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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.182 Lisboa jan. 2007

 

Frederick Cooper, Colonialism in Question: Theory, Knowledge, History, Berkeley, University of California Press, 2005.

Este importante trabalho certamente terá impacto significativo numa série de campos inter-relacionados do saber que se congregam em torno do rótulo «estudos coloniais ». O seu autor, um eminente historiador da África com uma importante obra sobre a descolonização nos impérios coloniais1, talvez seja mais conhecido fora do âmbito específico da história da África pela coordenação, juntamente com Ann Laura Stoler, de um influente e muito citado volume sobre os impérios coloniais chamado Tensions of Empire2.

O presente livro retoma uma série de questões levantadas e analisadas na mencionada colectânea, mas fá-lo agora de modo mais articulado e desenvolvido. Em especial, ganha tratamento minucioso o complexo tema das limitações do poder nos impérios coloniais, com desdobramentos já esperados por quem conhece os seus trabalhos anteriores como a crítica à ficção maniqueísta do Estado colonial e a exposição da fragilidade que caracteriza a oposição entre colonizado e colonizador. Porém, o livro também aborda temáticas novas, que parecem inquietar o historiador preocupado com a retórica fácil que impera nos estudos coloniais e pós-coloniais: põe à luz as várias formas de teleologias que habitam o horizonte intelectual de historiadores e cientistas sociais e todos os credos, em especial os contos do progresso rumo ao Estado-nação, à modernidade e à globalização; revela com uma satisfação irónica o arraigado conformismo reinante na vanguarda dos que estudam o pós-colonialismo; finalmente, expõe de maneira cirúrgica os problemas do aparato conceptual das ciências humanas contemporâneas com o seu apego aos jargões fáceis.

O título do livro pode provocar uma decepção no leitor. Apesar de tratar da questão colonial, abordando situações coloniais específicas (v. capítulo 7), o livro está longe de ser uma história do colonialismo ou mesmo uma reflexão directa sobre esse momento da história mundial. Trata-se antes de uma obra mais ambiciosa, dedicada ao questionamento conceptual e à crítica de certos modos a-históricos de se fazer história.

Organizado em três partes semiautónomas, o trabalho é constituído por oito capítulos, três dos quais já haviam sido publicados anteriormente, sendo um deles (o capítulo 3) em co-autoria com Rogers Brubaker.

A primeira parte, voltada para a reflexão sobre os estudos coloniais e o pensamento interdisciplinar, tem como ponto de partida a aparente estranheza de ter esse campo de estudo florescido num tempo em que os impérios coloniais já não representam mais uma forma viável de organização política. No entanto, a estranheza desfaz-se quando o autor aponta para a natureza a-histórica de muitos desses estudos. Apesar de a reflexão sobre o colonialismo ter dado, nos últimos vinte anos, largos passos rumo ao questionamento de verdades estabelecidas, contestando, por exemplo, a narrativa do progresso que irradia da Europa, a natureza interdisciplinar das questões coloniais acabou por ser empobrecida pelo uso repetido de clichés que, se um dia foram provocativos, perderam há muito o seu potencial de veicularem sentido. O «colonial» dos estudos coloniais e pós-coloniais é muito genérico e abstracto. O colonialismo é visto como algo que se justapõe à modernidade europeia — também entendida de modo muito rasteiro — e o seu estudo muito frequentemente reduz-se a uma crítica ao iluminismo e à modernidade. Este é o grande tema da «introdução», que se desdobra numa crítica aos modos pouco históricos de se fazer história: colectando e comparando textos desconexos em termos de tempo e espaço, saltitando entre momentos históricos sem prestar a devida atenção às cadeias causais, sendo aprisionado a um certo presentismo e rotulando acriticamente o que seria uma época.

A seguir, no capítulo intitulado «Ascensão, queda, ascensão dos estudos estudos coloniais», Cooper retoma o paradoxo de os estudos coloniais florescerem quando os impérios já não têm mais sentido político e mostra que nos anos 50 Balandier já clamava pela análise da situação colonial como uma totalidade do campo do poder. Apesar do potencial explicativo de conceitos (rede, situação e campo social), da inovação que foi tomar o problema colonial como uma totalidade e da sua sensibilidade histórica em perceber que a colonização era um processo histórico específico, a chamada de Balandier não foi atendida e a situação colonial saiu do foco do interesse dos académicos. Naqueles anos turbulentos, o colonialismo era sobretudo uma temática para críticas e ataques, que não merecia uma análise detida. A mudança social, bem como as promessas de modernização, urbanização e industrialização das sociedades africanas, eram os temas que interessavam a cientistas sociais e historiadores e por isso a proposta de Balandier passou a ser pensada em termos da teoria da modernização, cujos princípios distintivos enfatizavam que modernidade e tradição são dicotómicas e que os dois pólos dessa dicotomia expressam um pacote complexo de mudanças. Somente na década de 80, argumenta Cooper, a ideia de modernidade vai deixar de obstruir a de colonial e a colonização passará a ser vista como uma reflexão da pior faceta da modernidade. Mas por tratar o colonialismo de maneira genérica e abstracta, e não como uma situação histórica na qual pessoas concretas actuam de facto, um período dinâmico carregado de incertezas, a ideia de modernidade nesses novos estudos obstrui a de história.

