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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.183 Lisboa abr. 2007

 

Yan Yunxiang, Private Life under Socialism. Love, Intimacy and Family Change in a Chinese Village, 1949-1999, Stanford, Stanford University Press, 2003.

Em 1929, no prefácio da obra A Vida Sexual dos Selvagens no Noroeste da Melanésia, do famoso antropólogo Bronislav Malinowski (1884-1942), o psicólogo britânico Havellock Ellis (1859-1939) sugeria que o livro só vinha confirmar a ideia de que o domínio até então praticamente virgem da «vida sexual dos selvagens» — ou o que hoje se entenderia por «vida privada de povos tribais ditos não modernos» — teve de esperar muito tempo para ter o seu grande «historiador natural». Julgo que o mesmo se poderia dizer, em muitos aspectos, do livro que aqui apresentamos no que diz respeito à vida privada na China rural. Vida Privada sob o Socialismo representa efectivamente um grande acontecimento editorial tanto no domínio mais estrito dos estudos etnográficos da China rural contemporânea como no domínio mais amplo dos estudos etnográficos do parentesco, da família e da vida privada no século xx. Trata-se, na minha opinião, de uma das melhores etnografias existentes sobre família e vida privada numa aldeia chinesa, contendo um significativo corpo de dados de primeira mão referentes a nada mais nada menos do que às últimas cinco décadas de socialismo na República Popular da China (RPC), incluindo o primeiro período maoísta (1949-1976), de reformas colectivistas à porta fechada, e o segundo período dito pós-Mao (1976-), em que foi implementado todo um conjunto de reformas de mercado visando a mais rápida modernização, industrialização e crescimento económico da sociedade (v. capítulo 1 para uma visão de conjunto das várias etapas desta aventura socialista).

Vida Privada sob o Socialismo é o mais recente livro de Yan Yunxiang, um antropólogo chinês radicado nos Estados Unidos (UCLA), que já anteriormente nos tinha oferecido em The Flow of Gifts (1996) uma etnografia do sistema de dádivas da China rural na qual a temática do parentesco (no sentido mais lato do termo) já estava também muito no centro da sua atenção. O percurso intelectual de Yan deverá, aliás, ser situado no seio de uma recente vaga inovadora de estudos do parentesco na antropologia da China que tem vindo a questionar a validade etnográfica de velhos (e ainda hoje dominantes) modelos de parentesco e de família e que foi particularmente estimulada:

1. por um lado, pela abertura da RPC e pelos enormes desafios de terreno levantados pelo extraordinário impacto sócio-económico das reformas estatais do período pós-Mao;

2. por outro lado, por todo um conjunto de novas tendências analíticas na antropologia contemporânea que tem procurado redefinir o domínio do parentesco de uma forma mais universalista e actual, capaz de dar melhor conta da diversidade histórica e cultural da experiência humana e de melhor corresponder aos reptos intelectuais lançados seja pelos novos achados das ciências cognitivas, seja pela crescente popularidade de novas tecnologias de reprodução e de novas estruturas familiares nas sociedades industrializadas.

Como veremos, a grande contribuição do novo livro de Yan para esta recente vaga inovadora de estudos de parentesco reside precisamente no facto de o seu enfoque primordial não ser o domínio até aqui sempre privilegiado da «esfera pública» do parentesco, mas o domínio claramente negligenciado da «esfera privada»: aquela «zona de imunidade para indivíduos», como o autor (p. 9) lhe chama, no centro da qual se encontra a família e a experiência doméstica da emocionalidade e da privacidade nos seus vários registos possíveis. Trata-se de uma nova abordagem antropológica — claramente inspirada no trabalho de historiadores, como Philippe Ariès e Georges Duby, sobre a história da vida privada na Europa — que está a pedir mais atenção histórico-etnográfica ao mundo da vida privada chinesa. Mas passemos de imediato à apresentação daquelas que são as duas questões centrais deste livro.

