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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.188 Lisboa jul. 2008

 

Elísio Estanque e Rui Bebiano, Do Activismo à Indiferença. Movimentos Estudantis em Coimbra, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2007, 196 páginas.

 

Os autores deste ensaio provêm de percursos de investigação bastante diferentes não só no que diz respeito às suas disciplinas de formação (história e sociologia), mas também às áreas de interesse ou abordagens metodológicas que privilegiam. Assim, se Rui Bebiano se tem ocupado nos últimos anos do estudo do movimento estudantil coimbrão, utilizando principalmente metodologias qualitativas, como as da história oral e cultural, o sociólogo Elísio Estanque tem dedicado a sua investigação sobretudo a problemáticas como as classes e desigualdades sociais, mobilidade ou participação política, geralmente privilegiando métodos quantitativos.

Todavia, estes percursos distintos convergem bem em Do Activismo à Indiferença. Movimentos Estudantis em Coimbra, livro onde as premissas históricas do movimento estudantil são postas em diálogo com as mais recentes evoluções da população estudantil coimbrã, procurando avaliar quanto daquele passado oposicionista está ainda presente nos corredores da Academia. Além disso, parece emergir também uma confrontação entre os próprios objectivos da contestação dos anos 60 — como a democratização da universidade e a sua maior ligação com as problemáticas sociais e políticas do país — e a efectiva situação da universidade nos dias de hoje. Neste sentido, aparecem ainda mais evidentes certos elementos emergentes da análise do actual meio estudantil, em que persistem desigualdades de acesso por parte das classes mais desfavorecidas e parece até ter aumentado a distância em relação ao país real, como demonstra a afirmação de valores cada vez mais individualistas e o nível extremamente baixo do envolvimento em actividades políticas ou de cariz associativo.

O livro estrutura-se em duas partes: a primeira descreve o percurso histórico do movimento estudantil coimbrão, enquanto a segunda traz uma análise sociológica da população universitária de Coimbra na actualidade, com o objectivo declarado de «perceber as articulações entre gerações distintas» (p. 87). A primeira parte, coordenada por Rui Bebiano, insere-se plenamente no trajecto historiográfico desenvolvido até agora pelo autor, com base sobretudo nos paradigmas da história cultural e das ideias, que têm caracterizado também o anterior trabalho por ele assinado em parceria com Maria Manuela Cruzeiro, sobre o movimento estudantil coimbrão [Anos Inquietos. Vozes do Movimento Estudantil de Coimbra (1961-1974), Porto, Afrontamento, 2006]. Nesta parte encontramos também referências interessantes a outros momentos de dissensão no meio académico de Coimbra, como, por exemplo, aquele protagonizado pela «geração de 1870», que contribuiu para renovar, nos finais do século xix, a vida cultural e intelectual não só coimbrã como portuguesa. Estas digressões indicam como em Coimbra conviviam tendências diferentes, a par de uma tradição universitária tradicionalista e conservadora — não se pode esquecer que a Universidade de Coimbra serviu de incubadora para a ideologia do Estado Novo. É o caso, por exemplo, da cultura boémia e do «escapismo decadentista», que sempre foram reivindicados como intrínsecos da «alma» estudantil de Coimbra, sobretudo por parte dos estudantes das chamadas «repúblicas». É verdade que esta «subcultura» académica não pareceu ter, durante muito tempo, nenhuma carga política, representando apenas um estilo de vida alternativo, mas é também inegável que, sobretudo por causa da natureza repressiva do regime, muitas transgressões «privadas» chegaram a ter um significado também político. A exploração de territórios proibidos, seja do ponto de vista pessoal, social ou cultural, parece ter contribuído para a formação de uma cultura de dissensão que se podia facilmente tornar oposição política. Por fim, é abordada a problemática da desmobilização estudantil pós-25 de Abril, quando a participação política se tornou cada fez mais «partidária» e menos «movimentista», para, finalmente, dar lugar a um período de profundo refluxo participativo nos anos 80. Mas a característica talvez mais importante do discurso de Bebiano reside na tentativa de salientar, à luz da rebelião juvenil, as importantes mudanças sociais, culturais, económicas e até demográficas que ocorreram em Portugal, assim como noutros países do mundo ocidental, nos anos 60.

A segunda parte da obra, coordenada por Elísio Estanque, é uma análise sociológica da população universitária actual, realizada através de um inquérito representativo do conjunto das faculdades coimbrãs, aplicado em 2005-2006, sendo os resultados parcialmente comparados com um inquérito similar feito em 1999-2000. É difícil dizer se o objectivo declarado pelo autor de definir «um novo paradigma de participação cívica democrática» (p. 88) foi atingido ou possa até ser atingível, considerando os baixíssimos indicadores relativos à participação política ou associativa juvenil e o seu cada vez mais profundo desinteresse pela política. Na verdade, a juventude universitária coimbrã apresenta valores cada vez mais individualistas e autocentrados, acompanhados por um nível altíssimo de desconfiança em relação às instituições democráticas e aos partidos políticos.

