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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.183 Lisboa abr. 2007

 

Zygmunt Bauman, Confiança e Medo na Cidade, Lisboa, Relógio d'Água, 2006.

Zygmunt Bauman, um dos mais prolíficos sociólogos da actualidade, oferece-nos neste pequeno volume alguns textos em que discute o seu tema de eleição — a passagem de uma modernidade «sólida» ou «pesada», caracterizada pela certeza no progresso tecnológico e científico para uma modernidade «líquida», cujas traves-mestras são a velocidade, o hibridismo e a imaterialidade — por relação à categoria de «cidade». O tema que une os três pequenos textos aqui reunidos é a circunstância de que o carácter «líquido» das sociedades contemporâneas encontra a sua expressão mais pronunciada nas conturbações do Ocidente, o principal locus sociológico da modernidade líquida.

A cidade, que durante a primeira crise da modernidade (Peter Wagner) já havia captado a atenção de clássicos da sociologia como Weber ou Simmel, parece regressar novamente ao centro da agenda sociológica numa era em que a modernidade enfrenta uma segunda crise de contornos algo semelhantes aos da anterior crise. Se a passagem do século xix para o século xx assistiu à erosão das certezas do positivismo e das promessas deterministas de progresso (o clima de pessimismo cultural desta época viria a alcançar o seu clímax nos campos de batalha da Grande Guerra, uma experiência traumática para toda uma geração, a que não escaparam figuras como Weber, Durkheim ou Mead), nos nossos dias raros são os autores cuja obra seja marcada pelo optimismo histórico, pela crença nas possibilidades de controlo sobre as consequências da acção humana, ou que faça referência a um qualquer mecanismo de progresso histórico. Pelo contrário, e Bauman é desta perspectiva um autor bem representativo do espírito do nosso tempo, o que une a maioria das teorias sociológicas contemporâneas é a atenção dedicada à contingência, o cuidado em evitar soluções rígidas, dicotómicas e deterministas e a concomitante tentativa de superar as antinomias que definiram o pensamento moderno. Claro está que a actual diversidade de propostas se explica justamente pela pluralidade de respostas a estes desafios. Dado o propósito desta recensão, deixarei para uma outra ocasião o desenvolvimento desta minha observação; por ora interessa-nos discutir a posição relativa de Bauman no quadro das teorias sociológicas contemporâneas. Apesar de não subscrever uma posição pós-moderna tout court, Bauman assume que estamos a viver uma nova fase da história da modernidade e que, por conseguinte, os conceitos sociológicos que herdámos dos nossos antecessores carecem de uma profunda reformulação.

No primeiro dos três textos aqui reunidos, Confiança e Medo na Cidade (que dá título ao livro), Bauman começa por discutir o tema do medo. A necessidade de reconfiguração conceptual acima aludida assume neste caso a seguinte forma: se, no contexto da modernidade sólida, era ao Estado que cabia a regulação do medo de origem social a que Freud se referia em Civilization and its Discontents, agora, no quadro da modernidade líquida, «a dissolução da solidariedade assinalou o final da luta contra o medo adoptada pela modernidade sólida» (p. 16). Por outras palavras, a crise do Estado-providência, iniciada em meados dos anos 70 e agravada desde a queda do muro de Berlim, significa que os esforços político-económicos de cada comunidade nacional em minorar os efeitos negativos do processo de desenvolvimento económico através de mecanismos universais (pelo menos, no âmbito desse território) de segurança social, saúde e educação são cada vez menos eficazes à medida que o processo de globalização económica alastra e se aprofunda. Escreve Bauman: «Num planeta que constantemente se mundializa, a política tende a ser cada vez mais, e de forma cada vez mais apaixonada e consciente, local»» (p. 27). Daí o paradoxo identificado por Manuel Castells em The Information Age, vol. ii (1987), o de que «a política está cada vez mais centrada no que é próprio, num mundo cada vez mais estruturado por factos internacionais». (cit. por Bauman, p. 29). A cidade emerge, na modernidade líquida, como o palco político por excelência dos novos conflitos políticos em que tendências e fenómenos globais se fazem directamente sentir, já sem a mediação dos Estados-nações, a nível local.

Um dos pontos altos da argumentação de Bauman neste volume surge logo a seguir. Após discutir o estudo da socióloga brasileira Teresa Caldeira sobre os condomínios privados de São Paulo (pp. 35 e segs.), Bauman introduz a distinção entre mixofobia (o receio de se estar em co-presença física com desconhecidos) e mixofilia (justamente o oposto, isto é, a obtenção de prazer através da experiência de convivência com estranhos), remetendo para Richard Sennett e o seu The Uses of Disorder (1996). A sua tese é clara. A cidade é simultaneamente produtora de mixofilia e mixofobia. Assim, uma vez que «a paranóia mixofóbica é um círculo vicioso que age como uma profecia portadora do gérmen da sua própria realização» (p. 46), não devemos perder de vista o poderoso argumento humanista de Hans-Georg Gadamer em Verdade e Método de que «o entendimento mútuo nasce da `fusão de horizontes', dos horizontes cognitivos, quer dizer, daqueles que se delineiam e expandem à medida que a experiência vital se vai acumulando. A fusão exigida pelo entendimento mútuo só pode resultar da experiência compartilhada, e compartilhar a experiência é inconcebível se, primeiro, se não compartilhar o espaço» (p. 47). A cidade, para Bauman, é o palco privilegiado para a experiência de entendimento transcultural através da partilha do território — uma experiência tão importante (para evitar as tragédias humanitárias que marcaram o século xx) quanto frágil (à luz das persistentes tendências para a xenofobia, racismo e fechamento social). Importa, pois, clarificar as condições necessárias para que a cidade possa efectivamente desempenhar essa função.

