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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.182 Lisboa jan. 2007

 

Jaime Batalha Reis e Celeste Cinatti: diálogo sobre um retrato incompleto

 

Maria José Marinho*

 

O relato da paixão de Jaime Batalha Reis pela sua futura mulher, Celeste Cinatti, que procurámos seguir ao longo das 301 cartas que transcrevemos — e que estão disponíveis no site do ICS em «Arquivo de História Social» —, representa um retrato incompleto, na medida em que, infelizmente, faltam quase todas as respostas da namorada, destruídas a seu pedido. Quem eram Jaime e Celeste, a que famílias pertenciam, em que espaços físicos e sociais se moviam? A resposta é: Lisboa, segunda metade do século xix, burguesia letrada.

O apaixonado, filho de um velho liberal, António Nunes dos Reis, amigo chegado de Almeida Garrett e José Estevão, antigo funcionário das Cortes, bem relacionado com a elite política portuguesa, era um abastado proprietário no Turcifal, perto de Torres Vedras, onde produzia vinho, que depois exportava. A mãe, de origem italiana — Maria Romana Bataglia —, era uma figura apagada. Dos três filhos do casal, só Jaime continuava solteiro, a estudar em Lisboa, primeiro, como interno, no conceituado colégio alemão Roeder, depois frequentando um curso superior. Vivia num andar, no Bairro Alto, na Travessa do Guarda-mor, 19, 1.º, com um criado, o «Via Láctea», assim chamado por ter a cara crivada de marcas de bexigas.

O objecto da sua paixão, uma menina da boa sociedade lisboeta, fora educada por freiras irlandesas no Convento do Bom Sucesso, em Belém, sendo filha do famoso cenógrafo e arquitecto José Cinatti, italiano, em fuga por razões políticas e que fora acolhido e protegido em Lisboa pela importante colónia de conterrâneos. A mãe, também italiana — Maria Rivolta —, aspirante à carreira de cantora lírica, morrera de febre-amarela em 1857. Dos setes irmãos e irmãs, que, em pequenos, haviam povoado a casa do Largo de Quintela, 11, 3.º, com uma ampla varanda que dava também para as ruas das Flores e do Alecrim, só as duas mais velhas, Adelaide e Beatriz, estavam casadas. Provavelmente, os dois namorados já se teriam cruzado antes de 1868 nos chás-dançantes do «Clube Lisbonense», nos saraus musicais da «Associação Portuguesa», nas óperas de São Carlos ou nos teatros da Trindade e do Ginásio e, naturalmente, no Passeio Público, onde a burguesia lisboeta se encontrava. Tinham amigos comuns, tais como as Castelo Branco, as Amzalak e as Abecasis. Mas ainda não haviam sido tocados pela «centelha da paixão».

Jaime Batalha Reis nascera a 24 de Dezembro de 1847, tendo acabado o curso de Agronomia e Engenharia Florestal, no Instituto Geral de Agricultura de Lisboa, com 19 anos de idade. Fizera um curso brilhante. Alguns dos seus mestres, como Ferreira Lapa e Andrade Corvo, prognosticaram-lhe um futuro promissor. Nos fins de 1867, ao folhear casualmente um álbum de fotografias, reparou num retrato de Celeste Cinatti. No mesmo dia viu-a no Passeio Público e apaixonou-se por ela. Um encontro num concerto possibilitou-lhe a primeira troca de palavras.

A paixão de Jaime Batalha Reis é exclusivista. Celeste já tivera um primeiro namoro com Fortunato Lodi, filho do primeiro empresário de São Carlos e cunhado do conde de Farrobo. Mas, quase às portas do casamento, rompera com este noivo, cujo feitio violento a assustara. Jaime sentia-se roído de ciúmes. Os seus veementes protestos de amor revelam, de facto, uma certa insegurança.

Entretanto, Jaime Batalha Reis conhecera Eça de Queirós e mergulhara na boémia lisboeta. Conversador infatigável, inteligência viva, melómano militante, com uma cultura invulgar para a idade, facilmente conquistou a consideração do meio literário da época. A sua casa, na travessa do Guarda-Mor, transformou-se numa tertúlia lisboeta, o «Cenáculo», como depois lhe viriam a chamar-lhe. A entrada de Antero de Quental neste círculo de amigos possibilitou a Jaime Batalha Reis um interlocutor à sua medida. As preocupações filosóficas de Antero correspondiam a algumas das aspirações do jovem agrónomo, cujas inquietações intelectuais não encontravam resposta satisfatória na convivência com outros companheiros de ceias, noitadas e discussões literárias. Só um ano mais tarde Oliveira Martins se lhes juntará. É deste período, nomeadamente do ano de 1869, que data a criação do pseudónimo literário colectivo Fradique Mendes, sob o qual tanto ele como Antero e Eça publicariam poemas.

