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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.184 Lisboa  2007

 

Maria Manuela Cruzeiro, Rui Bebiano Anos Inquietos. Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974), Porto, Edições Afrontamento, 305 páginas.

 

No panorama dos estudos relativos ao movimento estudantil português — e em particular coimbrão — saiu mais uma interessante contribuição de Rui Bebiano em colaboração com Maria Manuela Cruzeiro. Ambos os autores têm dedicado grande parte do seu trabalho à análise da oposição à ditadura e aos seus protagonistas.

Rui Bebiano é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra — onde integra também o Instituto de História e Teoria das Ideias — e investigador no Centro de Estudos Sociais, onde é co-responsável pelo projecto de investigação «Culturas Juvenis e Participação Cívica: Diferença, Indiferença e Desafios Democráticos».

Entre as suas obras sobre o movimento estudantil destaca-se O Poder da Imaginação. Juventude, Rebeldia e Resistência nos Anos 60 (Coimbra, Angelus Novus, 2003), que, como Anos Inquietos, mas através de instrumentos diferentes, consegue reconstruir a atmosfera da contestação durante os anos 60, a sua carga de ruptura a nível cultural e social — além de político — e o seu equilíbrio específico entre temáticas internacionais e condições locais.

Maria Manuela Cruzeiro é investigadora no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, onde é responsável pelo projecto de história oral, no âmbito do qual realizou dezenas de entrevistas e estudos das principais figuras e acontecimentos quer do período revolucionário, quer da oposição e resistência ao Estado Novo. Autora, entre outros trabalhos, de monografias sobre alguns dos protagonistas da revolução, como Costa Gomes e Vasco Gonçalves, também colaborou em obras específicas sobre o 25 de Abril, como O Pulsar da Revolução — Cronologia da revolução de 25 de Abril, 1973-1976 (Porto, Afrontamento, 1997) e 25 de Abril — Outras Maneiras de Contar a Mesma História (Lisboa, Notícias, 2000).

A publicação de Anos Inquietos vem enriquecer os estudos sobre o movimento estudantil português, relativamente ao qual a investigação ainda tem muito para dizer. Além de trabalhos como os de Álvaro Garrido (Movimento Estudantil e Crise do Estado Novo: Coimbra 1962, Coimbra, Minerva, 1996), de Maria Cândida Proença (Maio de 1968. Trinta Anos Depois. Movimentos Estudantis em Portugal, Lisboa, Colibri, 1999) e da já citada obra de 2003 de Rui Bebiano, não existem muitas outras monografias sobre o tema, nomeadamente sobre a sua dimensão nacional e internacional, sendo a maioria das investigações centrada sobre o caso específico de Coimbra.

Neste sentido, embora tenha também uma abordagem local, a Universidade de Coimbra, Anos Inquietos tem uma perspectiva mais ampla. Nos relatos dos protagonistas fundamental é a vivência do «algures», quer se trate do «além-mar», quer de outras cidades portuguesas ou ainda de outros países europeus, para os quais vários protagonistas viajaram com uma bolsa de estudo, com o grupo do teatro ou para fugir ao serviço militar e à guerra. Este «algures » parece, aliás, fundamental no percurso de evolução e de tomada de consciência política dos protagonistas, pelo contacto com ideias, situações e pessoas que o meio de Coimbra, ainda sufocado pelo estrito controlo social, político e cultural do regime, nunca teria veiculado.

Antes de passar ao próprio conteúdo do livro é oportuno sublinhar que Anos Inquietos não é em si uma obra analítica ou o resultado de uma investigação — ainda que ambas estejam sempre presentes, seja na escolha das pessoas a entrevistar, seja na formulação das questões —, mas é uma narração em que as vozes dos protagonistas descrevem percursos de vida nos quais a universidade, mas sobretudo a crise académica, constitui o epicentro. Trata-se de sete entrevistas conduzidas por Maria Manuela Cruzeiro entre 2004 e 2005, feitas a protagonistas do movimento estudantil de Coimbra desde 1961 até 1974, um período de tempo que abrange as três grandes crises académicas de 1962, 1964-1965 e 1969. A primeira parte de cada entrevista é dedicada a fornecer um perfil do entrevistado antes do seu contacto com a realidade académica e com o movimento estudantil, através de questões relativas às suas origens sociais e vida familiar. Passa-se depois a considerar o ingresso na faculdade e, para os que não nasceram em Coimbra, o embate com a cidade.