Esta importante tese é retomada e desenvolvida nos dois textos seguintes. Obstáculos à fusão de horizontes sugerida por Gadamer vão surgindo um pouco por todo o lado, dos SUVs, que constituem neste início de século cerca de metade das vendas de automóveis nos EUA, aos condomínios fechados. Tais obstáculos, hoje considerados parte integrante da experiência urbana para um número crescente de indivíduos, parecem sugerir uma mudança social sem precedentes na história da humanidade. Bauman cita Diken e Laustsen a este respeito: «O vínculo milenar entre civilização e barbárie inverte-se. A vida urbana transforma-se numa selva onde impera o terror, acompanhado de um medo omnipresente» (cit. por Bauman, p. 59). Com o intuito de minorar ao máximo o medo, urbanistas suecos construíram em Estocolmo durante os anos 50 e 60 um conjunto de bairros comunitários em que tudo estava «previsto, calculado e administrado»; a reacção das gerações mais novas foi a esperada — «mergulharam de cabeça nas águas turbulentas do mercado do alojamento privado» (p. 65). Pergunta-se Bauman: «Será possível eliminar o medo suprimindo igualmente o tédio?» p. 65.

A resposta de Bauman a esta questão, que interessa a uma miríade de actores sociais (dos autarcas aos urbanistas, passando pelo cidadão comum), é positiva. Bauman não hesita em fazer a apologia do espaço público como a essência do cosmopolitismo e abertura ao outro. As praças, os jardins e as ruas das nossas cidades «são lugares onde os desconhecidos convergem e, desse modo, condensam e resumem os traços característicos da vida urbana. É nos espaços públicos que a vida urbana, e tudo o que a diferencia de outros tipos de existência colectiva, alcança a sua expressão máxima» (p. 67). Noutros termos, a mixofilia pode e deve ser incentivada pelos autarcas, urbanistas e demais actores com responsabilidades em termos de ordenamento do território urbano através da criação e manutenção de espaços públicos. Sucede que estes espaços públicos, para cumprirem esta função de mixofilia, devem renunciar «tanto à ambição moderna de apagar as diferenças do mapa como à tendência pós-moderna de fossilização dessas mesmas diferenças através da separação e do afastamento recíprocos. Falamos dos lugares públicos que reconheçam o valor original e enriquecedor da diversidade e que animem pessoas que são diferentes a entabularem um diálogo que valha a pena» p. 68.

É justamente esta possibilidade de diálogo profícuo e mutuamente enriquecedor que Bauman discute no terceiro e último texto, apropriadamente intitulado «Viver com estranhos». O equivalente funcional da ideia de «Europa fortaleza», fechada às vagas de emigrantes do Sul e do Leste, é, à escala da cidade, a ideia de «condomínio fechado». As consequências sociológicas de tais instrumentos de fechamento social são tão profundas quanto preocupantes. Bauman recorre uma vez mais a Sennett, que demonstrou que, «quanto mais se separam as pessoas nesses bairros fechados de homens e mulheres que se parecem todos uns com os outros, menos fácil se torna para elas contactar com estranhos» (p. 81). Num mundo crescentemente globalizado, em que as distâncias diminuem a cada dia por acção da evolução tecnológica, o perigo de camadas crescentes da população se autoguetizarem é óbvio. As tendências de mixofobia, tão naturais e sociologicamente inescapáveis como as de mixofilia, devem ser estudadas com a maior atenção, pois, como assinala Bauman, é delas que advém um dos maiores desafios dos nossos tempos — sermos capazes de viver lado a lado com um número sem precedentes de desconhecidos em locais influenciados por fenómenos globais que não podemos de todo controlar. A ilusão de controlo que é sistematicamente usada para vender condomínios fechados ou essas «cápsulas defensivas» que são os utilitários desportivos (os acima referidos SUVs) vem sempre acompanhada de uma promessa de distinção social que não se distingue de outras formas de auto-exclusão social. O verdadeiro preço a pagar é, como Bauman tão eloquentemente nos ensina neste livro, uma paranóia de mixofobia que se reproduz a si própria. A solução passa por nós, como que navegando por entre Cila e Caríbdis, tentarmos evitar quer o tédio opressivo das soluções modernistas, quer o medo das «selvas urbanas» em que tantas metrópoles dos nossos dias se vêm transformando.

 

Filipe Carreira da Silva

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