20.

Em 1999 comprei, em Paris, uma pulseira africana como presente para Gilmar, um dos meus amigos do terreiro. Esqueci-me completamente da origem específica da pulseira, mas lembro-me bem de que não provinha de nenhum dos povos que deram origem ao candomblé brasileiro. Escolhi-a porque, além de extremamente bela, era feita de contas vermelhas e brancas, as cores emblemáticas de Xangô, o orixá de Gilmar. Algum tempo depois ele disse-me que estava "preparando a pulseira", ou seja, tratando-a ritualmente com ervas, a fim de que pudesse servir como meio de protecção.

Lembrei-me então de algo que comprara antes de iniciar a investigação no Tombenci, mas quando já pesquisava o candomblé. Em 1982, ao visitar um dos mercados da cidade de Salvador — capital do estado da Bahia, tida como o maior centro da cultura afro-brasileira —, resolvi comprar uma pequena estatueta de Exu — uma divindade muito especial, o mensageiro dos demais orixás, o "Mercúrio do candomblé", como Bastide o descreveu em alguma parte. Com alguma dificuldade, uma vez que não havia nenhuma desse tipo entre as estatuetas das demais divindades, consegui encontrar uma, medindo cerca de 15 centímetros, feita de ferro e, como é comum, extremamente fálica. Levei-a para casa, onde passou a ocupar um lugar na sala do meu apartamento.

Decidi então pedir a Gilmar que também "preparasse" o meu exu a fim de que ele me protegesse. Enviei a minha estatueta para Ilhéus; ao retornar ao campo, encontrei Gilmar, que me avisou de que o "trabalho" estava quase pronto e que agora precisávamos de "baptizar" o exu. "Aliás", perguntou, "como você vai fazer para guardá-lo em casa?" Perante a minha perplexidade, explicou que, uma vez "preparado" ou "baptizado", o exu exigiria oferendas periódicas: azeite de dendê, cachaça, mel e, eventual e especialmente, o sangue de algum animal. Como poderia eu oferecer essas coisas vivendo num apartamento? Seria bem melhor, completou Gilmar, mantê-lo na casa do exu do terreiro, onde, de tempos a tempos, ele poderia "alimentá-lo". Além de ser o sacrificador principal, Gilmar é justamente o responsável pela casa do exu do Tombenci. Dei-me conta então de que o exu se estava a transformar em algo muito diferente do que fora até então.

Como Exu é o mensageiro dos orixás, cada orixá — e, consequentemente, cada filha-de-santo — tem o seu próprio exu, que deve ficar em local separado da divindade. Por isso, todos os terreiros de candomblé possuem uma casa do exu, onde estão "assentados" ou "plantados" todos os exus dos membros iniciados ou em iniciação. Procedemos então ao ritual, durante o qual o exu recebeu as devidas oferendas, incluindo o sangue de um galo degolado sobre a estatueta. Além disso, recebeu um nome, que não posso revelar, uma vez que, conhecendo-o, qualquer um poderia usá-lo contra mim. Apenas Gilmar, a mãe-de-santo do terreiro e eu mesmo conhecemos esse nome, que só devo pronunciar em situações em que a sua ajuda é essencial. Sendo atendido, devo, é claro, retribuir com novas oferendas e sacrifícios.

Perdi, assim, um exu (quase ornamental), mas ganhei o meu exu (protector). De simples pedaço de ferro iconicamente trabalhado, ele converteu-se numa divindade particular — um fetiche, dir-se-ia certamente até ao século XIX. Mas terá sido exactamente isso o que ocorreu? Ou melhor, será este o melhor modo de descrever o que aconteceu? O desejo de comprar o exu, a dificuldade e a insistência em encontrá-lo em Salvador, a ideia, quinze anos mais tarde, de pedir que fosse "preparado", tudo isso não estaria a indicar que, desde o início, havia algo, além de ferro, naquela estatueta? Uma vida que, de algum modo, devia entrelaçar-se com a minha? "Até o ferro pode germinar, até o ferro", como escreveu Lawrence.

Tudo se passa então como se a "preparação" do exu libertasse alguma coisa nele já contida. Ora a teoria nativa da iniciação sustenta que ninguém se inicia no candomblé "porque quer", mas porque a sua iniciação é exigida pelo seu orixá. Este costuma enviar sinais, que vão desde pequenos eventos insólitos e sonhos até crises pessoais mais ou menos violentas. Consultados os búzios, descobre-se que a pessoa deve ser iniciada e procede-se aos rituais. Entre as formas mais comuns de orixás demonstrarem o seu desejo pela iniciação de alguém, encontra-se o que ficou conhecido na literatura afro-brasileira como "santo bruto" e que os fiéis denominam "bolação". Em tese, esta pode acontecer a qualquer momento, mas, via de regra, ocorre durante um ritual público, geralmente quando o adepto escuta as músicas da sua divindade. Sofre então uma possessão tão violenta que rola pelo chão do terreiro em todas as direcções até que, finalmente, pára, deitado no chão de barriga para cima, completamente enrijecido e em estado de aparente catatonia. Pode-se então despertá-lo, de acordo com os procedimentos rituais adequados, advertindo-o de que deve preparar a sua iniciação, ou, em casos extremos, proceder directamente à feitura do santo. Neste caso, é apenas ao despertar que aquele que "bolou" descobrirá que foi iniciado.