Tendo em conta a proeminência ideológica da família na civilização chinesa, o estudo da família e da mudança familiar sempre esteve muito no centro das reflexões dos estudiosos da China rural (como, aliás, da Europa rural). A verdade é que, como o autor nota logo na introdução (pp. 1-13), grande parte desta literatura dá a impressão reducionista de que o «sistema familiar chinês» constitui uma estrutura corporativa atemporal cujos membros não possuem qualquer espécie de vida privada familiar ou individual, uma vez que são meros instrumentos de uma forma de racionalidade económica extrema assente numa estrutura linhageira de descendência e de sucessão patrilineares. A primeira questão do livro é, pois, a de averiguar por que é que a representação dominante do «sistema familiar chinês» é tão corporativista, economicista e racionalista: será que os membros de famílias chinesas rurais não possuem vidas privadas e são totalmente indiferentes ao mundo da intimidade, da sexualidade e das emoções? Respondendo negativamente a esta primeira questão, Yan levanta ainda uma segunda questão fundamental que se prende com a natureza histórica da vida privada humana e que nos transporta muito directamente para o próprio percurso biográfico do autor, como ele o apresenta. Logo quando o autor tinha pouco mais de 12 anos de idade, no início da revolução cultural (1966-1976), a sua família foi forçada a mudar-se de Beijing para a aldeia natal do pai, na província de Shandong (Leste da China). Depois de aí viver com os pais durante cerca de cinco anos, Yan seria obrigado a mudar-se em 1971 para outra aldeia, na província de Heilongjiang (Nordeste da China), onde viveria durante cerca de sete anos até receber uma bolsa para estudar na Universidade de Beijing e, depois, na Universidade de Harvard. É sobre esta aldeia, a aldeia de Xiajia, que Yan tem trabalhado ao longo dos anos, e em muitos aspectos o seu novo livro é o resultado da sua confrontação directa com a questão de mudança nesta aldeia. Trata-se de uma tentativa de responder etnograficamente à questão de saber como é que a estrutura familiar e a vida privada dos residentes desta aldeia se têm transformado (se é que se têm transformado de todo) ao longo das últimas décadas. Será que a vida privada é um fenómeno recente na história da China rural, ou será que é uma realidade íntima e secreta que sempre existiu mas que tem vindo a tornar-se mais visível durante as últimas décadas? Qual é a relação entre a evolução da vida privada e a das estruturas familiares? Será que os padrões de mudança na China rural socialista são os mesmos que foram encontrados por historiadores, sociólogos e antropólogos da família no processo de industrialização da Europa?

Metodologicamente, o autor sugere que uma das melhores maneiras de responder às duas grandes questões que levanta é através da realização do que designa por «etnografia centrada no indivíduo» (p. 10), isto é, uma forma de etnografia cujo enfoque principal é mais na agência e experiência individuais do que na estrutura social ou nas normas culturais e que por isso mesmo depende imenso de trabalho do campo repetido e de longa duração numa mesma comunidade. O resultado desta metodologia em termos de dados é absolutamente espantoso. Julgo, no entanto, que, das duas questões acima mencionadas, o autor é mais convincente a responder à primeira na forma como articula os seus dados. Comecemos então por essa primeira questão.

Como o autor nota no prefácio, existem três modelos antropológicos fundamentais da família chinesa e todos eles pecam, por assim dizer, por aquilo que tem vindo a designar-se por «falácia corporativa». O modelo económico — proposto principalmente por antropólogos sensíveis às questões económicas — olha para a família chinesa como uma organização doméstica corporativa fundamentalmente caracterizada por uma lógica de gestão económica assente na acumulação dos rendimentos de todos. O modelo político — proposto sobretudo por antropólogos de orientação marxista e/ou sensíveis à questão feminista — olha para a família chinesa como uma organização doméstica corporativa essencialmente caracterizada por desigualdades profundas (e. g., de género, de geração) nas suas dinâmicas de poder. Finalmente, o modelo cultural — provavelmente, o mais influente e também o mais elaborado por membros da elite literária e cultural chinesa — define a família como uma organização doméstica corporativa cuja grande particularidade reside sobretudo na centralidade da relação patriarcal pai-filho e do princípio de descendência e de sucessão patrilineares. Mas será que a falta de atenção nestes modelos à questão da experiência e agência individuais tem a ver com razões culturais fundamentais que fazem com que esta família tenha assim tão pouco espaço para a florescência da vida privada? O autor julga que não. Ele sugere que, se a família chinesa tem sido representada como uma organização corporativa de orientação fundamentalmente económica, é porque grande parte dos estudiosos da família chinesa se tem preocupado sobretudo em enfatizar as suas particularidades, acabando por omitir elementos da vida quotidiana que a fariam parecer bem menos sui generis do que eles sugerem. Para o autor, um dos resultados nocivos desta exageração descritiva é que o indivíduo — isto é, o indivíduo cujas emoções, pensamentos, juízos de valor, ideais, etc., o antropólogo sistematicamente confronta no terreno — permanece incompreensivelmente nas margens dos modelos antropológicos dominantes da família chinesa.