Os quesitos colocados aos entrevistados têm a ver, em particular, com três grandes áreas temáticas. Em primeiro lugar, encontramos aspectos relacionados com a caracterização sociológica, geográfica e de origem de classe dos estudantes, destinados a averiguar as principais alterações ocorridas na composição social do meio estudantil. Seguidamente, há um conjunto de questões ligadas às actividades extra-académicas praticadas, sejam políticas e/ou sociais, sejam de tipo cultural ou lúdico, também consideradas segundo o sexo, a classe social e a faculdade. Por fim, estão as questões relacionadas com as atitudes perante as ritualidades académicas, as instituições universitárias e o movimento estudantil dos anos 60. À primeira vista, os resultados demonstram claramente que a universidade tem sofrido um processo de democratização, sendo actualmente os filhos de «trabalhadores não qualificados» e as mulheres a população mais representada.

Todavia, na opinião do autor, a isso não corresponderia um equivalente melhoramento no domínio da mobilidade social, sobretudo por causa do processo de desvalorização do ensino superior e dos títulos universitários. Por outras palavras, ter uma licenciatura não significaria, hoje em dia, ter mais possibilidade de ascensão social e, numa situação deste tipo, voltam a ser determinantes para o exercício de muitas profissões «prestigiosas» as tradicionais redes de cooptação. Por outro lado, também do ponto de vista cultural, os indicadores demonstram que o facto de se frequentar a universidade não comporta por si só uma maior predisposição para actividades culturais, como ler livros ou jornais, assistir a espectáculos teatrais ou conferências, visitar exposições ou museus. Como salienta o autor, a população académica de Coimbra apresenta indicadores relativos às actividades de lazer não muito distantes dos do resto da sociedade portuguesa. Segundo o inquérito, que envolveu uma amostra plural de 2851 alunos (perto de 15%) da Universidade de Coimbra, cerca de 18,3% dos inquiridos revelaram nunca ler outros livros, para além dos textos académicos. Em algumas áreas disciplinares a percentagem sobe mais ainda: quase 48% em Desporto e 40% nas diversas Engenharias. Bastante significativo parece ser o facto de os estudantes residentes nas repúblicas apresentarem indicadores muito diferentes, seja a respeito das actividades de lazer — demonstrando mais interesse por quase todas as actividades culturais —, seja a respeito do estilo de vida e dos valores, revelando-se menos autocentrados e parecendo mais interessados no bem-estar colectivo. Além disso, são os que mais gostariam de uma completa abolição da praxe ou, pelos menos, da sua redefinição no sentido de se tornar menos autoritária e hierárquica.

Nesta segunda parte da obra emergem perspectivas interessantes para a compreensão do mundo estudantil coimbrão actual, cujas transformações, consideradas o espelho de transformações sociais mais amplas, são analisadas através de sólidos instrumentos teóricos que orientam com rigor o questionamento da realidade. A clara colocação teórica está particularmente presente na elaboração do inquérito e na escolha corajosa de determinantes como a classe social, muitas vezes considerada erroneamente uma categoria ultrapassada. Mas, além das ideias subjacentes, é o dado empírico que fala por si, evidenciando como os canais habituais de reprodução das elites estão ainda activos e como a universidade de massas só parcialmente se tornou uma plataforma de mobilidade social e de «igualização» das possibilidades de ascensão social.

Todavia, a respeito do objectivo declarado do livro, ou seja, perceber até que ponto a memória do movimento estudantil coimbrão sobrevive e influencia o meio universitário da cidade, parece não se ter chegado a uma conclusão muito clara, talvez porque as perguntas directamente relacionadas com este assunto são minoritárias neste inquérito, bem como as relativas à confiança e ao envolvimento dos estudantes nas instituições associativas académicas. Assim, se a primeira parte do texto nos oferece um excurso sobre a história do movimento estudantil coimbrão, sem trazer elementos novos à investigação até hoje desenvolvida sobre este assunto, a segunda parece estar desligada da primeira. Além disso, é surpreendente a falta quase completa da dimensão comparativa, sobretudo no que diz respeito à caracterização sociológica dos estudantes. Temos, portanto, um conhecimento muito detalhado do universo estudantil coimbrão, mas sem a possibilidade de estabelecer comparações com estudantes de outras cidades, portuguesas ou não, ou com jovens que não sejam estudantes ou até com outros actores sociais. É possível, como sustenta um dos autores, que tudo o que acontece no meio universitário de Coimbra tenha reflexos imediatos na vida da cidade e até no futuro do país (p. 72), mas talvez tivesse sido útil averiguar melhor até que ponto o caso de Coimbra é generalizável ou, pelo contrário, se as características típicas de uma cidade universitária criam especificidades próprias e em que medida estas se desviam ou interferem com tendências sociais mais gerais.

Guya Accornero

Doutoranda, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

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