Uma das funções da feitura do santo é justamente a domesticação do transe violento e selvagem anterior à iniciação. Desde Nina Rodrigues, contudo, sabe-se que "não são raros os casos […] em que mesmo antes da iniciação o santo já se revela. É o que se chama um santo bruto, ainda não feito" (Rodrigues, 1900, p. 118)21. Desde essa época, praticamente todos os estudiosos das religiões afro-brasileiras seguiram essa ideia: os transes anteriores à iniciação são "brutos" (quer dizer, violentos) porque o santo ainda não foi "feito" (ou seja, construído). O modelo de uma natureza selvagem ou desprovida de forma, que deve ser conquistada, domesticada e organizada por uma cultura criadora ou produtiva, parece permanecer subjacente a todas as descrições e análises do fenómeno. Creio, contudo, que tanto o adjectivo "bruto" como o verbo "fazer" podem significar outra coisa. Três outros episódios etnográficos e uma teoria mais ou menos nativa servirão para nos colocar na pista desse outro significado.

Em Janeiro de 2006, ao presenciar a linda coreografia da Iansã de uma das netas de Dona Ilza, a mãe-de-santo do Tombenci, não consegui conter o comentário de que era impressionante como ela dançava bem, mesmo que ainda não tivesse sido iniciada. Responderam-me que, de facto, "ela está quase pronta, não falta mais quase nada para fazer".

Em Fevereiro de 2007 acompanhei Dona Ilza a uma festa num outro terreiro em Ilhéus. Já bem depois do início do ritual, um homem de pouco mais de 30 anos, muito mal-vestido e de aparência suja e descuidada, entrou no terreiro. Como é muito comum que mendigos e moradores de rua, em geral, entrem em festas de candomblé em busca de um pouco de comida, bebida e diversão, imaginei ser esse o caso. No entanto, quando os atabaques começaram a tocar para Oxumarê (o orixá que é a cobra de duas cabeças que é também o arco-íris que faz a ligação essencial entre a terra e o céu), o homem foi possuído e executou uma das mais lindas danças que já tive o prazer de presenciar, encolhendo o seu corpo até quase tocar no chão e então erguendo-se rápida e sinuosamente, num movimento que em tudo evocava o de uma serpente. Comentei o facto no dia seguinte com Dona Ilza; certa de que o dançarino ainda não havia sido iniciado, ela respondeu-me que, de facto, havia sido muito bonito, que ele dançava muito bem, mas que ainda seria preciso "lapidar" um pouco — no sentido, claro, em que se lapida uma pedra preciosa em estado bruto.

O Matamba Tombenci Neto é um terreiro muito antigo. Foi fundado em 1885 pela avó materna da actual mãe-de-santo e a sua organização repousa sobre os seus catorze filhos carnais e a respectiva parentela, além dos iniciados e de muitos amigos. Um destes é Jamilton Galdino Santana (conhecido por todos como Jaco), artista plástico, que se dedica à elaboração de lindíssimos móveis rústicos ecológicos. Nascido em Caravelas, pequena cidade situada no extremo-sul baiano, mudou-se para Ilhéus em 1996 e logo se aproximou do Tombenci, ajudando, com a sua habilidade, na elaboração de diversos objectos utilizados no culto. O mais impressionante de todos, sem dúvida, é o "trono" que fabricou para a mãe-de-santo do terreiro. Esse trono foi recortado com uma moto-serra no tronco de uma antiga jaqueira, derrubada quando a região em que se situa o terreiro começou a ser urbanizada. Antes disso, e durante muitos anos, a jaqueira fora utilizada como local de sacrifício, absorvendo assim a força vital dos animais sobre ela abatidos. Após ter sido derrubada, Dona Ilza fez questão de preservar o tronco, que, finalmente, foi transformado por Jaco num trono, no qual ela se senta durante as festas públicas do Tombenci. Os restos da madeira cortada durante a elaboração do trono foram distribuídos pela mãe-de-santo entre membros do terreiro, em função do facto de concentrarem muito axé e, consequentemente, serem capazes de ajudar aqueles que os conservassem em casa.

Jaco Santana possui uma teoria muito elaborada acerca da natureza do trabalho que executa. Ele explica que, no começo, tem apenas uma vaga ideia do que deseja fazer. Já que não utiliza madeira industrial nem derruba árvores, começa então a procurar na mata aquilo de que precisa, recolhendo cada pedaço que imagina poder servir. Com o tempo, esses pedaços vão-se encaixando por meio de um diálogo estabelecido pelo artista com a matéria que deve trabalhar. Trata-se, diz Jaco, de descobrir, na madeira, a forma que o seu estado actual oculta e que ele lhe deve devolver.

Essa formulação, sabe-se, é extremamente comum entre escultores, sejam eles do sul baiano, inuit ou renascentistas. Sempre mais encantada com a pintura do que com a escultura, a antropologia não parece ter prestado atenção a esta que é, sem dúvida, uma teoria alternativa do processo de criação. Há mais de cem anos, entretanto, Freud já observava:

A maior antítese possível […] que o grande Leonardo da Vinci resumiu, com relação às artes, nas fórmulas per via di porre e per via di levare. A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di porre, pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali; já a escultura, ao contrário, funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida [Freud, 1904, p. 270].

