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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.184 Lisboa  2007

 

José Manuel Rolo, O Regresso às Armas. Tendências das Indústrias da Defesa, Lisboa, Edições Cosmos, 2006, 238 páginas.

 

O título do livro O Regresso às Armas é representativo da análise cativante e fundamentada sobre a evolução da indústria de armamento, desenvolvida pelo autor mediante uma linguagem simples e um raciocínio sintético e objectivo, ao alcance de qualquer leitor curioso por saber quanto e como se gasta o dinheiro na defesa, pese embora o desinteresse generalizado sobre o tema, sobretudo por elementos da comunidade académica, profissionais e peritos directamente relacionados com estas matérias. De resto, não se trata de algo específico à opacidade característica do tema. Em Portugal faz-se pouca investigação sobre políticas públicas, em geral, independentemente do sector.

Abstenho-me de fazer uma degustação dos vários capítulos, prática comum às recensões, porque roubaria o prazer a quem se sentir disposto a aventurar-se na leitura deste livro e a saborear o seu conteúdo. Penso ser mais oportuno salientar alguns pontos transversais às várias metamorfoses da industrialização da guerra, tratadas com perspicácia ao longo dos seis capítulos que compõem a obra.

Em primeiro lugar, «a ordem mundial é um complexo sistema de acções e reacções entre unidades atomizadas ». Não obstante o quotidiano das suas relações se processar mediante regras e leis comummente reconhecidas e respeitadas e de um modo estruturado, racional e previsível, a ausência de governo mundial coloca os Estados num estado de natureza hobbesiano caracterizado pelo medo, insegurança, violência, guerra e recurso à força: «the nature of war consisteth not in actual fighting; but in the known disposition thereto, during all the time there is no assurance to the contrary [...] in all times, Kings, and persons of sovereign authority, because of their independence, are in continual jealousies, and in the state and posture of gladiators; having their weapons pointing, and their eyes fixed on one another; that is, their forts, garrisons, and guns upon the frontiers of their kingdoms; and continual spies upon their neighbours; which is a posture of war» (Hobbes, Leviatã). Como salientou o autor, «a organização e estruturação da indústria da guerra fez-se sempre de um modo mais célere sempre que uma potência industrial se sentiu ameaçada pelos desenvolvimentos na produção de armas dos seus vizinhos». No actual contexto internacional do pós- -11 de Setembro, de globalização do terrorismo, em que a compra de equipamento militar se faz com um simples clique num website, o conceito de «ameaça» deixou de ter referência na contiguidade territorial.

«A evolução das armas tem alterado a natureza da guerra». Desde que as armas deixaram de ser utensílios de caça e sobrevivência e passaram a ser utilizadas como instrumentos de guerra, a sua evolução e impacto devastador não tiveram fim. Álbio Tibulo (55-18 a. C.), poeta latino, autor de várias elegias dedicadas ao amor, à vida campesina e à condenação da guerra, escrevia a esse propósito o seguinte pranto: «Chi fu il primo ad inventare le spaventose armi? […] Da allora sono nate le stragi per il genere umano, da allora i combattimenti, ed è stata aperta una via più breve alla morte terribile. O forse quel miserevole non ebbe nessuna colpa: noi abbiamo volto a nostro male ciò che egli inventò contro le terribili bestie» (elegia Quis fuit horrendos, livro iI, canto 10). Hoje um soldado não vê quem mata. Com o pulsar de um botão ou o girar de uma chave de ignição arrasam-se cidades, eliminam-se populações inteiras. «A guerra tecnológica dos nossos dias é cada vez mais impessoal». A tecnologia distancia o acto do resultado. O horror da morte não deixa rosto individual, mas é difuso e, portanto, torna-se apenas um facto histórico de consciência colectiva, e não um peso na consciência individual de cada interveniente. «O avanço tecnológico aumenta os níveis de devastação e de morte, mas provoca também uma desmaterialização desta. »

de uma chave de ignição arrasam-se cidades, eliminam-se populações inteiras. «A guerra tecnológica dos nossos dias é cada vez mais impessoal». A tecnologia distancia o acto do resultado. O horror da morte não deixa rosto individual, mas é difuso e, portanto, torna-se apenas um facto histórico de consciência colectiva, e não um peso na consciência individual de cada interveniente. «O avanço tecnológico aumenta os níveis de devastação e de morte, mas provoca também uma desmaterialização desta. » Outro aspecto que importa salientar nesta evolução é «o facto de as guerras tecnológicas deixarem de ser, primariamente, uma conquista territorial». O território continua a ser importante do ponto de vista do controlo e exploração dos recursos naturais, mas a maioria das batalhas decisivas dá-se em meios urbanos. Aqui importa realçar o impacto estruturante que a guerra de guerrilha teve no modo de organização, na definição das estratégias, no tipo de armas e apoio logístico a operar pelos exércitos convencionais. As guerrilhas podem alimentar resistências que minam a solidez e a moral de um exército estandardizado. Pouco a pouco, os exércitos convencionais foram incorporando estes desafios no seu modo de funcionamento. A estratégia dos 3Ts (transportes, tecnologia, telecomunicações), central às operações de guerrilha urbana, foi gradualmente traduzida e adaptada por exércitos convencionais. Prova disso é o esforço financeiro, sobre tudo a nível de I&D, que os EUA têm disponibilizado para a concretização da sua nova doutrina militar, network-centric warfare, «que procura explorar os avanços tecnológicos ocorridos nas tecnologias da informação e da comunicação e nas tecnologias da integração de sistemas com o objectivo de aperfeiçoar e tornar mais ágeis os processos de reconhecimento dos teatros de operações e os processos de tomada de decisões associados à coordenação das operações militares» (p. 196). «A tendência para a utilização crescente nos confrontos armados das chamadas ‘armas do futuro’ que eliminem os sistemas de comunicação, a tecnologia do inimigo, sem danificar materialmente as cidades, que passam a ser um espólio (não necessariamente tangível) dos exércitos, e para ‘a generalização da guerra electrónica’ [pp. 29-30] é exemplo da tentativa das grandes potências para procurarem meios de intervenção mais adequados às ameaças e aos teatros de operações do século XXI.» Resta saber se alguns dos factores que no passado compensavam o desequilíbrio tecnológico entre as partes beligerantes (e. g., número, motivação, ideologia, etc.) continuarão a ter algum peso. Sobre este ponto, o autor aconselha uma prudência clausewitziana: «Os soldados são equipados com tecnologias cada vez mais complexas que podem tornar-se facilmente inoperantes » (p. 197).

