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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.187 Lisboa abr. 2008

 

Apresentação

 

Não seria difícil encarar qualquer terreno de estudo, em qualquer época conhecida, como um espaço marcado por dinâmicas de continuidade e de mudança.

De facto, embora vários e influentes quadros teóricos das ciências sociais se tenham concentrado no «equilíbrio» e «estabilidade», chegando a encarar a mudança e o conflito como patologias, enquanto outros tenderam a enfatizar as rupturas e a marginalizar as continuidades, será hoje em dia relativamente pacífico reconhecer que, para usar a célebre frase de Bourdieu tomada de empréstimo a Marx, le mort saisie le vif — sem que desse reconhecimento tenha de decorrer qualquer adesão ao estruturalismo ou ao marxismo.

No entanto, se é fácil descortinar o jogo da continuidade e da mudança em virtualmente qualquer terreno de estudo, ele quase se impõe ao olhar de quem observe o Moçambique de hoje, faça-o de forma superficial ou aprofundada.

Num primeiro registo, poderá o observador espantar-se com as quase coloniais formas de tratar os empregados, com a relevância das classificações «rácicas» e dos códigos de comportamento em função delas, ou com a naturalização das desigualdades sociais — tudo isto num país que passou, em pouco mais de trinta anos, por uma independência acompanhada pela debandada de europeus, por um processo revolucionário socializante, por uma longa e destrutiva guerra civil e por uma acelerada liberalização económica sob financiamento e estímulo externos.

Num segundo olhar, surpreenderão os amuletos trazidos nos bolsos de elegantes casacos Giorgio Armani, os tribunos políticos ou religiosos que fazem «vacinas»1 sob a língua para serem ouvidos com atenção, ou a aparentemente fácil continuidade das mesmas individualidades na cena política — individualidades que poderão ser oriundas da luta de libertação e da revolução socializante, ter-se entretanto transformado em magnatas empresariais e agora invocar as referências retóricas e a figura do primeiro Presidente da República, Samora Machel, como instrumentos de mobilização para a sua actual governação neoliberal.

Num outro registo, ainda, o jogo de continuidades e mudanças trespassa os fenómenos que — tal como acontece neste volume — sejam objecto de abordagens e análises segundo as regras das ciências sociais. Neste último caso, poderíamos mesmo dizer que, se em poucos contextos de estudo a sensibilidade às dinâmicas de continuidade e mudança é pouco relevante para a profundidade da análise, será muito difícil estudar de forma pertinente os fenómenos moçambicanos caso se negligenciem essas dinâmicas. Talvez por essa razão se possa observar que, nas mais estimulantes abordagens de fenómenos moçambicanos por parte de investigadores autóctones ou estrangeiros, os antropólogos, historiadores e sociólogos tomam de empréstimo entre si, com mais frequência e de forma mais descomplexada do que noutros terrenos, perspectivas e conceitos oriundos das restantes áreas disciplinares.

O subtítulo deste número temático da Análise Social torna-se, dessa forma, quase um truísmo. Mas para que nos apercebamos cabalmente de que assim é será necessário um conhecimento de causa para o qual a sua leitura se torna muito útil. A par de um locus comum, as continuidades e mudanças são, afinal, o fio condutor de um volume bastante diversificado em termos de temáticas e terrenos abordados.

No primeiro artigo deste volume, Paulo Granjo leva-nos até à mais recente e actualizada indústria moçambicana (a fundição primária de alumínio Mozal, em Boane), passando pelas ruínas de um hotel inacabado mas rodeado de histórias de cobras e dragões, cuja lógica reencontramos nesse espaço fabril. Aí deparamo-nos com uma atípica integração da mais estrita racionalidade tecnológica por parte dos operários, que é aplicada ao quotidiano laboral, coexistindo com os anteriores sistemas locais de domesticação do infortúnio, por sua vez mobilizados quando os acidentes vêm subverter a normalidade técnica. Essa separação e as características de ambos os sistemas de racionalidade fazem, contudo, com que acreditar na acção dos espíritos e da feitiçaria sobre o quotidiano não faça perigar a produtividade e a segurança, permitindo que a adopção de novas formas de racionalidade não implique o abandono das anteriores.