A parte relativa ao associativismo estudantil é claramente a mais desenvolvida, sobretudo no que diz respeito à análise dos percursos de socialização política que levam ao activismo, os quais talvez constituam o verdadeiro objecto de estudo da obra. Trata- -se de um processo que em alguns casos é coerente com a tradição de oposição familiar, noutros representa algo de completamente inovador quanto às próprias raízes. Sempre fundamental é, todavia, por um lado, o exemplo das grande figuras, quase míticas, da resistência portuguesa (como Álvaro Cunhal), por outro, a exigência de abertura do espaço cultural e social — sufocado pela permanência de códigos de comportamento conservadores e pela rigidez das normas autoritárias — e, por fim, a influência dos acontecimentos e da literatura política internacional. As entrevistas aprofundam ainda as consequências pessoais da participação política — sempre mais dramáticas para os rapazes, que, além da prisão, podiam sofrer a guerra colonial — e, por último, os percursos profissionais e políticos depois do 25 de Abril, evidenciando os elementos de continuidade quanto às escolhas ideológicas feitas durante os anos do activismo estudantil.

Os critérios de selecção dos entrevistados não são explicitados, mas é evidente que os autores procuraram incluir no grupo figuras muito diferentes entre si — quer quanto à própria actividade política, quer, nomeadamente, quanto às origens familiares e à proveniência —, conseguindo reconstruir, através de uma abordagem qualitativa e da metodologia da história oral, algumas das possíveis trajectórias de formação política dos protagonistas do movimento estudantil. Além disso, a obra também fornece traços importantes para eventuais futuras análise quantitativas do fenómeno, não existindo ainda no panorama português estudos deste tipo — no sentido, por exemplo, de determinar com mais precisão a influência das origens familiares, quer a nível social, quer político, na formação de uma atitude dissidente —, como seja, por exemplo, o trabalho relativo ao caso espanhol realizado por José Maria Maravall (Dictadura y Disentimiento Político: Obreros y Estudiantes bajo el Franquismo, Madrid, Alfaguara, 1978).

Os entrevistados têm origens familiares e provêm de lugares diferentes, com uma idade entre os 56 e os 60 anos, e só em alguns casos participaram na mesma fase da crise. É natural que a idade pessoal tenha uma influência no foco da entrevista, pois a luta académica em Coimbra mudou durante toda a década de 60 e, ainda que os elementos comuns sejam muitos, a crise de 1962 foi algo de diferente, por exemplo, da de 1969. Entre os elementos de continuidade emerge claramente a repressão, quer através de cargas de polícias contra manifestantes, quer através de verdadeiras invasões do espaço universitário e da prisão dos activistas. Comuns são ainda algumas formas de luta, como o «luto académico » e a greve aos exames, assim como parece constante a exigência de defesa da autonomia dos organismo associativos dos estudantes, em primeiro lugar da Associação Académica.

Quase em todos os casos é a limitação desta autonomia por parte do governo a desencadear a crise. Ocorreu por exemplo em 1962, quando a contestação — que de facto já tinha começado nos últimos meses de 1961, com a prisão de vários estudantes por terem manifestado posições contra a guerra colonial — eclodiu em Março depois da proibição do Dia do Estudante. Como sempre acontece — e como lembram alguns entrevistados, como a jurista Eliana Gersão —, a violenta repressão teve o êxito de exacerbar e ampliar o movimento, que em Junho chegou a pôr em causa o Decreto-Lei n.º 40 900, de 1956, o qual determinava um controlo do governo sobre a eleição dos dirigentes associativos.

Voltando à obra, são duas as mulheres entrevistadas: Eliana Gersão e Fátima Saraiva. A primeira, originária de Coimbra, licenciou-se em Direito numa altura em que os estudos jurídicos ainda eram considerados uma questão masculina. Participou na crise académica de 1962 e na sua formação teve bastante importância o meio familiar, caracterizado por uma grande abertura cultural, ainda que não directamente política. Como muitos outros representantes do movimento estudantil, começou o seu percurso numa associação católica, no seu caso a JUC, afastando-se depois para entrar no conselho feminino da AAC e para integrar o Centro de Iniciação Teatral da Universidade de Coimbra.

Fátima Saraiva, geógrafa, provém, por seu lado, de uma família bastante conservadora de Castanheira de Pêra. Frequentou o liceu em Lisboa, onde teve a possibilidade de ampliar os seus horizontes culturais, uma abertura que ela reconhece como bastante importante no seu percurso de adesão a valores e ideais políticos opostos aos do seu meio familiar. No ambiente coimbrão, destacou-se por ir contra todas as regras consideradas «adequadas» para uma rapariga — como, por exemplo, não «frequentar os cafés» — e participou nas crises de 1964 e de 1969.