Creio que nem mesmo Alfred Gell, que abordou, em Art and Agency, os objectos tridimensionais, conseguiu escapar do modelo pictórico que parece dominar a antropologia da arte. A sua teoria da agência, por mais interessante e original que seja, não incorpora essa dimensão crucial das artes que operam por subtracção e não por adição. Por outro lado, deve ficar claro que a distinção de Da Vinci não me parece ligada a uma operação apenas material, mas, sobretudo, a um processo de criação que pode também ser conceptual. Assim, como escreveu Deleuze (1984, p. 57), "uma série de coisas a que se pode chamar "clichês" já ocupa a tela antes do começo":

É um erro acreditar que o pintor esteja diante de uma superfície em branco (S). O pintor tem várias coisas na cabeça (S). Ora tudo o que ele tem na cabeça ou ao seu redor já está na tela, mais ou menos virtualmente, mais ou menos actualmente, antes que ele comece o trabalho. Tudo isso está presente na tela sob a forma de imagens, actuais ou virtuais. De tal forma que o pintor não tem de preencher uma superfície em branco, mas sim esvaziá-la, desobstruí-la, limpá-la [Deleuze, 1984, p. 57].

Noutros termos, porre e levare não constituem tipos, mas duas atitudes possíveis frente ao processo de criação22.

Sem dúvida, como observou Sansi (2005, p. 142), o candomblé também é uma forma de arte — e isso não apenas porque exige talentos e dons especiais, mas também porque cria objectos, pessoas e deuses. Trata-se, contudo, é necessário acrescentar, de uma forma de arte muito particular, uma vez que todos esses entes já existem antes de serem criados, o que faz com que o processo de criação envolvido só possa ser entendido como a revelação das virtualidades que as actualizações dominantes contêm, no duplo sentido do termo. Se quiséssemos emprestar um ar ainda mais nietzschiano a essa religião dionisíaca, poderíamos dizer talvez que se trata de se tornar o que se é — sem que isso implique, é claro, nenhuma ideia de uma identidade substancial a ser descoberta ou de uma identidade originária à qual retornar. Numa formulação estética ou mais directamente antropológica, poderíamos dizer também que se trata da criação de novos seres por meio de recortes efectuados num mundo pleno onde nada parece faltar. Mundo onde, ao contrário, tudo está de algum modo em excesso. Lembremos que, como bem demonstrou Serra (1978, pp. 310-312), o problema da iniciação no candomblé é justamente o controlo de forças incrivelmente poderosas e a sua canalização para os objectivos do culto, sem que isso implique a redução da sua potência.

 

Conclusão

Na sua tentativa de demonstrar a novidade representada pela noção de fetichismo, Pietz (1987, pp. 36-37), no segundo dos ensaios que dedicou ao tema, sustenta que a genealogia da noção não remete para a de idolatria. Mais do que isso, a dificuldade por ela oposta aos modelos cristãos medievais proviria do facto de não se deixar enquadrar em nenhum dos três modelos de engendramento de seres e coisas reconhecidos pela teologia: nem a noção de "criação" (sempre divina) nem a de "geração" (humana) serviam para explicar a sua génese. Mas tão-pouco o outro modo de os humanos engendrarem coisas, a "manufactura", parecia aplicável, uma vez que o fetiche era tido como distinto dos ídolos, ou seja, das representações manufacturadas das falsas divindades. É verdade, prossegue Pietz (1987, pp. 27-28), que Santo Agostinho reconhecia que os actos humanos exclusivamente dependentes do livre arbítrio se aproximavam da criação, mas este, é claro, não poderia ser o caso do fetiche, elaborado por pessoas, às quais, justamente, se negava esse livre arbítrio.

Se escutarmos, entretanto, aqueles, outrora acusados de fetichistas, com um pouco mais de atenção do que aquela que lhes dedicaram Pietz, Latour ou Graeber, podemos talvez aprender com eles outras formas de pensar o processo de criação e a agência em geral, bem como ter acesso a outras modalidades de ontologia23. O problema, contudo, é justamente até onde somos capazes de realmente escutar o que um fetichista, ou qualquer "nativo", tem a dizer. A única resposta, como observou Latour (2005, p. 48), é "o máximo possível", quer dizer, até sermos "postos em movimento pelos informantes"24. Estes, aliás, nunca são "informantes", mas actores dotados de reflexividade própria, ou seja, teóricos, com os quais podemos e devemos tentar dialogar e aprender. A capacidade de suportar a palavra nativa, levá-la efectivamente a sério e permitir que conduza a reflexão antropológica até ao seu limite parecem-me os únicos critérios de qualidade disponíveis na nossa disciplina — qualidade, é evidente, infinita e interminavelmente aperfeiçoável.