O papel que os espíritos e os antepassados assumem na regulação da incerteza e do infortúnio volta a estar presente no artigo de Brigitte Bagnol acerca do lovolo (leia-se lobolo), a forma de casamento que é predominante no sul de Moçambique. A partir de três dessas cerimónias matrimoniais em que a família do noivo transfere bens para a família da noiva, ocorridas na zona de Maputo, podemos verificar de que forma os sentidos nelas investidos extravasam as abordagens clássicas acerca do chamado bridewealth, privilegiando o estabelecimento de uma comunicação entre vivos e antepassados que contribui para criar ou restabelecer a harmonia social. É essa inscrição dos indivíduos numa rede de relações que não envolve apenas os vivos, mas também os mortos, possuidores de poderes de controlo sobre os seus descendentes, que explica, segundo a autora, a continuidade do lovolo em contexto urbano.

O artigo que nos é trazido por Sofia Aboim aborda, por sua vez, os diversificados processos de reconstrução das identidades masculinas, num contexto de mudança marcado pela urbanização, pelo contacto globalizado e simultâneo com diferentes modelos de relações de género e pela aprovação da nova Lei da Família — que, numa sociedade sob forte dominação masculina e que se representa como tal, propõe visões modernistas e igualitárias da família e do género. A partir de dados qualitativos e quantitativos recolhidos em Maputo, a autora discute a pluralização das masculinidades e propõe-nos que as mudanças em curso resultam dos encontros entre os costumes tradicionais, os legados do colonialismo e as dinâmicas de globalização no mundo pós-colonial.

Mantendo algumas pontes com esse tema, Emídio Gune convida-nos a reflectir acerca da utilização não consistente do preservativo e dos significados que lhe estão associados. O tema é de particular relevância em termos de saúde pública, pois a mera utilização do preservativo tende a ser interpretada como prova da adesão ao discurso epidemiológico e do sucesso do mesmo, quando a lógica que lhe preside, segundo o autor, é quase inversa. O preservativo é utilizado em situações e com pessoas liminares, consideradas perigosas ou subversoras das normas, enquanto as relações sexuais socialmente aceitáveis são consideradas de per si seguras, excluindo o seu uso. «Sexo seguro» é então, de acordo com os pressupostos sociais, sexo sem preservativo — com todas as consequências que tal acarreta para a transmissão do VIH e outras ITS, dada a diversificação de parceiros sexuais.

Mantendo-se no âmbito das representações sociais, mas passando ao campo do poder e dos modelos societais, Jason Sumich apresenta-nos a ideologia da modernidade que é partilhada pela elite moçambicana politicamente dominante — hoje também dominante em termos económicos e sociais e instalada em Maputo — como sendo uma categoria «nativa» que lhe serve de factor unificador e de instrumento para reivindicar o seu poder social e legitimar as suas posições de privilégio perante o resto da sociedade. Trata-se, segundo o autor, de uma ideologia dinâmica que encontra raízes nos antecedentes dessa elite no período colonial e que passou de um inicial projecto autoritário, mas potencialmente emancipatório, de construção da nação a um indicador de estatuto e de diferenciação social.

É quase um reverso da medalha que vamos encontrar no artigo de Harry West. Partindo de uma muito comentada vaga de ataques de leões que levou, anos atrás, a uma sucessão de linchamentos no planalto de Mueda (no extremo norte do país), o autor delimita uma linguagem local de poder, também ela «nativa», mas em forte disjunção com aquela que foi falada pelos reformadores democráticos ao longo do processo de liberalização política e económica. Equiparar a descentralização democrática a um abandono por parte do Estado, a liberdade individual a um perigo colectivo de feitiçaria ou democracia a carnificina constituíram afinal, segundo o autor, formas em última instância democráticas de avaliação e de crítica às transformações ocorridas após a guerra civil e às formas como o poder é exercido no novo contexto de capitalismo neoliberal.

Essa distanciação entre as elites políticas da «nação» (Maputo) e as comunidades locais está também patente no artigo que nos é trazido por Fernando Florêncio. Nele, tomando como ponto de partida a situação das autoridades hereditárias vaNdau (centro do país) ao longo do tempo e dos regimes políticos e a actual legislação acerca das «autoridades comunitárias», o autor reflecte acerca do lugar social que estas autoridades actualmente detêm aos olhos da maioria das populações rurais e do seu papel no processo de formação do Estado ao nível distrital. A relação entre o actual Estado moçambicano e essas autoridades acaba por surgir como um neo-idirect rule, em que, inclusive, são atribuídas às autoridades hereditárias basicamente as mesmas funções que eram atribuídas aos régulos pela Reforma Administrativa Ultramarina da época colonial.