Os relatos de Fernando Martinho e Carlos Baptista são significativos pelo esboço da África que trazem. Nascidos em famílias — embora de meio social diferente — de colonos portugueses, ambos sublinham a maior abertura cultural das colónias, onde o controlo do regime, pelo menos até ao começo da guerra colonial, não chega a ser tão eficaz como na metrópole. Esta abertura e a experiência diária do racismo e da discriminação dos negros foram fundamentais para a formação política, assim como o contacto com militantes dos movimentos de libertação.

Em Coimbra, onde chegou em 1961, Fernando Martinho integrou uma célula do MPLA que tinha como objectivo recrutar jovens angolanos para o movimento de libertação e organizar uma rede de deserção. Empenhado nas actividades da Associação Académica, foi preso pela PIDE durante alguns meses. Como outros dois entrevistados, Pio Abreu e José Cavalheiro, sofreu a experiência da guerra colonial, embora tenha conseguido evitar um envolvimento directo nas acções militares graças a sua profissão de médico.

Médico, no seu caso psiquiatra, é também Pio Abreu, originário de Santarém, onde nasceu, numa família bastante católica e conservadora, em que a política era uma coisa proibida. Chega a Coimbra em 1962, em plena crise académica, e liga-se, como Fátima Saraiva, ao Conge, uma estrutura que será fundamental na crise de 1969. Também nesta entrevista a experiência da guerra na Guiné ocupa um lugar essencial, em que se salienta sobretudo a forte contradição entre a formação política do entrevistado e a participação num conflito que se baseava em fundamentos completamente opostos. Assim como Fernando Martinho e José Cavalheiro, Pio Abreu descreve a sua atitude de «boicote passivo» das acções militares, favorecida, também neste caso, pela sua formação de médico, que sempre tentou desenvolver segundo a sua própria ética contra a do exército.

José Cavalheiro, engenheiro, nasceu no Porto, numa família de esquerda que contribuiu para a sua formação política sobretudo no sentido do desenvolvimento de um espírito crítico face à verdade imposta pelo regime. Chegado a Coimbra em 1968, desenvolveu um papel de destaque na crise que eclodiu no ano seguinte, durante a qual foi preso e enviado para a tropa, primeiro em Mafra e depois em Moçambique. Na crise de 1969 participou também o pediatra Luís Januário, o mais jovem entre os entrevistados. Nasceu em Coimbra, numa família com uma clara tradição de oposição ao Estado Novo, pois o seu avô materno, anarquista, morreu no Tarrafal, enquanto o pai, compagnon de route do PCP, sofreu alguns meses de prisão em 1962.

A actividade política de Luís começou logo no liceu e continuou na Faculdade de Medicina, onde pertenceu, antes de aderir ao PCP, aos grupos mais radicais, sobretudo trotskistas, apelidados de «contestas » pelos outros estudantes. Interessante é a visão que este entrevistado traz dos organismos estudantis que tinham sido fundamentais nas outras crises, como o Conselho das Repúblicas, que, em 1969, aos seus olhos, já aparece como algo de antigo, como um grupo de «veteranos dos copos, uma coisa arcaica».

É com esta entrevista que melhor nos apercebemos da clivagem geracional que separa os protagonistas das crises de 1962, 1964-1965 e 1969, em que todas as temáticas são renovadas também à luz dos acontecimentos internacionais e sobretudo do Maio francês. Diferente parece ainda a vivência do dia a dia do activismo, a dimensão quase «lúdica», festiva, da política, que não se conhecia antes. Assim, entre os protagonistas das crises anteriores há quem defina o movimento de 1969 como «uma bolha», um acontecimento folclórico, contestando-lhe sobretudo o abandono da luta de classe e a ingénua confiança na força revolucionária do «estudantariado». Mas, se o movimento tinha mudado, a repressão continuava a mesma e Luís Januário, preso pela PIDE, no dia em que o homem chegou à Lua estava numa cela, sem poder assistir ao evento, uma situação que, significativamente, também outros entrevistados lembram. Assim, esta imagem de forte carga simbólica parece quase resumir em si o conteúdo mais profundo das várias experiências narradas pelos entrevistados, a luta contra aquele obscurantismo social, cultural e político que o regime continuava a perpetuar, procurando bloquear o poderoso e irreversível processo de mudança e modernização que estava a envolver também a sociedade portuguesa.

 

Guya Accornero

 

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