Este argumento é particularmente elaborado em termos etnográficos ao longo dos capítulos 2, 3, 4 e 5, nos quais o autor demonstra de forma detalhada, convincente, e por vezes comovente, que os seus interlocutores no terreno (novos e velhos, homens e mulheres) estão longe de serem as máquinas corporativas dos modelos antropológicos tradicionais, mas são também indivíduos com sensibilidades, desejos, vivências sexuais e, acima de tudo, aspirações de autonomia e de privacidade. Veja-se, a título de exemplo, o capítulo 3 e os vários relatos aí citados referentes a experiências individuais de sexualidade e de intimidade na aldeia. Estes relatos demonstram de forma bem clara que a China rural não é, nem nunca foi, «o canto esquecido do amor» dos modelos antropológicos tradicionais. É que, como Yan (p. 75) nota, «qualquer gesto e acto do dia a dia pode ser encarado como um sinal de amor, mesmo se só os que estão envolvidos num contexto interactivo o possam apreciar». Mas o autor não está apenas interessado em demonstrar que a vida familiar chinesa tem uma dimensão mais privada e íntima (mesmo se por vezes secreta), sem a qual a sua dimensão mais pública e partilhada não seria obviamente possível. Ele está também interessado em demonstrar que a forma como esta vida privada se tem manifestado no terreno não foi sempre a mesma, mas tem sofrido importantes transformações ao longo das últimas décadas. Chegamos então à segunda grande questão do livro.

Passo a descrever algumas das principais tendências de mudança documentadas pelo autor ao longo do livro. Logo no capítulo 2, Yan descreve aquilo que designa por «a emergência da família privada» através da cuidadosa documentação de mais de 500 casamentos referentes ao período entre 1949 e 1999. O autor procura demonstrar que, quando se chega aos anos 90, o foco de mudança na selecção de parceiros já tinha passado da questão da sublevação da geração jovem contra o poder parental patriarcal sobre o seu casamento para a questão da saliência da experiência individual do romance e da intimidade. Esta mudança radical é também explorada no capítulo 3, onde o autor examina a popularidade crescente do sexo pré-marital na aldeia e desenvolve o argumento de que a intimidade sexual contribui para o desenvolvimento do amor afectivo. As suas descrições malinowskianas do processo de transformação das formas locais de expressão do amor e de idealização do cônjuge sugerem uma vez mais que tem estado a ocorrer na aldeia uma verdadeira «revolução romântica» no processo de selecção de cônjuges. No capítulo 4, o autor chama a atenção para as transformações ocorridas em três importantes aspectos da vivência da conjugalidade na aldeia (a intimidade e o amor conjugal, a divisão do trabalho e da tomada de decisões e a redefinição do papel do género na relação marital) e sugere que o laço horizontal da conjugalidade tem vindo a substituir o laço vertical da relação pai-filho enquanto eixo central das relações familiares. No capítulo 5, o autor descreve a recente vaga de remodelação de casas na aldeia como o resultado de uma busca espacial da privacidade que representa um desenvolvimento lógico da crescente centralidade do amor, da intimidade e da individualidade na aldeia. O mesmo se pode dizer da crescente importância da propriedade privada individual na política de propriedade familiar da aldeia, realidade essa que é posta em evidência no capítulo 6 no âmbito de uma discussão do processo de transformação dos padrões locais de divisão da família e de transacções de casamento.