No belo texto que dedicou ao "fetiche no Atlântico lusófono", Roger Sansi parece chegar a uma conclusão em tudo semelhante à minha:

O evento no qual o fetiche é "encontrado" não é percebido pela pessoa como arbitrário, mas necessário. O valor encontrado no objecto não é atribuído arbitrariamente pela pessoa, mas é visto como um valor imanente do objecto, algo de incipiente que estava sempre lá esperando por essa pessoa em particular, algo que ela reconhece. É como se a coisa se oferecesse à pessoa: como se ambas sempre tivessem pertencido uma à outra. Nesse sentido, este é um processo de troca mediada entre a pessoa e um valor oculto que se está a oferecer à pessoa [Sansi, 2007, pp. 32-33].

No entanto, a frequência da voz passiva talvez seja reveladora de uma distância entre as nossas posições. Pois Sansi parece supor que há algo além da percepção dos agentes, algo que só a agência do cientista social é capaz de conhecer:

Os actores sociais percebem a conjuntura como a repetição das estruturas tradicionais, quando de facto, ao serem repetidas, essas estruturas mudam [Sansi, 2007, p. 32, itálicos meus].

Outro texto de Sansi leva esta posição ainda mais adiante25:

É certo, porém, que para os sujeitos históricos nem sempre é fácil perceber a historicidade dos acontecimentos. No caso do candomblé, vimos que os milagres ou as revelações não são percebidos como inovações, mas como redescobertas de algo esquecido ou não reconhecido. Revelações que permitem entender o passado noutros termos — mais profundos, talvez mais autênticos. Talvez isto se deva à ideologia das trocas mediadas, do dom, que predomina em instituições como o candomblé e que prefere ver a inovação como reprodução. Neste caso, a função dos antropólogos seria reconhecer a historicidade dessas revelações, ver como são, efectivamente, objectivações de categorias sem precedentes: ver como, ao querer reproduzir os valores tradicionais do candomblé, este se transforma, incorporando a história do seu país e da sua gente [Sansi, 2009, p. 155, itálicos meus].

Estaríamos então de volta a uma das acepções originais da noção de fetichismo, aquela que acabou na origem da teoria marxista da ideologia? Ao menos em parte, os agentes sociais desconheceriam necessariamente o que fazem, cabendo apenas ao cientista social atingir os fundamentos da vida em sociedade? Sansi pode então sustentar que, a despeito do que possam pensar os envolvidos, a característica central do fetiche é sua "historicidade" — e é nesse sentido que conclui que "práticas, objectos e espíritos supostamente `sincréticos' são transposições de histórias pessoais e colectivas, incorporadas nas práticas do candomblé. O sincretismo não é outra coisa senão história" (Sansi, 2009, p. 142)26.

Assim, mesmo reduzida a uma espécie de mínimo necessário, a ilusão nativa permanece e continua a caber ao cientista social esclarecê-la. A estratégia que procurei seguir é um pouco distinta. Como Latour (1996, pp. 102-103), não creio que as diferenças "existam para serem respeitadas, ignoradas ou subsumidas", mas, ao contrário dele, tão-pouco acredito que basta defini-las como "chamariz para os sentimentos, alimento para o pensamento" (Latour, 1996, pp. 102-103). O discurso e a prática "fetichistas", por exemplo, devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar o nosso pensamento (e, eventualmente, também os nossos sentimentos). Desestabilização que incide sobre as nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos. Assim, se escutarmos atentamente o que dizem os "fetichistas", podemos — por exemplo, e em lugar de tentar explicá-los por uma história de que não têm consciência e que apenas nós conhecemos — agenciar o seu discurso com a problematização a que Deleuze e Guattari submetem a história e à qual me referi no início deste texto.

Nesse sentido, é claro que a descoberta do fetiche, o encontro da pedra, a determinação do orixá, podem ser entendidos como acontecimentos quando encarados do ponto de vista da história; mas esses eventos também podem ser lidos como a pura actualização, no tempo histórico e no mundo extensivo e molar, de virtualidades intensivas e moleculares em perpétuo devir: "a história", lembremos, "somente traduz em sucessão uma coexistência de devires" (Deleuze e Guattari, 1980, p. 537). Por isso, a história é sempre contada como variação de perspectivas face a um referencial fixo, em relação ao qual apenas o ponto de vista muda ("só existe história da percepção" — Deleuze e Guattari, 1980, p. 428), enquanto "aquilo com que se faz a história é antes a matéria de um devir, não de uma história" (Deleuze e Guattari, 1980, p. 428).

É por essa mesma razão que "internalismo" e "externalismo" — as duas perspectivas para as quais, como vimos, costumam ser remetidos os estudos sobre as religiões afro-brasileiras — são igualmente insuficientes. Pois, se de um ponto de vista histórico, ou molar, tudo é de algum modo "externo" ou "interno", do conjunto de virtualidades que compõem a dimensão molecular da existência não se pode dizer nem uma coisa nem outra: como também vimos, "tudo coexiste em perpétua interacção" e é preciso "levar em conta a coexistência dos elementos" (Deleuze e Guattari, 1980, p. 536).

Na mesma direcção que Sansi, e após seguir de perto o discurso nativo sobre a iniciação no candomblé, Opipari vê-se obrigada a assinalar:

Longe de ser considerado sob um aspecto essencialista ou ontológico, como "força interior" que o adepto do candomblé adquiriria e que aumentaria à medida do seu desenvolvimento na prática ritual, essa potência criadora deve evidentemente ser tomada sob um aspecto material, sócio-histórico, como motor da fabricação social e simbólica das relações humanas [Opipari, 2004, pp. 368-369, itálicos meus].

