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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.187 Lisboa abr. 2008

 

Lionel Thelen, L'exil de soi: sans abri d'ici et d'ailleurs, Bruxelas, Facultés Universitaires Saint-Louis, 2006, 318 páginas.

 

O livro L'Exil de soi: sans abri d'ici et d'ailleurs é uma síntese da tese de doutoramento em Antropologia de Lionel Thelen, cuja temática central são as condições e modos de vida dos sem-abrigo. O autor faz uma exploração desta temática em três países, França, Portugal e Bélgica, através de metodologias diversificadas, donde sobressai um trabalho de observação participante como voluntário em associações de suporte aos sem-abrigo e, mais interessante ainda, assumindo-se como um sem-abrigo, nomeadamente no caso de Portugal, onde vive na rua durante um mês, participando no mesmo modo de vida.

Iniciando-se a pesquisa pela revisão da literatura e pela própria definição do objecto, o investigador confronta-se desde logo com a própria definição da categoria de sem-abrigo nos vários países. Na Bélgica todos os que não dispõem de uma habitação clássica e vivem em situações de degradação habitacional são considerados sem abrigo. Em Portugal, esse conceito é apenas aplicado aos que vivem na rua. Essa diversidade não impede o autor de encontrar a sua própria definição, centrando a atenção naqueles que não têm um tecto para viver e vivem sempre, ou quase sempre, na rua.

Não sendo um trabalho verdadeiramente comparativo, a pesquisa por países é apresentada na sua singularidade em três capítulos diferentes, cada um deles centrado num país, pretendendo-se «triangular» a diversidade das situações, quer pela diversidade dos países, quer pelo aprofundamento do perfil dos «sem-abrigo», quer ainda através da análise das políticas de «inserção» que ensaiam as diversas instituições que com eles lidam.

O objectivo da pesquisa centra-se sobretudo nas transformações identitárias e relacionais que derivam do viver na rua, defendendo o autor , num capitulo de reflexão epistemológica e metodológica muito interessante, que esse conhecimento não seria possível sem mergulhar profundamente no quotidiano dos sem-abrigo, entendendo as necessárias estratégias de sobrevivência e as inevitáveis opções que derivam deste modo de vida.

No capítulo sobre a França, onde a pesquisa decorreu em Nanterrre em 1999, o autor é particularmente crítico face à instituição (CHAPSA) que é suposto «dar abrigo» durante a noite e que conclui gerar o mesmo carácter totalitário da rua, reproduzindo as mesmas inseguranças e impessoalidade.

A pesquisa em Portugal é talvez das mais interessantes, pois profundamente mergulhada na convivência com os sem-abrigo. Ressaltam duas instituições que frequenta como sem-abrigo — a da Santa Casa da Misericórdia e a do Exército de Salvação —, das quais revela a tradicional guerrilha institucional. Na sua personagem como sem-abrigo dá particularmente conta de algumas especificidades da situação portuguesa face aos sem-abrigo. Por um lado, uma maior heterogeneidade de perfis e de ocupações (pequenos trabalhos, como a arrumação de carros, a venda de objectos que permitem pequenos rendimentos e substituem as políticas sociais insuficientes), mas também a constatação de como a dupla exclusão dos sem trabalho e imigrantes pode ser penalizadora. Finalmente, em Bruxelas, na Bélgica, reforça o trabalho de terreno, analisando um serviço de apoio de urgência e a permanência nos abrigos de noite. Deste país ressalta uma forma diferente de os profissionais lidarem com as pessoas sem abrigo, através de um misto de realismo e humanidade no trato, donde resulta uma interacção mais humanizante.

A partir de um longo trabalho de terreno, Lionel traça o retrato de uma grande diversidade de pessoas sem abrigo e das instituições e profissionais que lidam com elas, muito particularmente nos abrigos nocturnos. Embora o seu olhar central sejam as estratégias de sobrevivência dos sem-abrigo, um dos resultados da pesquisa é também uma reflexão sobre os serviços e as políticas sociais. Convém ressaltar como frequentemente as instituições, e a ausência de preparação específica do pessoal que as protagoniza, que se diz existirem para integrar, podem ser tão violentas e inseguras como a rua, manifestando um profundo desconhecimento e desprezo pelo sofrimento e impotência que este modo de vida não pode deixar de gerar.

Mas o centro do trabalho, ancorado nesta vivência empírica de observação participante, muito bem descrita, é de facto a estruturação identitária que decorre deste modo de vida na rua. Mais do que procurar as causas, Lionel Thelen procura as estratégias de sobrevivência exigidas por este modo de vida, encontrando dois elementos centrais: a adaptação à rua, enraizada na negação dos outros (le déni des autres), e o exílio de si (l'exil de soi).

A adaptação à rua é o corolário de circunstâncias anteriores que se identificam através de um longo percurso de falta de afecto, de insuficiente enraizamento familiar solidário, e que são agora reforçadas na rua pela constante humilhação intrínseca à situação de sem-abrigo. A rua emerge como uma instituição total goffmaniana num universo ditado pela máxima «cada um por si e todos contra todos», que transforma cada um numa ilha, arredada de afectos e de solidariedades, incluindo entre os companheiros de rua. A «negação dos outros» tem assim um duplo sentido, significando, por um lado, a negação factual e simbólica que os outros atribuem aos sem-abrigo e, por outro lado, o fechamento pessoal dos sem-abrigo, que é a única estratégia que lhes permite viver com essa desafectação e preservar uma integridade identitária, mesmo que mínima.

O «exílio de si» é o corolário deste modo de vida, definido como um habitus específico que significa, segundo o autor, a capacidade de restringir de tal modo as suas necessidades e simplificar a existência, funcionalizando a forma de conceber e lidar com o mundo exterior e conformando-se às exigências de um meio hostil. O exílio de si exige a adaptação da percepção, do tempo, dos outros e de si próprio, o que permite viver na rua, com tudo o que isso significa. O exílio de si passa, assim, quer pela negação dos outros, de que já se falou, quer ainda por constrangimentos ligados à mutação do conceito de vida, ela própria, e sobretudo à metamorfose do conceito de si próprio, traduzido exteriormente pela descuidada e precária gestão da higiene, das emoções, das situações de saúde, etc.

Lionel Thelen consegue provar a sua hipótese de partida de que os sem-abrigo são o culminar de um processo de dessocialização que começou muito antes na família e na rede de afectos e que encontram na rua o seu meio «natural» de finitude. Mais do que problemas psicológicos, os sem-abrigo accionam estratégias de aprendizagem que lhes permitem viver no exílio de si e de todos os outros, apoiando-se frequentemente em condimentos que favorecem o lidar com essa imensa solidão: o álcool, as drogas, etc.

A maioria das instituições ditas de suporte mais não faz do que reforçar as dimensões de desumanização, favorecendo os esquemas de reprodução da violência e humilhação da rua, não se oferecendo como alternativa nem afectiva nem funcional ou simbólica, alimentando assim a representação a partir da qual o sem-abrigo se vê a si, aos outros e à sociedade.

O livro L'Exil de soi: sans abri d'ici et d'ailleurs foge à tradição dos estudos quantitativos sobre a população sem abrigo, mergulhando corajosamente num modo de vida distante do universo de referência do investigador tradicional, utilizando uma metodologia compreensiva e uma rara capacidade ética e metodológica que nos fornece novos e muito interessantes elementos de informação que aumentam o conhecimento sobre a mais completa das exclusões sociais e que poderão influenciar as instituições e as políticas sociais que pretendem lidar com os sem-abrigo.

 

Isabel Guerra

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

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