No capítulo 7 são ainda examinadas as condições de vida dos mais velhos e o seu sentimento de crise no que diz respeito à sua segurança na velhice. Tomando em conta as posições dos mais velhos e dos mais novos, o autor sugere que a lógica moral de «piedade filial» por detrás do mecanismo tradicional de reciprocidade intergeracional das famílias da aldeia está em crise e está a ser substituída por uma nova lógica moral de «troca balançada» na qual os mais velhos estão a começar a recorrer a estratégias alternativas para investir na sua segurança na velhice, pois já não confiam nos filhos. Esta alegada crise na lógica moral de «piedade filial» é também, como o autor sugere no capítulo 8, uma das possíveis razões por detrás da recente emergência na aldeia de uma nova «cultura da fertilidade» que tem sido marcada pelo aumento do número de famílias que escolhem ter apenas uma criança (seguindo as directrizes algo draconianas da política estatal de planeamento familiar), em vez de tentarem ter muitas crianças e de darem preferência a filhos do sexo masculino (como os valores locais ditos mais tradicionais nos fariam esperar). Enfim, parece claro que as mudanças ocorridas nas últimas décadas nas estruturas familiares e nos padrões de vivência da vida privada da aldeia de Xiajia são simplesmente colossais e ecoam mesmo, em muitos aspectos, todo um conjunto de mudanças similares que têm vindo a ser documentadas um pouco por toda a China urbana. Vejamos agora como o autor interpreta estas mudanças no seu conjunto.

É na conclusão do livro que o autor retoma esta questão e procura elaborar um pouco melhor a sua linha interpretativa, entrando em diálogo com debates fundamentais sobre a relação entre família e modernização/urbanização/industrialização. Neste aspecto, o seu livro mostra uma vez mais ser de interesse não apenas para estudiosos da China, mas também para a comunidade mais alargada de cientistas sociais em geral. O autor sugere que as transformações que ocorreram nas últimas cinco décadas de socialismo na aldeia de Xiajia operaram uma verdadeira transformação estrutural das relações familiares que conduziu ao aparecimento da família privada e das vidas privadas dos indivíduos dentro da família (v. p. 219). Trata-se de uma transformação estrutural que foi largamente posta em marcha pelo estado socialista e que é claramente sintomática de um ponto de viragem fundamental na evolução da família chinesa rural: o triunfo da conjugalidade e da individualidade sobre o regime patriarcal. O autor considera, por isso, que o caso de Xiajia é claramente relevante para a discussão de teses clássicas da sociologia da família como a de William Goode em World Revolution and Family Patterns (1963), que defende a existência de um padrão universal de mudança na história da vida familiar humana segundo o qual o processo de industrialização e urbanização conduzirá inevitavelmente à transformação do «sistema de família extensa» num «sistema de família conjugal». É que, apesar de esta tese ter sido posta em causa por vários estudos históricos demonstrando que as famílias nucleares já existiam na Europa ocidental muito antes da industrialização e também por vários estudos antropológicos em países em desenvolvimento demonstrando que a família extensa pode ajustar-se perfeitamente a economias de mercado em industrialização, a verdade é que a parte mais importante desta tese não é a oposição «família extensa-família conjugal», mas é a sugestão de que existe um padrão universal de mudança em direcção à centralidade da conjugalidade, da individualidade e da emocionalidade na vida familiar. Para o autor, o caso de Xiajia constitui precisamente uma poderosa validação empírica deste último padrão universal de mudança.

Yan sugere ainda que o que torna o caso de Xiajia particularmente interessante não é tanto esta convergência (em muitos aspectos, nada surpreendente), mas a forma particular como ela foi produzida no terreno. O autor chama a nossa atenção a este respeito para o papel fundamental desempenhado neste processo pelo indivíduo e pelas aspirações de autonomia e independência dos mais jovens (as raparigas em particular), papel esse que põe, obviamente, em causa a visão corporativa da família dos modelos antropológicos tradicionais e que põe também em causa (ainda que o autor não o mencione) uma certa tendência na antropologia do parentesco contemporânea para fazer do «indivíduo» uma mera construção cultural euro-americana. O indivíduo de que o autor fala é um indivíduo que não quer mais estar «debaixo da sombra dos antepassados», mas que quer procurar a autonomia e independência da sua família privada, bem como a sua autonomia e independência pessoais. Para o autor, o poder crescente deste indivíduo em aldeias como Xiajia é sintomático do aparecimento no mundo rural pós-Mao de uma China em plena globalização de um novo espírito individualista de origem euro-americana, o qual, apesar de ter sido denunciado durante o período maoísta devido ao seu carácter utilitarista, egoísta e hedonista, acabou por ser reabilitado na era pós-Mao como uma espécie de «mal necessário» para a aceleração do processo de modernização e de industrialização. Trata-se, no entanto, de uma forma de individualismo desequilibrada e incompleta, uma vez que tende a enfatizar os direitos individuais e os interesses pessoais, mas minimizando a importância das obrigações de cada um para com a comunidade e para com os outros indivíduos, e daí o autor falar de uma «crise de civismo». Apesar de concordar plenamente com o autor que é importante chamar a atenção para o papel do indivíduo e da vida privada no estudo do parentesco, acho que é algo prematuro, mesmo se também bastante estimulante, falar de «individualismo» ou de um «triunfo da conjugalidade» na China rural como um todo. Mas a melhor maneira de se entender o que quero dizer é olhar para algumas das questões a que o autor presta menos atenção nas suas conclusões.