Dada a perspectiva deleuziana adoptada pela autora, tudo indica que ela compartilhe com François Zourabichvili (2004a) a hipótese de que não é possível falar em ontologia no pensamento de Deleuze, uma vez que a sua "orientação fundamental" seria a "extinção do ser em benefício da relação (ou ainda do devir)". Noutros termos, é de facto possível opor ontologia e história (Opipari) ou ontologia e devir (Zourabichvili). Mas apenas quando definimos a primeira, ao modo de Latour, como unidade do mundo ou do ser, ou seja, de modo extensivo. Se, ao contrário, entendermos por "ontologia" justamente a multiplicidade intensiva de todas as virtualidades, então, como escreveu Deleuze (1999, p. 217), "o devir é o ser […] o devir e o ser são uma mesma afirmação"27. Ora, como acredito que uma das dimensões centrais do mundo conceptual do candomblé é justamente um universo em que o ser e o devir não se opõem, foi nesse sentido — ainda que de forma um tanto selvagem — que utilizei o termo "ontologia" e os seus derivados ao longo deste texto.

Dona Ilza, a mãe-de-santo do Tombenci, diz, como vimos, que a iniciação no candomblé é um problema de "lapidação", mais que de produção. Diz também que a relação entre filha-de-santo e orixá é de participação mútua, não de propriedade — e isso ainda que ela se refira ao seu santo como "minha Iansã" e que também diga que ela própria "é de Iansã". Nessa direcção, já deve ter ficado claro que a expressão "santo bruto", utilizada para designar o orixá antes da iniciação, não deve ser inteiramente compreendida no sentido de que se trata de um santo "violento", manifestando-se numa pessoa passiva, mas no sentido em que ambos, santo e pessoa, constituem uma espécie de pedra preciosa à espera de ser descoberta e lapidada. Antes da iniciação, a futura filha-de-santo é mais um diamante em bruto do que pura força selvagem ou matéria inerte à espera da forma que lhe dará vida — se aceitássemos esse "modelo hilemórfico", que supõe uma implausível exterioridade entre forma organizadora e matéria inerte e que Deleuze e Guattari (1980, p. 457) denunciam com razão. Trata-se, percebe-se, de uma forma de pensar o processo criativo distinta daquela que concede um lugar central ao modelo da produção e da propriedade — modelo que, como demonstrou Strathern (1996, p. 518, e 1988, pp.18-19, passim), constitui a "metáfora-raiz" que sobrecodifica os nossos modos de pensar e de estabelecer relações.

As teorias e práticas nativas envolvidas na criação de seres, pessoas e deuses que, no entanto, já existem, determinam um mundo. Mas não o determinam de acordo com o modelo judaico-cristão da criação ex nihilo, no qual o criador é necessariamente superior à criatura. De facto, essas teorias e práticas parecem remeter antes para conceitos como o de produção desejante, de Deleuze e Guattari (1972), que se propõe compreender a produção como um processo ininterrupto de cortes em fluxos, não de modelagem de conteúdos. Ou para o processo de construção da pessoa na Melanésia, tal qual analisada por Strathern (1988), em que se procede mais por subtracção do que por adição. Ou ainda para a máxima latouriana (Latour, 1996) segundo a qual somos sempre "ligeiramente superados" pelo que criamos.

E não, não creio que essas (e outras) conexões, ainda que necessariamente parciais, sejam arbitrárias ou forçadas. Pois essas teorias e práticas, sejam elas filosóficas, antropológicas ou nativas, são a consequência de perspectivas que se recusam a imaginar um universo onde coisas e seres são criados do nada e onde, por mais que se produza, o vazio e a falta não cessam de existir. Essas teorias e práticas partem, ao contrário, do princípio de que lidamos com um mundo pleno, onde o facto de nada faltar não significa que nada haja a fazer — muito pelo contrário.

 

 

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Notas

1 V., entre outros, Capone (2004, pp. 7-8 e 13-34), Dantas (1989, pp. 19-26), Fry (1989, pp. 13-17) e Maggie (2001, pp. 13-16). Para uma visão crítica, v. Serra (1995, pp. 44-75) e Banaggia (2008). Para simplificar muito, denomino aqui "religiões afro-brasileiras" um conjunto algo heteróclito, mas certamente articulado, de práticas e concepções religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e que, ao longo da sua história, incorporaram em maior ou menor grau elementos das cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeia. Evidentemente, esses elementos transformam-se à medida que são combinados, e vice-versa. Sobre essas religiões pode dizer-se, quase à letra, o que Guattari escreveu sobre o jazz (semelhança já observada por Opipari, 2004, pp. 14-15).