«Le nuove armi da fuoco cambiano le guerre, ma sono le guerre che cambiano il mondo» (Pietro Aretino, 1492-1556). «Não só a guerra, mas também o modo como os países industriais se preparam para a guerra provoca profundas alterações na vida e organização das sociedades.» A nível político, assiste- se a um endurecimento da ordem interna e à adopção de um conjunto de restrições aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Na actual conjuntura internacional, em que a ameaça do terrorismo passou a ser uma prioridade das políticas de defesa e segurança das democracias ocidentais, a suspensão de direitos de cidadania não é apenas uma possibilidade, mas é já uma realidade. A nível económico, alteram- -se os modos de produção, o tecido industrial, e geram-se novas oportunidades de acumulação de riqueza. Assiste-se também a uma tendência para a adopção de medidas de auto- -suficiência e o desenvolvimento de modelos dirigistas da economia. A nível sócio-cultural, as transformações são também profundas: surgem novas clivagens sociais e extinguem- -se velhas ordens; mudam-se os gostos e as artes; alteram-se os usos e costumes, os hábitos alimentares, a educação, a vida familiar, etc. A maioria dos avanços tecnológicos directa ou indirectamente relacionados com a arte da guerra — o teflon, os microprocessadores, a Internet, os sistemas GPS — acaba por ter utilidade civil, melhorando a qualidade de vida dos cidadãos; contudo, a reconversão da indústria de armamento não é um processo fácil nem consensual. Os que pensavam que o final da guerra fria representava o início de uma época de desarmamento e de reconversão à escala mundial acabariam por ver frustradas as suas expectativas. Após uma redução drástica de cerca de 30% desencadeada pelas maiores potências mundiais no período imediato ao fim da guerra fria seguiu-se uma estabilização dos orçamentos de defesa e, mais recentemente, uma nova escalada dos gastos. Qual o impacto que isso provocará na economia e, em particular, nos complexos militares industriais das principais potências? Que novas potências se afiguram no horizonte? Que impacto (quantitativo e qualitativo) poderá esse «regresso às armas» ter no domínio da produção e da proliferação de armas? Estas são algumas das questões tratadas pelo autor com grande acuidade.

Em todo este processo de reajustamento das indústrias de armamento, o autor nota, com algum desalento, «a incapacidade da União Europeia de proceder à criação de um mercado europeu de armamento e à reestruturação empresarial, de base nacional, mediante estratégias de fusões e aquisições e das alianças estratégicas à luz dos processos que tiveram lugar, com sucesso, nos EUA». O actual orçamento plurianual da UE deveria dedicar um programa de apoio à I&D militar de valor não inferior a 10% dos programas europeus de I&D civil; contudo, o grande esforço financeiro desenvolvido neste domínio continua a ser «um assunto da exclusiva competência dos países membros» (p. 89). O processo de integração europeia, que teve início na vontade comum dos Estados fundadores, com o apoio da comunidade empresarial do sector extractivo, de governarem comummente duas matérias-primas de aplicação bélica (o carvão e o aço), foi incapaz de superar a barreira hobbesiana do medo, da suspeita, da inveja, que conduzisse «a uma indústria verdadeiramente europeia baseada numa efectiva divisão do trabalho entre os vários países europeus» (p. 143) e a um mercado único de defesa. Como notou e bem o autor, «o artigo 223.º do Tratado de Roma, que transitou integralmente para o artigo 296.º do Tratado de Amesterdão, ‘é um obstáculo definitivo a qualquer tentativa de europeização das políticas de segurança e defesa na Europa’ e ‘uma das mais importantes derrogações às regras do mercado único europeu» (p. 144).

Por último, «o conceito de potência permaneceu, ao longo dos séculos, associado ao equilíbrio conseguido entre a capacidade de produção de material bélico e a capacidade de suster economicamente esse esforço». Também sobre este ponto, os ensinamentos do passado são ainda pertinentes: «I danari sono il verbo della guerra, più della politica» (Macchiavelli, 1469-1527). O autor destaca uma série de factores que determinam a execução das despesas militares nos vários países, entre as quais: as estratégias geopolíticas prosseguidas; o grau de coesão política interna no que respeita ao prosseguimento dessas estratégias; o nível da riqueza nacional; a situação económica, financeira e orçamental; o peso do aparelho produtivo militar no conjunto das respectivas economias; os compromissos internacionais assumidos. «É de salientar a combinação complexa entre a alegada ‘necessidade’, manifestas ‘paixões’ e ‘interesses’ concorrenciais que se disputam pela definição e condicionamento da aplicação dos recursos destinados a fins militares.»

O livro acaba com uma breve análise sobre as recentes transformações na indústria militar portuguesa à luz dos vários desenvolvimentos internacionais, sugerindo algumas «dicas» às partes interessadas nesse processo (Estado e indústria) e desbravando terreno para mais estudos neste domínio.

 

Luís de Sousa

 

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