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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.188 Lisboa jul. 2008

 

Mário Murteira, A nova economia do trabalho. Ensaio sobre emprego e conhecimento no mercado global, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2007, 147 páginas.

 

Este é um ensaio de economia na contracorrente: questionando ideias dogmatizadas pelas abordagens dominantes da disciplina e informado por outras áreas do saber e do pensamento. Neste último aspecto faz recordar, aliás, que em Portugal a sociologia, enquanto campo disciplinar, começou a emergir, justamente, a partir da economia — num movimento que Mário Murteira acompanhou de perto, enquanto colaborador próximo de Adérito Sedas Nunes e colaborador também da Análise Social desde o seu primeiro volume.

Como revela no «Prefácio», o autor, economista com uma longa carreira de investigação, ensino e intervenção técnica, política e cívica em Portugal e no estrangeiro, elaborou o texto sob a «forte motivação pessoal» de regressar ao que fora o seu tema inicial de estudo (o trabalho) — e com o fito de «compreender, com a objectividade possível, o que mudou no mundo» (p. 13). Tendo vivido e pesquisado tempos bem diversos dos actuais, mobiliza, assim, eficazmente esse conhecimento (e outro) para aqui estudar o presente. Deste modo, a análise apresentada no livro beneficia de uma profundidade temporal, de uma abrangência cronológica que lhe dá perspectiva e a enriquece significativamente — e que permite melhor interrogar, além do presente, também o futuro (do qual igualmente se poderá dizer que em muito tem mudado nas últimas décadas).

Após o prefácio, o texto organiza-se em nove capítulos — incluindo o introdutório e o conclusivo —, complementados por um anexo estatístico (cinco quadros de dados demográficos e económicos).

O capítulo 1, «De Marx a Drucker» (sendo Drucker o «guru» fundador das modernas teorias e engenharias de gestão organizacional), apresenta algumas interrogações que fazem o pano de fundo do livro. Por exemplo: o que mudou no mundo e nas expectativas de futuro? Onde se equivocaram os marxistas? «Como explicar, além do mais, tão profunda mudança na conjuntura ideológica do capitalismo nos últimos trinta ou quarenta anos?» (p. 15). Depois, chamando a atenção para os limites que a nossa condição de seres ideológicos inevitavelmente coloca ao conhecimento do social, contextualiza, de modo muito esclarecedor, o surgimento da economia do trabalho (interessada no emprego, no desemprego, nas condições e relações laborais), o seu ocaso e a emergência, décadas depois, da «nova economia do trabalho». É aqui, nesta «emergente disciplina, que procura identificar uma realidade socioeconómica em gestação» (p. 19) — o trabalho na contemporaneidade —, que o autor situa o seu texto, do qual indica então os grandes temas: formação do mercado global; relação entre mercado de trabalho e «mercado do conhecimento», sendo este o «local primordial da acumulação neste capitalismo global» (p. 20); questões de emprego, desemprego e coesão social; sindicalismo; «desenvolvimento humano», e uma atenção particular ao caso português.

O capítulo 2, «A globalização da economia e as tendências demográficas mundiais», caracteriza a grande mudança, discutindo o termo «globalização» e estabelecendo, designadamente face a prévios desenvolvimentos integradores, as particularidades do processo actual: carácter mundial; coexistência de integração com heterogeneidade e desigualdade; peso dos grupos ou empresas transnacionais e crescente concentração de poder; interligação da globalização financeira e da globalização do conhecimento; processos de marketing e mercantilização globais; papel da tecnologia nestes processos; influência, nos mesmos, das dinâmicas demográficas planetárias. O autor considera os aspectos «positivos» e os «negativos» da globalização e deixa uma pergunta prática e ética: poder-se-á condicioná-la «segundo um projecto que seja ao mesmo tempo viável e compatível com um paradigma de autêntico desenvolvimento humano» (p. 30)?

No capítulo 3, «Da economia do trabalho à economia do conhecimento», são discutidos os processos de «acumulação de capital no mercado global» (p. 37) e as suas crescentes transnacionalização e financeirização (com subordinação acentuada da função produtiva). As questões do valor do trabalho e da exploração (com uma breve referência a Marx) são abordadas também por relação às trocas mercantis e às cadeias produtivas globais, cujas dinâmicas condicionam o valor da mercadoria e do trabalho — influenciando também fortemente, de acordo com a análise proposta pelo autor, as procuras e os consumos. Segue-se uma discussão a respeito da «economia baseada no conhecimento», problematizando o conceito e considerando as questões do «mercado do conhecimento» (o que é o conhecimento, quem o detém, como circula no mercado global, como é determinado o seu valor...) e das suas relações, problemáticas sob alguns pontos de vista, com a liberdade individual de conhecer.

A pergunta «Que futuro para o trabalho?» intitula o capítulo 4, que se inicia com uma apreciação do lugar central do trabalho e dos trabalhadores no modelo económico, social e político prevalecente na Europa ocidental durante as décadas do pós-guerra. Retomando o capítulo anterior, são depois debatidos os contornos e as condições de viabilidade da apregoada «sociedade do conhecimento», na qual prevaleceria «um novo tipo de trabalhador, inovador e empresário de si mesmo» (p. 58), gerindo, em autonomia individual, a obtenção e os usos do seu saber. Com base nessa discussão, e na revisão de três possíveis cenários de globalização («modelo liberal», «modelo da `globalização justa'» e, justamente, «modelo da `sociedade do conhecimento'»), o autor conclui que a concretização deste último exige uma intervenção voluntarista da sociedade sobre a economia: «o modelo da sociedade do conhecimento não parece viável no prolongamento puro e simples do modelo liberal» (p. 69).