A segunda parte é dedicada à reflexão conceptual estrita, na qual três conceitos centrais para os estudos coloniais são colocados em questão: identidade, globalização e modernidade.

Identidade é uma categoria nativa muito importante na cultura política das sociedades ocidentais. Porém, pretende também ser uma categoria para descrição e análise. O problema com esse contrabando entre o mundo da vida e o dos conceitos tem a ver com a distância semântica entre categorias nativas e ferramentas analíticas. No caso da identidade, o seu uso como conceito por antropólogos, sociólogos, historiadores, é alargado de mais e obscurece os modos pelos quais os actores históricos a empregam. Em resumo, a identidade sofre de um mal muito disseminado no campo intelectual contemporâneo: a obesidade conceptual. E por querer muito significar acaba por nada dizer. Uma vez exposta a raiz da ambiguidade e imprecisão do conceito, Cooper vislumbra um conjunto de ferramentas analíticas que poderiam dar sentido ao largo espectro de práticas e processos que procuramos entender com o uso do conceito de «identidade», sem os problemas que tal uso acarreta. No entanto, se a sua crítica à ambiguidade e imprecisão do conceito, em especial a versão antiessencialista dos «construtivistas», acerta plenamente no alvo, parece-me que a sua opção por proporpropor uma série de termos substitutos, em vez de uma verdadeira teoria da identidade, é problemática e ingénua. Primeiramente, por ser uma opção excessivamente normativa; depois, por atomizar em vários termos alternativos aquilo que no mundo da cultura é tomado como um campo único de fenómenos.

A crítica à globalização segue a mesma linha de raciocínio. Cooper reconhece que o termo tem significados polémicos para os actores sociais, mas acertadamente insiste em que não se trata de ser a favor ou contra a globalização. Propõe antes que se reformule a questão dos mecanismos de conexão entre espaços separados e entre fronteiras (e dos limites dessas interconexões), assim como a dos processos de demarcação territorial e de cruzamento ou trânsito entre fronteiras, sem que seja preciso lançar mão da noção de globalidade. Como conceito, globalização sofre de dois problemas básicos: sugerir que há um sistema único de conexão operando em todo o globo e implicar que isto é uma faceta do tempo presente, que esta é a época global. Trata-se de uma metanarrativa teleológica que enfatiza um processo em andamento que é nomeado por aquilo que é o seu suposto ponto terminal, que aparece com uma aura de inevitabilidade. Os problemas com essa forma de compreender os fenómenos sociais são equivalentes aos apontados na sua crítica à teoria da modernização dos anos 50 e 60. Além disso, por representar uma espécie de história presentista, que começa com uma versão do presente (no caso, a versão idealizada do presente globalizado) e vai ao passado para revelar ou que tudo leva ao presente ou que tudo se desvia dele, a metanarrativa da globalização distorce a história dos impérios coloniais e da colonização, menospreza processos de conexão territorial passados e o papel dos povos não europeus nestes processos. Em vez de uma ideia artificial e muito genérica de globalidade, Cooper realça a necessidade de se procurar um ponto intermédio entre o local e o global, que não perca de vista o complexo emaranhado de conexões, a variedade dos mecanismos de conexão territorial e os seus limites.

O último conceito objecto de crítica é o de modernidade. Trata-se, a meu ver, do capítulo mais problemático. Primeiro, porque, dos três conceitos questionados, este é o que é menos central para a reflexão intelectual (como mostra o gráfico das palavras-chaves mais usadas, na p. 8 do livro). Segundo, porque seu uso é mais restrito a uma certa historiografia (a dos estudos subalternos indianos e dos seus adeptos encantados alhures), sendo pouco difundido noutros contextos, como o africano e o das sociedades sul-americanas. Certamente modernidade é um termo com muitos significados divergentes entre si. Como acontece com o termo «identidade», há no caso em questão uma grande distância semântica entre os vários sentidos que os actores históricos dão ao termo «moderno» e os sentidos atribuídos pelo mundo intelectual ao conceito de modernidade. Isso é o bastante para tornar tal conceito impreciso e ambíguo, com pouco poder de esclarecer situações históricas específicas. Especialmente problemáticas são as noções de modernidades alternativas e modernidade colonial. A primeira, pelo pouco poder explicativo que habita no seu pluralismo. Como bem aponta Cooper, se qualquer inovação produz uma modernidade alternativa, então o termo tem pouco valor analítico e sugere um curioso e problemático compartilhamento dos atributos que a constituem por povos muito separados no tempo e no espaço. A segunda, por querer fazer da colonização um projecto universalizante, emanado da Europa, cuja finalidade era trazer os colonizados ao mundo da modernidade. Tal projecto implica que ela é algo a que os colonizados deviam aspirar, apesar de não a merecerem, e implicitamente carrega consigo a reivindicação do direito europeu de governar as colónias.