O jazz nasceu a partir de um mergulho caósmico, catastrófico, que foi a escravização das populações negras nos continentes norte e sul-americano. E, depois, por meio dos mais residuais ritornelos dessa subjectividade negra, houve uma conjunção de ritmos, de linhas melódicas, com o imaginário religioso do cristianismo, com dimensões residuais do imaginário das etnias africanas, com um novo tipo de instrumentação, com um novo tipo de socialização no próprio seio da escravidão e, em seguida, com encontros intersubjectivos com as músicas folk brancas que estavam por lá; houve então uma espécie de recomposição dos territórios existenciais e subjectivos no seio dos quais não só se afirmou uma subjectividade de resistência por parte dos negros, mas que, além do mais, abriu linhas de potencialidade para toda a história da música, e não unicamente para a história da música norte-americana — lembro que Debussy e Ravel, os maiores músicos ocidentais, foram extremamente influenciados por esse ritmo e por essa música de jazz. Temos aí, portanto, o exemplo de um mergulho caósmico, no abandono quase total da escravidão negra, que enriqueceu os mais elaborados universos musicais (Guattari, 1993, p. 120).

2 Bastide (1971, pp. 35-36) foi o primeiro — e talvez o único — a levantar a questão de como conciliar perspectivas etnográficas e sociológicas no estudo das religiões afro-brasileiras. Ou melhor, como conciliar a necessidade de levar a sério o que dizem os fiéis com a tentativa de construir um quadro mais amplo dessas religiões. O facto de ter separado as perspectivas em dois livros distintos (Bastide, 2000 [1958] e 1971 [1960], respectivamente) assinala que o problema não foi resolvido — se é que tem solução.

3 Entre essas monografias contam-se as de Anjos (2006), Cardoso (2004), Corrêa (2006 [1992]), Halloy (2005), Iriart (1998), Johnson (2002), Opipari (2004), Sansi (2003), Segato (1995) e Wafer (1991), a par de outras, um pouco mais antigas, como as de Cossard (1970 e 2006), Leacock (1972), Lima (2003 [1977]) e Serra (1978). Sem dúvida, elas fornecem hoje uma base etnográfica e conceptual bem mais ampla e mais sólida do que aquela de que se dispunha há alguns anos para qualquer tentativa de realizar a proposta de retomar "em bases mais seguras, com um novo sentido crítico, o projecto de Roger Bastide, de um estudo sinóptico das religiões surgidas na diáspora negra" (Serra, 1995, p. 10).

4 Como escreveu recentemente Eduardo Viveiros de Castro (2007, p. 116), "o devir é, literalmente, o que escapa tanto à mimesis — a imitação e a reprodução — quanto à memesis — a memória e a história. O devir é amnésico, pré-histórico, anicónico e estéril; ele é a diferença na prática".

5 Como escreveu Dianteill (2002, p. 126):

A dinâmica da expansão e transformação dos cultos locais nos territórios yoruba de facto forneceu um modelo para os escravos dessa região. Assim, não há base real para o espanto expresso pelo primeiros antropólogos cubanos […] em relação ao "sincretismo" afro-cubano, uma vez que essa natureza compósita já era característica da religião dos yoruba antes da sua deportação.

6 Estendo aqui para a sociologia um procedimento adoptado por Eduardo Viveiros de Castro (no prelo), que aplicou a observação de Gell sobre a magia e a física ao domínio do parentesco e da biologia: "O ponto de Gell pode ser transposto analogicamente para o `parentesco' […] Parentesco é o que se tem quando se procede sem uma teoria biológica da relacionalidade." Neste sentido, como me parece concluir o autor, o parentesco e a magia são, de facto, partes, aspectos ou dimensões dos mesmos mundos conceptuais.

7 Como lembra Bob Scholte (1984, p. 963), se é verdade que a antropologia sempre procurou derrubar as certezas da razão ocidental sobre a sua superioridade face à dos outros, não o é menos que ela tende sempre a esquecer que "somos nós quem definimos o que o outro é ou não".

8 "Aqui e em todo este trabalho abordo a história das teorias do fetichismo do ponto de vista do que entendo ser o materialismo dialectico" (Pietz, 1988, p. 109).

9 Esta parece ser, aliás, a posição de Joseph Dupuis, que, escrevendo em 1824 a partir da sua experiência entre os ashanti, sustentava que "fetiche é evidentemente uma corruptela do português, provavelmente introduzida na região pelos seus primeiros exploradores e adoptada pelos africanos a fim de adequar coisas ligadas à religião, direito ou superstição à compreensão dos seus visitantes" (cit. in Pietz, 1987, p. 116).

10 V. também Latour (1999, cap. 9).

11 Como escreveu Lévi-Strauss (1958, pp. 396-397):

Entretanto, permanece verdade que, em todos os casos, a sociologia é estreitamente solidária com o observador […] Essa atitude não é menos real […] na sociologia de síntese ou de tendência filosófica. Aqui o cientista estende, sem dúvida, a sua investigação a porções mais vastas da experiência humana; ele pode mesmo dedicar-se a interpretá-la na sua totalidade. O seu objecto já não se limita ao observador, mas é sempre do ponto de vista do observador que ele empreende ampliá-la. No seu esforço para produzir interpretações e significações, é, acima de tudo, a sua própria sociedade que ele pretende explicar; são as suas próprias categorias lógicas, as suas próprias perspectivas históricas que ele aplica ao conjunto. Que um sociólogo francês do século xx elabore uma teoria geral da vida em sociedade, ela aparecerá sempre e do modo mais legítimo (pois essa tentativa de distinção não implica da nossa parte qualquer crítica) como a obra de um sociólogo francês do século xx. Enquanto o antropólogo, colocado diante da mesma tarefa, se esforçará intencional e conscientemente também (e não é de modo algum certo que será bem sucedido) em formular um sistema aceitável tanto para o indígena mais longínquo quanto para os seus próprios concidadãos ou contemporâneos. Enquanto a sociologia se esforça para fazer a ciência social do observador, a antropologia procura, por sua vez, elaborar a ciência social do observado, quer procurando atingir na sua descrição de sociedades estranhas e longínquas o ponto de vista do próprio indígena, quer ampliando o seu objecto até incluir a própria sociedade do observador, tentando, porém, desenvolver um sistema de referência fundado na experiência etnográfica e independente tanto do observador como do seu objecto.