O autor presta, por exemplo, menos atenção à questão dos custos em termos de desigualdades sociais do tipo de transformações sociais que descreve. É que só uma pequena parte da população da China rural tem sido directamente afectada em termos materiais por estas transformações. Por exemplo, nem todas as famílias camponesas contemporâneas têm dinheiro e recursos para construir as novas casas (ou os novos «refúgios de privacidade») que o autor descreve no capítulo 5. Uma outra questão a que o autor não presta assim tanta atenção é a questão do papel das relações de parentesco para lá da família conjugal ou extensa nas estratégias económicas de reprodução social dos camponeses, papel esse que pode ser mais ou menos proeminente, mas que está longe de ter perdido a sua centralidade político-económica e simbólica um pouco por toda a China rural pós-Mao. Em zonas como o Sudeste da China, por exemplo, esta centralidade tem mesmo vindo a ser objectificada no terreno na forma de novas «velhas» estruturas e idiomas linhageiros de identidade e de organização social que foram apenas parcialmente dissolvidos durante o período maoísta e que parecem pôr em causa a tese do autor de um «triunfo da conjugalidade e da individualidade». Uma outra questão que o autor não leva assim tão a sério é a de que o processo de transformação social que descreve é um processo ainda em curso sobre o qual apenas se podem fazer conjecturas quanto à sua futura evolução. Afinal de contas, se tivermos em conta, por exemplo, o facto de que muitas das mudanças descritas resultaram em larga medida da impotência económica das gerações mais velhas, bem como da sua incapacidade em se adaptarem com rapidez e eficácia às novas regras do jogo da era pós-Mao, torna-se bem difícil de dizer o que acontecerá quando os jovens de hoje forem velhos e tiverem nas suas mãos as posses e os recursos que têm vindo a adquirir.

Mas aquele que é, provavelmente, o aspecto mais intrigante das conclusões do autor é o seu «individualismo analítico» (a expressão é minha), que o leva mesmo a sugerir que o individualismo — fenómeno que o autor não define de forma precisa, mas que poderá ser entendido como a convicção social generalizada de que o valor e potencial dos seres humanos resulta da sua individualidade — está em plena ebulição na China rural pós-Mao. Se esse é o caso, como explicar, por exemplo, que os jovens de aldeias como Xiajia se sintam intitulados a extrair dinheiro dos pais para se casarem, mas fiquem ainda assim orgulhosos de serem «individualistas» e «modernos» ao fazerem-no? Para o autor, o comportamento destes jovens reflecte em muitos aspectos a forma como o individualismo euro-americano foi sempre mal interpretado pela elite política e cultural chinesa, pelo que se trata de um comportamento nada positivo e muito pouco cívico que resulta em larga medida de um equívoco interpretativo. Não será isto olhar para o comportamento destes jovens sem tomar assim tanto em consideração as realidades materiais e sócio-culturais mais profundas que o informam? Sem dúvida que a conjugalidade e a individualidade estão a desempenhar um papel cada vez mais central nas relações familiares de aldeias como Xiajia, mas não poderíamos nós falar da emergência de uma nova forma de «familismo» mais aburguesada, em vez de falarmos de um «triunfo da conjugalidade e da individualidade»? Em suma, eis um livro polémico ilustrativo da vitalidade da antropologia contemporânea, que será bastante apelativo para os leitores de uma revista interdisciplinar de ciências sociais como a Análise Social.

Gonçalo Duro dos Santos

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