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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.182 Lisboa jan. 2007

 

Língua e hegemonia nas ciências sociais

 

João de Pina Cabral*

 

Neste curto texto discute-se a questão da relação entre língua científica e hegemonia global no campo das ciências sociais, alinhavando algumas propostas estratégicas conducentes à melhor negociação da posição face à situação global actual de comunidades científicas que, como a portuguesa, usam outras línguas para além do inglês.

Palavras-chave: ciências sociais; hegemonia; lusofonia.

 

Langue et hégémonie dans les sciences sociales

Ce texte bref discute la question de la relation entre langue scientifique et hégémonie globale dans le domaine des sciences sociales, et tisse quelques propositions stratégiques pour une meilleure négociation de position face à la situation globale actuelle de certaines communautés scientifiques qui, telles la portugaise, utilisent d'autres langues en plus de l'anglais.

Mots clés: sciences sociales; hégémonie; lusophonie.

 

Language and hegemony in the social sciences

This short essay discusses the relation between scientific language and global hegemony in relation to the social sciences. The text draws out a number of strategic proposals geared towards a better negotiation of the global position of scientific communities that express themselves in other languages beside English — such as that of Portuguese speakers.

Keywords: social sciences; hegemony; lusophony.

 

Neste curto texto discute-se a questão da relação entre língua científica e hegemonia global no campo das ciências sociais, alinhavando algumas propostas estratégicas conducentes à melhor negociação da posição de comunidades científicas como a portuguesa face à situação global actual.

Tendo em vista a hegemonia intelectual exercida no período após a queda do muro de Berlim pelos Estados Unidos da América e tendo em vista que as comunidades científicas com peso alternativo no período da guerra fria, tal como a britânica ou a francesa, perderam muito rápida e marcadamente a relativa centralidade cultural e independência que detinham, urge compreender que, a nível global, só existem quatro comunidades linguísticas1 de cientistas sociais exprimindo-se em línguas outras que não a língua franca internacional com peso significativo (tanto quantitativo como qualitativo): a francesa, a espanhola, a germânica e a portuguesa. Repare-se que as comunidades russófona e sinófona demorarão ainda previsivelmente pelo menos uma década a reconstituir-se após a gravíssima perda de centralidade resultante do colapso do modelo marxista-leninista.

Destas quatro, a de língua portuguesa é, porventura, a maior em termos estatísticos, tendo em vista a quantidade de cientistas sociais brasileiros e a vivacidade actual da comunidade científica portuguesa. A presença de dois grandes países africanos com língua portuguesa (Angola e Moçambique) e de pelo menos um país asiático em que se utilizará no futuro o português (Timor) contribui mais ainda para dar ao desenvolvimento do pensamento sócio-científico em português uma perspectiva de relevância global futura.

A comunidade francófona — que é cada vez mais reduzida quantitativamente — detém, porém, um peso científico considerável, largamente devido à relevância histórica da sua contribuição para a constituição intelectual da modernidade (a sua preteridade). A comunidade hispanófona tem alguns pontos altos e é quantitativamente vasta, mas não tem a vivacidade e a quantidade de trabalhos que detém a lusófona ou o privilégio de preteridade da francófona. A comunidade de língua alemã está em processo de reconstituição (já que só após a queda do muro de Berlim lhe foi possível libertar-se das fortes heranças intelectuais do início do século XX — tanto a marxista como a romântica) e só dentro de alguns anos poderemos julgar da sua capacidade de afirmação internacional.

Tendo em vista que a lingua franca continuará, previsivelmente, a ser o inglês ainda por muito tempo e que, portanto, todos os cientistas sociais que queiram ter qualquer impacto durável nas suas disciplinas se verão obrigados a, pelo menos, ser receptores da lingua franca, poder-se-ia pensar que a existência de comunidades científicas exprimindo-se noutras línguas seria largamente irrelevante. Tal julgamento, contudo, é sociologicamente simplista porque não toma em conta o facto de que as comunidades linguísticas funcionam como campos de constituição de hegemonias2 científicas de médio alcance, isto é, como meios de veicularem disposições teóricas e metodológicas que, não sendo incompatíveis com as praticadas na lingua franca, têm, apesar de tudo, alguma autonomia. Assim, é lícito argumentar que estas comunidades linguísticas são espaços de relativa autonomia e, por conseguinte, poderosíssimos instrumentos de negociação da hegemonia mais abrangente.