12 Stengers distingue as ciências de campo tanto das de laboratório quanto daquelas em que os objectos se interessam pelas questões que lhes são colocadas. É nesse último grupo, claro, que ela aloca as chamadas ciências humanas, ainda que elas não sejam as suas únicas ocupantes. Adopto aqui uma versão simplificada do esquema de Stengers, opondo apenas as ciências cujo procedimento se baseia no julgamento das que se baseiam na aprendizagem, dentro das quais incluo, sem dúvida, a chamada antropologia social ou cultural (v. Stengers, 2002, p. 176, e 2003).

13 Assim, uma grande mãe-de-santo baiana garantiu a Donald Pierson (1971 [1942], p. 320) que "o africano não adora coisas feitas pela mão humana. Adora a natureza. O que é uma pedra (fetiche)? É um mineral, não é? Não foi feita por mão humana."

14 Prolongamento, aliás, do que Pietz (1985, p. 8) denomina "teoria do primeiro encontro", que desde o século xvi sustentava que os fetiches africanos seriam encontrados por acaso, contingência ou capricho — traços então definidos como característicos da ordem social ou da personalidade africana.

15 No mesmo sentido em que Martin Holbraad (2003, p. 51) argumenta que o "ídolo consagrado" recebido pelos adivinhos cubanos deveria ser denominado "`divindade-ídolo', uma vez que a parafernália consagrada […] não é vista como uma `representação' da divindade, mas como a própria divindade".

16 "Cada coisa, ao mover-se, num momento ou noutro, aqui e lá, pára por um tempo […] Assim, o deus parou. O sol, tão brilhante e magnífico, é um lugar em que ele parou. A lua, as estrelas, os ventos, é onde ele esteve. As árvores, os animais, são todos os seus pontos de parada, e o índio pensa nesses lugares e para eles dirige as suas preces, para que estas alcancem o local em que o deus parou e obtenham ajuda e bênção" (Dorsey, cit. in Lévi-Strauss, 1962, p. 144).

17 "O que estou a propor, consequentemente, poderia ser denominado um modelo `Dakota' da obra de um artista; cada trabalho […] é um lugar onde a agência `pára' e assume uma forma visível" (Gell, 1998, p. 250).

18 Como escreveu Roger Bastide (2000, p. 295), existe "toda uma série de graus de participação, desde as associações simples até às identidades".

19 V. Anjos (2006) para uma das mais criativas conexões entre as cosmologias afro-brasileiras e a filosofia de Deleuze e Guattari; v. também Ochoa (2007).

20 Na verdade, após estudar o candomblé em 1983, retornei a Ilhéus, em 1996, para estudar a política (v. Goldman, 2006). A partir de 2006 retomei a investigação sobre o candomblé.

21 "A feitura do santo é a função inicial dos babalaôs. Como já deixei assinalado, para o negro fetichista qualquer objecto natural pode ser adorado ou cultuado como um orixá, mas é preciso que o pai-de-santo o prepare. Há, é verdade, manifestações espontâneas de um determinado orixá, mas nestes casos trata-se, para os negros, de um santo bruto. É preciso prepará-lo" (Ramos, 1934, p. 61).

22 Foi a leitura de Stengers e Chertok (1990, p. 57-59) que chamou a atenção para a observação de Freud. Para os autores, contudo, o ponto relevante é a utilização que a psicanálise fez desta oposição para desqualificar as técnicas hipnóticas, que procederiam por sugestão, ou seja, per via di porre, em benefício da livre associação, que procederia sempre por extracção, quer dizer, per via di levare. Mas foi Ovídio de Abreu — a quem agradeço imensamente — quem me chamou a atenção para a dimensão propriamente conceptual da distinção. Como ele me fez ver, Deleuze está a referir-se ao pintor Francis Bacon, mas é óbvio que a "operação" isolada é análoga àquela do teatro de Carmelo Bene, que escreve as suas peças a partir da eliminação das personagens que dominam a trama numa peça já existente, operação que Deleuze denominou "minoração" ou "subtracção" (Deleuze e Bene, 1979; v. também Abreu, 2003).