A terceira e última parte é constituída por dois capítulos que tematizam a complexa relação entre o império e o Estado-nação, questionando as narrativas pouco profundas que supõem como inevitável a transformação dos impérios em Estados-nações. O capítulo 6, de natureza mais geral, explora as várias formas de imaginação política e de gerenciamento do dilema típico de todos os impérios, que tem a ver com a conjugação dos processos de incorporação de gente com os de reprodução das diferenças e hierarquias num território muito grande e descontínuo, habitado por povos culturalmente distintos. O argumento central deste capítulo é o de que para governar um império é necessário pensar imperialmente e que isto é muito diferente de pensar como nação. Para isso é necessário que se conte uma história mais profunda do que a de dois séculos do colonialismo europeu que levou ao surgimento dos Estados-nações, olhando para um período muito mais longo e para um conjunto mais multifacetado de formas de organização política. Por meio do exame de estruturas imperiais pré-modernas (Roma e Mongólia) e modernas, europeias e não europeias (China e Império Otomano), Cooper revela-nos o engano que é pensar os impérios modernos como projecções dos Estados-nações, sendo as colónias meras expressões do poder nacional. As trajectórias tomadas pelos vários impérios foram diferentes. Alguns entraram em crise e transformaram-se em tempos diferentes em Estados-nações (França e Inglaterra, Espanha e Portugal), outros reconfiguraram-se como impérios (Rússia); alguns vincularam-se com interesses capitalistas (por exemplo, Portugal, segundo Gervase Smith), outros ligaram-se ao sentimento da paixão e ao valor da honra (Portugal, segundo Hammond); alguns mantiveram quanto puderam a oposição entre sujeitos e cidadãos, outros foram francamente incorporadores. Em resumo, as trajectórias imperiais sempre foram muito mais diversificadas do que a narrativa idealizada e teleológica que propõe o caminho único que vai do império ao Estado-nação. E, mais do que diversificada, os impérios sempre se depararam com os seus próprios limites.

O capítulo 7 lida com um caso em que o fim do império não resulta de uma oposição idealizada entre o colonialismo violento e as forças libertadoras dos movimentos nacionalistas, mas antes das fissuras e tensões no interior da própria estrutura imperial. Neste capítulo Cooper focaliza uma série de greves encaminhadas pelas lideranças sindicais na África ocidental francesa nos anos 40. Trata-se de um capítulo bem ao gosto dos antropólogos em que o autor mostra como o diálogo entre as lideranças sindicais e os agentes da autoridade colonial francesa levou ambas as partes a um ponto em que nenhuma delas queria ir. Ao aceitarem a reivindicação trabalhista de igualdade entre franceses e africanos, de universalidade da cidadania, os agentes coloniais impuseram ao império um custo com que ele não podia arcar e esse foi apenas o primeiro passo rumo ao rompimento do dogma da indissolubilidade do império colonial. Por sua vez, a demanda por equivalência entre franceses e africanos impunha aos líderes sindicais o paradoxo de que ao igualarem-se aos franceses esses trabalhadores organizados distanciavam-se da massa de africanos do mundo rural, o que fez com que vários líderes políticos africanos (antigos líderes sindicais) procurassem separar a luta de classes da busca pela unidade política. O resultado final destes embates foi que os africanos ganharam a soberania. Esta, porém, não foi a única demanda que surgiu de toda a mobilização trabalhista dos últimos anos do regime colonial francês. Mas, como bem nota Cooper, foi a que a França estava desejosa de conceder.

Recusando-se a contribuir com o conto de progresso rumo à modernidade, à globalização ou ao Estado-nação, Cooper ressalta a necessidade de se dar atenção plena às múltiplas e dinâmicas trajectórias da interacção histórica, à riqueza da imaginação política dos actores históricos e aos constrangimentos e limites impostos sobre tal imaginação. Nisto está o ponto forte deste interessante livro. Força que suplanta largamente a perspectiva muito normativa que por vezes domina a crítica conceptual da segunda parte e o estilo marcado por uma erudição excessiva (239 páginas de texto e 68 de notas) onde o autor muitas vezes fica aprisionado pelos «ismos» que tão bem critica.

 

1 Frederick Cooper, Decolonization and African Society: The Labor Question in French and British Africa, Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

2 Frederick Cooper e Ann Laura Stoler (eds.), Tensions of Empire: Colonial Cultures in a Burgeois World, Berkeley, University of California Press, 1997.

 

Wilson Trajano Filho

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