O problema principal que confronta as ciências sociais de língua portuguesa hoje é o de criar as condições para que o trabalho que realizamos tenha relevância, isto é, tenha capacidade de sobrevivência enquanto contributo relevante para os debates futuros — para simplificar, chamarei a esta qualidade «futuridade»3. Essa relevância futura do nosso contributo (a futuridade da nossa obra) não pode ser só vista unicamente em termos globais, ela tem de ser vista em primeiro lugar em termos locais. Contudo, as duas coisas estão interligadas devido ao funcionamento dos processos automáticos de silenciamento que caracterizam a própria natureza do processo de constituição de hegemonias científicas e intelectuais. O que quero dizer, em termos práticos, é que os nossos próprios alunos não terão razão para acharem relevante o que nós escrevemos caso o que nós escrevemos não tenha alguma capacidade de afirmação face a hegemonias mais abrangentes.

A tragédia das comunidades científicas marginais é a tragédia do silenciamento perante si mesmas. Somos muitas vezes levados, por simplismo, a culpar os colegas anglófonos pelo silenciamento dos nossos trabalhos (que, queixamo-nos nós, eles não citam); os nossos colegas anglófonos, aliás, são muito dados a atribuírem-se a si mesmos essa autocrítica, desculpando-se por «não terem jeito para outras línguas». Mas essas declarações de mea culpa são vácuas e até suspeitas, já que só servem para lhes atribuir a eles, reflexivamente, a agencialidade sobre o silenciamento dos outros. Na verdade, não são os colegas anglófonos os principais responsáveis pela falta de futuridade do que nós fazemos nas margens.

Olhemos para nós próprios, cientistas sociais de língua portuguesa hoje, com algum distanciamento e alguma franqueza. Só muito raramente somos levados a atribuir significado aos cientistas sociais de língua portuguesa que nos precederam (no caso do Brasil, apesar de tudo, verifica-se menos descuido pelo cânon regional do que no caso português); só muito raramente somos levados a dialogar uns com os outros de forma aberta, franca e contundente (mais uma vez, o Brasil tem conseguido superar parcialmente este sinal de fraqueza); os nossos alunos não acham «interessante»4 citar nos seus projectos e nas suas notas de rodapé as obras que nós escrevemos; os alunos dos nossos alunos farão o mesmo com os mestres deles (eu próprio já tive ocasião de verificar a perplexidade que isso causa a colegas mais jovens que, no entanto, nas suas próprias obras, sempre foram os principais silenciadores dos seus colegas mais seniores).

As antropólogas feministas nos gloriosos anos 80 repetiam muitas vezes que as sogras eram pelo menos tão responsáveis pela opressão doméstica feminina quanto os maridos. Também nós vamos descobrir que o silêncio que cai sobre as nossas obras, e que nos transforma em cientistas sem relevância futura, é o produto dos nossos próprios discípulos — de nós próprios enquanto jovens.

Ora, poder-se-ia dizer que só é possível ultrapassar a falta de «futuridade » «publicando e sendo citado no índice ISI»! Tal engodo, porém, só enganará quem deseje ser enganado. Há limites muito claros para a constituição de futuridade por parte de cientistas sociais que estão fora dos círculos de excelência global e estes últimos estarão sempre ligados umbilicalmente aos centros hegemónicos de poder — qualquer outra noção seria difícil de contemplar. A futuridade da actividade científica não é única e simplesmente mensurável em termos de um qualquer impacto «objectivo» sobre o conhecimento, nem em termos teóricos, nem sequer em termos tecnológicos. Não basta «descobrir» coisas importantes para ganhar prémios Nobel e fazer patentes milionárias — e nas ciências sociais por maioria de razão. A actividade científica (e peço que não interpretem esta posição historicista como uma declaração anticientivística — só para os simplistas é que as duas coisas são incompatíveis) é uma actividade social e como tal está imersa em todo um esquema de reprodução que passa pela existência de hegemonias — o poder militar, político, económico e o poder cultural, intelectual e científico cruzam-se.

Eu próprio tenho verificado — e o debate com colegas seniores brasileiros tem confirmado esta opinião — que não basta publicar obras consideradas de valor em língua inglesa para assegurar a futuridade do que publicamos. Mais cedo ou mais tarde se revela que as coisas que os colegas citam (e que, portanto, têm futuridade) têm menos a ver com o que lá está escrito e mais a ver com o que eles próprios «ganham» ao citá-las. Ponho «ganham» entre aspas para que se perceba que não falo de qualquer ganho financeiro (se bem que esse aspecto esteja presente, está claro), mas sim de um interesse mais vasto, que inclui até aspectos de natureza vagamente estética. Por exemplo, é mais interessante/chique citar Foucault (e isto porque Foucault é a coqueluche americana, nada a ver com francofilia) do que Thales de Azevedo, mesmo quando o que se está a dizer tem mais a ver com a brilhante obra deste último — que, aliás, a maioria de nós simplesmente desconhece.