Mais a sul, numa zona rural da província de Inhambane, Albert Farré chama a atenção para o contraste entre, por um lado, a inoperância das estruturas de implantação territorial que visavam incorporar a população na sua lógica de ordenamento do espaço (incluindo a dificuldade de legitimação das «autoridades tradicionais», de novo reconhecidas pelo Estado mas já desacreditadas pela prática colonial e pela repressão pós-independência) e, por outro, o dinamismo de uma população que se mantém à margem dessas estruturas. Sugere o autor que o Estado e as igrejas falharam em grande medida a sua tentativa de organizar o espaço e de dominar as pessoas com base nos códigos escritos, enquanto os ritos centrados numa pequena escala territorial conseguem reforçar a confiança nas estruturas de parentesco e reunir presentes e ausentes (mortos ou emigrados).

Por fim, e agora a um nível nacional, João Pereira analisa os resultados das eleições legislativas e presidenciais ocorridas em Moçambique após o Acordo Geral de Paz de 1992, demonstrando que as sucessivas vitórias da Frelimo (o partido no poder desde a independência) não são explicáveis pelas teorias do voto económico. Tendo em conta os dados de diversos inquéritos extensivos, o autor propõe para análise um conjunto de hipóteses cuja interacção pode explicar esse fenómeno, entre as quais se destacam a desconfiança em relação às alternativas partidárias existentes, o tipo de transição política, a ausência de uma compreensão clara da diferença entre avaliações pessoais e económicas, o controlo de recursos por parte do Estado, as estratégias de implementação de políticas, a tipologia dos partidos políticos e os diversos contextos locais.

Dever-se-á salientar que, no seu conjunto, estes artigos não constituem um retrato completo do Moçambique actual.

Não constituem sequer um mostruário global dos temas que aí são (ou poderiam ser) abordados pelas ciências sociais. Para que assim fosse teriam de engrossar este volume, entre outros assuntos, os estudos sobre a pobreza, as doenças que são objecto de maior atenção por parte de instituições internacionais, as novas religiões, a equidade de género, as medicinas «tradicionais», o desenvolvimento e respectivos projectos, a educação, a acção das ONG, a história dos movimentos de libertação, ou mesmo outros objectos de pesquisa mais «exóticos» e directamente induzidos/pagos pelo exterior — como, por exemplo, a acessibilidade dos deficientes físicos aos chapas2, campo em que mesmo jovens em invejável condição física enfrentam dificuldades. Faltaria também a abordagem de temas emergentes ou reemergentes, como as recentes manifestações violentas contra as condições de vida e as assimetrias sociais, o recrudescimento dos linchamentos de putativos ladrões ou o (ainda por fazer) fascinante estudo do caso económico de um país que depende directamente do estrangeiro para custear dois terços do seu orçamento de Estado e que vive sobretudo da recirculação de insumos externos que lhe chegam por diversas vias.

Não obstante essas inevitáveis lacunas, este número da Análise Social apresenta um conjunto de abordagens — quase sempre bastante inovadoras — acerca de diversos temas relevantes do Moçambique actual, permitindo ao leitor criar ou aprofundar uma perspectiva acerca do país cujo interesse ultrapassa, de forma significativa, a mera soma da qualidade de cada um dos artigos nele incluídos. Artigos que, conforme é saudável que aconteça em ciências sociais, apresentam pistas e propostas cuja importância e eventual aplicabilidade extravasam em muito o terreno acerca do qual foram produzidas.

Independentemente dessa utilidade geral, todos os leitores, por muito conhecedores que sejam do contexto moçambicano, encontrarão neste volume muito que aprender, debater ou rebater. Quanto aos leitores menos familiarizados com esse terreno, atrevo-me a desejar que, para além de darem por bem empregue o seu tempo, alguns de entre eles possam ver despertar, com a leitura destes textos, um insuspeitado interesse em realizar pesquisas acerca de Moçambique.

 

Paulo Granjo*

 

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Organizador convidado.

1 Inoculação de uma pasta medicinal numa incisão feita na pele, tendo em vista o tratamento de doenças, a protecção contra a feitiçaria e a acção de espíritos ou, neste caso, um efeito mágico.

2 Viaturas privadas licenciadas para efectuar transportes públicos de passageiros, suprindo a quase inexistência de autocarros. São, na sua maioria, carrinhas mistas ou de 9 lugares recondicionadas para transportar 19 pessoas sentadas, para além das que queiram e consigam ir agachadas.

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