23 Esta também é, parece-me, a posição de Alfred Gell. Nas poucas páginas directamente dedicadas ao tema do fetiche, Gell (1998, pp. 59-62) insiste na necessidade de levar em conta as teorias nativas para compreender o fenómeno. Além disso, sustenta que a agência do fetiche também depende do facto de ele ter sido "feito", ou seja, de ter sido paciente de uma outra agência. O único problema, parece-me, consiste numa certa indecisão entre estender ou transformar o conceito de relações sociais a fim de permitir que incluam os objectos (mas também os animais e os espíritos) e reduzir esses seres às relações sociais travadas sempre entre humanos. Assim, os objectos ora aparecem directamente como "pessoas" (Gell, 1998, p. 7), ora como "substitutos de pessoas" (Gell, 1998, p. 5), ora "na vizinhança" das relações sociais (Gell, 1998, p. 7). Da mesma forma, a teoria da agência de Gell parece oscilar entre uma concepção da pessoa como "cebola" (Gell, 1998, pp. 139-140), ou seja, desprovida de um núcleo substancial e inteiramente composta por relações, e uma que se assemelha ao que Stengers e Chertok (1990, p. 268) denominaram "alcachofra": sob as diversas camadas de relações sociais, um núcleo humano seria sempre encontrado. É por isso que não creio que as críticas a Gell devam insistir no facto de que, ao reconduzir os objectos às relações sociais, eles perderiam a sua "materialidade". O ponto, bem pelo contrário, seria levar a noção de relações até aos objectos e repetir, com Gabriel Tarde (1999, p. 58), que "qualquer coisa é uma sociedade, qualquer fenómeno um facto social".

24 Sobre este ponto, v. também Favret-Saada (1990, pp. 4-5).

25 Texto que o autor gentilmente colocou à minha disposição e que será publicado neste mesmo número da Análise Social. Para além de diferenças menores, ele compartilha com o meu trabalho uma série de pontos comuns. O que serve, creio, como uma espécie de contraprova das possibilidades abertas pela investigação das teorias do mundo, da agência e do processo de criação nas religiões afro-brasileiras. Como me observou o próprio Sansi em comunicação pessoal, talvez já seja possível falar num "pequeno e humilde paradigmatic shift nos estudos afro-brasileiros".

26 Uma das armadilhas do dispositivo fetichista ocidental, historicamente constituído a partir dos séculos xv e xvi, parece ser essa capacidade de atrair para o seu interior aqueles mesmos que, supostamente, dele se querem livrar. Assim, a interessante crítica que Wyatt MacGaffey endereça a Pietz começa por defender a necessidade de analisar o fetichismo à luz das "teorias indígenas" (MacGaffey, 1994, p. 123), prossegue ressaltando o carácter conceptual das categorias nativas (MacGaffey, 1994, p. 128) e a inadequação das categorias ocidentais para dar conta delas (MacGaffey, 1994, p. 128), mas conclui que a relação entre a religião e a sociedade no Congo "é similar àquela que Marx supunha existir entre o capitalismo e a `economia política' como a sua `religião'" e que o "`fetichismo é sobre as relações entre pessoas, mais do que entre os objectos que medeiam e disfarçam essas relações", exprimindo de forma "oblíqua relações reais de poder entre os participantes no ritual" (MacGaffey, 1994, p. 130). Muito barulho por nada.

27 Ou, como escreveu o próprio Zourabichvili (2003), uma afirmação da "multiplicidade como coordenada ontológica originária" (v. também Zourabichvilli, 2004b).

 

* PPGAS, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional, Quinta da Boa Vista, s. n., São Cristóvão, Rio de Janeiro, Brasil, 20940-040. e-mail: marcio.goldman@gmail.com

** Uma primeira versão deste texto foi apresentada em Setembro de 2007 nos colóquios "An epistemology for anthropology. International symposium" (orgs. Christina Toren e João supplementary workshop" (orgs. Christina Toren e Peter Gow, em Saint Andrews). Agradeço aos organizadores e participantes nos dois encontros. O artigo é directamente tributário dos encontros da Rede e Laboratório de Antropologia Simétrica Abaeté realizados, desde 2005, todas as sextas-feiras, à tarde, no PPGAS-Museu Nacional-UFRJ. Agradeço a todos os participantes nesses encontros, em especial a Eduardo Viveiros de Castro, com quem os coordeno, e que, além disso, dividiu comigo o curso "Introdução a uma antropologia pós-social: redes, multiplicidades e simetrizações" (ministrado em 2006 no mesmo PPGAS), a que este trabalho também deve muito. Este trabalho é também devedor do curso "Simetria, reversibilidade e reflexividade na antropologia contemporânea" (ministrado, também em 2006, no PPGAS-USP). Agradeço a todos os alunos e professores que participaram nesses cursos, em especial a José Guilherme Magnani, co-responsável pelo segundo. Agradeço, igualmente, a Antonia Walford, Gabriel Banaggia, Jaco Santana, Júlia Sauma, Martin Holbraad, Roger Sansi e Otávio Velho pela troca de ideias a respeito de diversos tópicos aqui explorados e pela ajuda em pontos específicos. A Tânia Stolze Lima também agradeço por isso, pela revelação do lindo trecho de Lawrence citado adiante — e por tudo o mais. A Dona Ilza, Gilmar, Gilvan e Marinho Rodrigues agradeço o pouco que sei sobre o candomblé. Evidentemente, sou o único responsável pelos inúmeros defeitos que o texto contém.

 

 

 

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