Após estas abordagens de conjunto, os três capítulos seguintes cobrem aspectos particulares de caracterização e interrogação do contexto actual. Em «Repensar o sindicalismo» parte-se do reconhecimento de que este desempenhou «um papel decisivo na democratização da economia de mercado» (p. 73) e da consequente hipótese de que o seu enfraquecimento possa conduzir ao enfraquecimento da própria democracia para considerar a «necessidade da metamorfose sindical» (p. 74) dirigida às novas formas de trabalho e relação laboral — as quais, sublinha o autor, incluem uma disparidade de situações que se articulam estreitamente na economia global, desde os melhor posicionados «trabalhadores do conhecimento» aos mais desprotegidos ilegais. «Coesão social no quadro da União Europeia», que inclui uma reflexão sobre a designada «estratégia de Lisboa», discute a posição e o papel do «modelo social europeu» face à globalização, incluindo a eventual importância cultural e identitária daquele modelo, bem como a possibilidade de que um esforço europeu de coesão social conduza à afirmação do continente no espaço global e, de modo relacionado, influencie «no sentido de um modelo de `globalização justa' à escala mundial» (p. 93). Finalmente, «Mobilidade do capital e do trabalho no mercado global» abre com uma reflexão sobre a emergência de novas centralidades económicas (destacando o caso chinês) e respectivos efeitos na «nova economia do trabalho» — sobretudo, o desafio que colocam ao modelo social europeu —, caracterizando depois os grandes «actores globais», entre os quais sobressaem as empresas transnacionais, e encerrando com uma análise das dinâmicas de mobilidade dos vários tipos de capital: humano, de conhecimento e financeiro.

O capítulo 8, «A globalização da economia portuguesa e os efeitos na economia do trabalho», assenta numa revisão do último meio século: a política económica e social da ditadura — em particular o corporativismo, o condicionamento industrial e a opressão política e cultural, instrumentos de «concentração do poder económico em alguns grupos privados» (p. 112), perpetuando uma sociedade desigual, viveiro de mão-de-obra barata e emigrante, «a dinâmica anticapitalista que se seguiu ao golpe militar» (p. 115) e a transição para a economia de mercado, consagrada com a adesão à CEE. Com base neste percurso, e convocando um conjunto de indicadores pertinentes (relativos ao diálogo social, ao papel do Estado e à competitividade), o autor desenha a situação actual do país, por comparação com os modelos corporativo e social europeu, enumera factores de atraso e sugere uma globalização da economia portuguesa que não se limite ao actual «arrastamento periférico pela integração europeia» (p. 121).

«Utopia e ideologia na economia do trabalho» é o capítulo final. Tornadas obsoletas as narrativas do sentido da história, mantém-se, contudo, considera o autor, e tanto mais quanto mais se valorizar a liberdade individual, a «procura do sentido último do `desenvolvimento humano'» (p. 124), na construção do qual lhe surgem centrais o trabalho e o conhecimento. A ideia de «desenvolvimento humano», que afirma não poder reduzir-se à mera acumulação de riqueza, é discutida mediante os conceitos de «visão», «ideologia», «ciência» e «utopia». Tipificando e caracterizando, em seguida, os díspares actores da conjuntura global, o eonomista observa como, na complexa interacção destes, o mundo muda rapidamente e o capitalismo se revela capaz de transformação e adaptação — sem, no entanto, ultrapassar uma «ambiguidade essencial»: são gerados mais saber, mais riqueza, mais serviços, «mas não necessariamente mais justiça, maior bem-estar do grande número, nem `desenvolvimento humano'» (p. 137). Ainda assim, identifica também oportunidades e potencialidades de mudança, que passam pelas alargadas conectividade e interacção do nosso tempo — capazes, eventualmente, de conduzir a outros padrões de conhecimento, de trabalho e de liberdade.

Mário Murteira escreveu um livro para quem quer saber — e pensar — sobre globalização (nas suas múltiplas e entrelaçadas vertentes) e sobre a importância do trabalho (e das mudanças que o atravessam) na contemporaneidade. Não é tanto um texto de pesquisa; é uma obra estimulante de reflexão, de propostas, de alguma provocação. É também, ainda que buscando a «objectividade» possível, um olhar assumidamente pessoal.

Num texto de juventude sobre «A missão do intelectual» (posteriormente inserido no seu volume de 1970 Portugal, Anos 70) assentava o autor tal missão em duas «ideias»: «uma ideia de investigação» e «uma ideia de solidariedade», pois «não há inquérito válido que não parta da aceitação de laços estreitos entre o eu e os outros». A presença desse padrão ético e epistemológico é evidente também neste livro, sendo interessante (e reconfortante) observar a sua compatibilidade com o moderado optimismo que aí se constrói, pesem embora uma perspectiva lúcida e crítica e uma análise sombria do estado do mundo.

Emília Margarida Marques

CEAS/CRIA, CEEP/CRIA, bpd FCT

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