Os esforços do pai para lhe arranjar emprego, condição necessária para o casamento desejado pelos namorados, não se concretizavam. O «negócio», como lhe chamava Batalha Reis, tardava. É então que, juntamente com Eça, resolve candidatar-se a cônsul. Nesse mesmo ano de 1870, alguns deles, entre os quais Antero e Batalha Reis, envolvem-se em conspirações políticas e fundam jornais de cariz progressista. Vêm depois as Conferências Democráticas do «Casino Lisbonense», organizadas sobretudo por Antero e Batalha Reis: nessa altura, Oliveira Martins estava já a trabalhar em Espanha, nas minas de Santa Eufémia. Ao jovem agrónomo cabia, de acordo com o programa, abordar o tema do socialismo, matéria escaldante, se recordarmos que a sua intervenção foi contemporânea do levantamento da Comuna, em Paris. Quando as Conferências foram proibidas, a celeuma que então se levantou atingiu a pessoa do marquês de Avila, presidente do Conselho, contra o qual Batalha Reis escreverá um folheto violento. Embora houvesse sido aprovado no concurso feito no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Setembro de 1870, a sua intervenção nas Conferências terá posto em perigo a nomeação para o cargo de cônsul. De facto, só a conseguirá doze anos volvidos.

Que fez entretanto? Os seus conhecimentos no campo da enologia, preciosos numa época em que o aparecimento da filoxera atingira gravemente a produção vinícola, valeram-lhe uma ascensão rápida nos meios afectos à agronomia. Participa em comissões que tratam do problema e é nomeado, por Morais Soares, presidente da comissão encarregada de estudar a moléstia das vinhas. Finalmente, veio o emprego definitivo: em Fevereiro de 1872 era nomeado chefe do Serviço Agrícola do Instituto Geral de Agricultura e alguns meses depois, a 5 de Setembro desse ano, realizava-se o casamento.

Nessa altura, já Batalha Reis desempenhava as funções de professor substituto de João Andrade Corvo, ministrando as cadeiras de Botânica, Economia Rural e Florestal. Em 1876 é enviado como um dos comissários à Exposição Universal de Filadélfia, com a missão de estudar o plantio da vinha nos Estados Unidos, o combate à filoxera, assim como a cultura do algodão e da cana-de-açúcar. Consegue levar consigo a mulher e a filha, Celeste, então com 2 anos de idade. Contudo, não permanece ali até ao fim, porque uma mudança ministerial o obriga a regressar.

Em 1878 é nomeado vice-presidente da Real Associação Central de Agricultura, órgão fulcral neste campo de actividade, já que reunia, a par dos especialistas nas várias áreas agrícolas, os grandes proprietários da época. Dois anos depois é criada a cadeira de Microscopia e Nosologia Vegetal, regida por Batalha Reis. Vê a sua carreira universitária coroada de êxito, tendo sido então despachado lente. Em Julho de 1882 foi, por fim, nomeado cônsul em Newcastle. Antes não descurara a actividade cultural. De 1873 a 1875 empenhara-se com Antero e Oliveira Martins e alguns nomes importantes da intelectualidade espanhola, tais como Pi y Margall, Cánovas del Castillo, Francisco Maria Tubino e Fernandez de los Rios, no lançamento da Revista Ocidental, que, retomando o espírito das Conferências Democráticas, e associando a Espanha ao projecto, pretendia promover a renovação cultural. Aliás, o seu nome vai continuar a aparecer ligado a actividades intelectuais: sócio honorário correspondente do Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro (1879), membro da Comissão Executiva do Tricentenário de Camões (1880), membro efectivo da Sociedade de Geografia e delegado extraordinário às comemorações do 2.º centenário de Calderón de la Barca (1881).

Finalmente, em 1883, parte para Inglaterra. O que terá levado este homem, com uma carreira já firmada no campo da agronomia, a abandonar a pátria? Como muitos companheiros de geração, talvez se sentisse limitado na estreiteza do ambiente lisboeta e sonhasse com uma vivência cultural que os meios diplomáticos podiam proporcionar. Seja como for, em Agosto de 1883 fixa residência em Newcastle, onde, alguns anos antes, vivera o seu amigo Eça de Queirós. Aí terá mais quatro filhos, duas raparigas e dois rapazes, daí partirá para missões diplomáticas em Bruxelas, Berlim e Paris. Jaime Batalha Reis é agora um estudioso de história, de geografia e da política internacional. Publica artigos na imprensa inglesa e francesa — nem sempre assinados com o seu nome — em defesa dos direitos portugueses em África. Redige estudos, é membro de sociedades literárias inglesas, trava amizade com escritores, pintores, escultores e músicos de várias nacionalidades. Sempre que pode dá um saltinho a Paris, onde Eça lhe oferece guarida. Mas, como a sua correspondência o atesta, continua atento aos problemas da pátria. Lembremos ainda a sua magnífica colaboração no In Memoriam de Antero, a «Introdução» às Prosas Bárbaras de Eça e os esforços de comercialização, na Grã-Bretanha, dos vinhos portugueses.

Só depois da implantação da República deixará definitivamente a Inglaterra, país de que, curiosamente, nunca gostou. Ficavam-lhe três filhos, os dois rapazes e Maria, a afilhada de Antero, que se casara com um súbdito inglês. Num cemitério ficava também a mulher que amara, morta de cancro, em 1900. Tinham vivido juntos vinte e oito anos. Depois do seu regresso a Portugal, já na disponibilidade, ainda é encarregado de representar Portugal no tricentenário da dinastia Romanov. Enviado a Sampetersburgo, acaba por se ver envolvido nos acontecimentos que precedem e acompanham o deflagrar da revolução de Outubro. Tinha então 71 anos. De regresso a Portugal em 1918, é, nesse mesmo ano, enviado como delegado à Conferência de Paz, em Paris. Em 1921 pede, finalmente, a reforma e vai viver com as duas filhas, Celeste e Beatriz, na Quinta da Viscondessa, no Turcifal, onde morre em 1935.

 

* Biblioteca Nacional.

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