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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.189 Lisboa out. 2008

 

Rui Canário (org.), Educação Popular e Movimentos Sociais, Lisboa, Educa, 2007, 169 páginas.

 

Este livro reúne as comunicações apresentadas no I Seminário Luso-Brasileiro sobre Educação Popular e Movimentos Sociais, realizado em Julho de 2006 no âmbito do projecto "Formação de Adultos em Portugal, Educação Popular e Movimentos Sociais", e esboça um retrato comparativo e crítico sobre a formação de adultos no mundo luso-brasileiro.

A estrutura da obra permite antever que os verdadeiros protagonistas deste seminário são, por um lado, os movimentos sociais brasileiros — analisados em quatro dos seis capítulos — e, por outro lado, a educação rural — sendo cinco dos capítulos dedicados especificamente ao tema. Apenas o primeiro capítulo, da autoria de Rui Canário, foge a esta tendência, discutindo a pertinência heurística dos conceitos de "emancipação social" e "autonomia" na análise dos movimentos sociais, utilizando como exemplo "a educação e o movimento popular do 25 de Abril". De acordo com o autor, os movimentos populares pós-revolucionários constituem-se como verdadeiras escolas de emancipação social, ao obrigarem à formação de múltiplas formas organizacionais de reivindicação social e representarem em simultâneo uma "explosão de autonomia" (p. 17), colocando o indivíduo como central da sua própria educação. Para ilustrar esta perspectiva considera a "situação limite" do "encarceramento político" (p. 31) no Tarrafal, onde os prisioneiros, apesar do contexto repressivo que os rodeia, desenvolvem mecanismos de autonomização e emancipação, chegando a criar um sistema de ensino/aprendizagem próprio. No entanto, Rui Canário exagera na aplicação destes conceitos, negligenciando os limites da resistência dos prisioneiros à sua condição. Para tornar a sua reflexão mais consistente, o autor deveria utilizar conceitos, como, por exemplo, o de "instituição total" proposto por Erving Goffman (1968), que permitissem enquadrar a autonomia e a emancipação em contextos de coacção e restrição comportamental.

Relativamente à educação popular no Brasil, João Francisco de Sousa (p. 37) debruça-se sobre a "educação popular e os movimentos sociais no Brasil", afirmando a centralidade da discussão em torno da educação popular na América Latina, onde "os movimentos sociais populares têm constituído um espaço permanente de confronto de saberes num processo em que as necessidades populares se transformam em demandas sociais […]" (p. 49). Estes movimentos vêm contestar a aplicação do modelo de educação popular vigente, nomeadamente o processo de alfabetização iniciado na segunda metade do século xx, apelando à necessidade de adaptação dessas práticas às especificidades das populações.

Neste sentido, Sónia Maria Rummert e Célia Regina Vendramini propõem uma reflexão crítica relativamente à forma como a educação popular é aplicada no Brasil, a primeira analisando o "movimento sindical e políticas públicas para a educação da classe trabalhadora no Brasil actual" e a segunda as "aprendizagens colectivas no Movimento dos Sem Terra". Para Sónia Rummert, o discurso e as práticas educativas oficiais caracterizam-se pela manutenção da "dualidade" e da "hegemonia" do sistema educativo, perpetuando as profundas desigualdades sociais no ensino. Esta tendência traduz-se na ênfase do ensino primário para as classes trabalhadoras, na obstrução ao acesso ao conhecimento científico e tecnológico e na absorção de directivas internacionais que acentuam a posição periférica do Brasil no mercado globalizado desse tipo de conhecimento. Mesmo durante a "idade de ouro" da alfabetização brasileira, entre 1958 e 1964, muitos dos movimentos populares desta época promovem apenas a escolaridade primária e o ensino profissional como alternativas à pobreza, ao ócio e ao desemprego (pp. 101). Célia Regina Vendramini complementa esta perspectiva analisando o Movimento dos Sem Terra (MST) como paradigma de um movimento popular que supera o discurso e as práticas duais e hegemónicas oficiais. Reflexo da capitalização e mecanização da agricultura brasileira a partir da segunda metade do século xx, o MST constitui-se como um espaço de socialização política cujas estratégias de reivindicação — a ocupação de terras, o "acampamento" e o "assentamento" — ensinam os membros a organizar-se e a manifestar-se, contribuindo para a criação de identidades sociais e oferecendo um programa escolar alternativo à escola tradicional e ao ensino rural oficial que visa ultrapassar as suas concepções e práticas urbano-cêntricas desarreigadas da realidade rural.

Afastando-se desta reflexão crítica, no texto "Trabalho-educação nos movimentos sociais populares do campo: a pedagogia da alternância" Marlene Ribeiro descreve historicamente a importância da pedagogia da alternância enquanto proposta educativa extra-estatal, criada pela igreja francesa oitocentista para combater a abstinência e o abandono escolar dos camponeses. Como o próprio nome indica, a pedagogia da alternância consiste no revezamento de tempos e lugares de aprendizagem, propondo um sistema que recicla e conjuga saberes práticos e teóricos mais próximos da realidade rural. No Brasil, esta pedagogia é introduzida no final da década de 60 do século xx através do modelo das escolas família agrícolas (EFAs) italianas. Para Marlene Ribeiro, esta experiência permite confirmar "o desinteresse do Estado pela escolarização dos camponeses" (p. 111) e a necessidade de a Igreja se afirmar como alternativa ao capitalismo e ao comunismo no contexto pós-Segunda Guerra Mundial. É interessante confrontar este texto com os dois textos anteriores, uma vez que Marlene Ribeiro não questiona as limitações desta proposta sem aprofundar a crítica à pedagogia da alternância como forma de instrumentalização das camadas populares para suprir a necessidade de mão-de-obra qualificada.

No último capítulo, Abílio Amiguinho apresenta um testemunho sobre "o projecto das escolas rurais como movimento social" a partir da sua participação no projecto "Escolas rurais no Alentejo". Embora a princípio fosse um mero programa de intervenção socioeducativa, cedo trouxe à superfície a dimensão dos problemas vividos nas comunidades abrangidas pelo projecto, confirmando a transformação das "necessidades populares [...] em demandas sociais [...]", já apontada no capítulo de João Francisco de Sousa (p. 49). Encerrando a obra, Abílio Amiguinho conclui que este projecto prova, assim, que a perspectiva tecnicista do Estado poderá ser suplantada através da imposição de "[...] um cenário de pensamento e de acção que reposicione o escolar no educativo para favorecer uma educação de base onde as crianças, adultos e adultos mais velhos se formem simultaneamente" (pp. 164-165).

O desequilíbrio entre as contribuições sobre a realidade portuguesa e a realidade brasileira, bem como alguma desarticulação temática entre os textos, dificultam um exercício comparativo mais aprofundado. Acresce ainda a quase ausência de análises em torno da educação rural em Portugal que permitam, por um lado, confrontar o fenómeno do analfabetismo em Portugal e no Brasil e, por outro, avaliar as transformações educativas no nosso país após o 25 de Abril. Por fim, não são questionadas as transformações na educação popular adulta perante as conquistas da alfabetização e escolarização da população portuguesa nem o impacto da "aprendizagem ao longo da vida", transversal aos discursos políticos actuais. Ressalva-se, contudo, que este livro privilegia um diálogo aberto entre o leitor e a obra. Ao lançar mais questões do que oferecer respostas, incita-nos a interrogar as realidades educativas que nos são familiares, propondo diferentes ângulos de análise úteis para as observar.

Ana Mafalda Graça

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

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