Tanto eu próprio como os colegas brasileiros que, como eu, têm uma já longa carreira marcada pela publicação desde o início em revistas e editoras anglófonas temos observado empiricamente que o nosso «capital de prestígio científico» não tem a mesma força de acumulação que a de colegas americanos cuja obra foi até, por vezes, menos bem recebida e publicada em editoras menos prestigiadas do que as nossas. Vinte ou trinta anos depois de termos iniciado as nossas carreiras continuamos a ser tratados como iniciantes. Os ensaios que mandamos para revistas cujos editores são alunos dos que foram nossos colegas em Paris, Oxford, Berkeley ou Nova Iorque são recebidos e comentados pelos referees como se fossem obras de iniciantes.

O filósofo J. A. Giannotti, discípulo de Sartre, colega intelectual de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e tantas outras figuras marcantes da intelligentzia paulista, e cuja obra publicada em francês e inglês é considerável (para além da importantíssima obra filosófica publicada em português), declarou-me que, confrontados com o silenciamento externo, ele e os seus colegas tiveram de fazer uma opção de carreira: «A nossa opção foi ser filósofos municipais.» Essa frase, pronunciada em tom irónico, deixou-me profundamente instigado, como se diz por lá. É que a municipalidade onde ele habita tem 14 milhões de habitantes e o país onde eu vivo só tem 9 milhões, sem contar com a iliteracia generalizada!

Em suma, se as considerações acima são válidas, então a constituição de espaços intermédios de hegemonia intelectual é essencial para a reprodução das comunidades científicas dos países menos centrais. A existência de tais espaços permitirá a constituição de hegemonias locais, que, por sua vez, constituirão pólos negociais fortes na confrontação com a hegemonia global. Se formos capazes de assegurar a futuridade das nossas obras a nível das comunidades linguísticas não anglófonas, não será tão fácil o véu do silenciamento cair sobre nós a nível global — cairá, sim, mas menos, o que faz toda a diferença.

Temos de produzir obras de elevado nível científico, empiricamente correctas e teoricamente consequentes, plenas da melhor scholarship. Tal, porém, não chega para assegurar que a nossa obra tenha futuridade. Para isso, teremos sempre de passar por um trabalho de constituição social, porque a ciência é uma actividade social. Teremos, pois, de realizar essa obra em quatro frentes de socialidade:

a) O associativismo científico (e temos, por exemplo, na Associação Brasileira de Antropologia, em português, as reuniões regulares antropológicas mais participadas do mundo, afora as da American Anthropological Association);

b) A criação de interconhecimento científico através da realização de investigações cruzadas que obrigam, por interesse empírico, à referência mútua (temos de fazer os brasileiros, os franceses e os espanhóis virem investigar para cá e nós temos de ir para lá);

c) A troca de pessoal docente;

d) A formação local dos nossos próprios alunos de pós-graduação, por forma que estes não escapem aos contextos formais de constituição de futuridade do ensino que recebem.

Concluo, pois, que a estratégia de desenvolvimento académico que devemos implementar em Portugal tem de superar os sentimentos de inferioridade que caracterizaram a comunidade científica portuguesa do pós-25 de Abril em que tudo se validava com expressões do género «é como eles fazem ‘lá fora’». Acontece que «lá fora» é um lugar que não existe, por um lado, e «lá em cima» é um lugar onde nós só teremos acesso se abdicarmos de sermos portugueses, brasileiros, espanhóis, mexicanos, franceses, alemães, etc. O que nem podemos nem queremos.

Para constituir a futuridade do nosso trabalho (sem o que os nossos salários foram dinheiro que o Estado investiu mal) temos de entrar no jogo da negociação hegemónica. Tal faz-se, no caso português, pela criação de laços preferenciais com as comunidades científicas da nossa língua (a comunidade brasileira) ou de línguas que estão em condições de subalternidade relativa aproximada da nossa (a espanhola e a francesa) em cada uma das quatro frentes de socialidade acima referidas. Peço que esta posição não seja interpretada como um argumento contra a língua franca (o inglês). Pelo contrário, trata-se de uma proposta estratégica que pretende precisamente contemplar a necessidade de negociar o silenciamento no interior da língua franca.

 

1 Uso aqui esta expressão «comunidade» de forma propositadamente vaga.

2 Por hegemonia, seguindo a tradição gramsciana, sem lhe respeitar completamente a intenção (v. Pina Cabral, Análise Social, n.º 153, 2000, pp. 865-892), refiro-me a formas de dominação negociada, portanto culturalmente mediadas, em que os dominados aceitam tornar-se representados mediante a resposta por parte dos dominadores a condições que os dominados considerem que os compensam, pelo menos parcialmente, pela perda do poder.         [ Links ]

3 Sigo aqui a sugestão de Hermínio Martins relativa ao uso que faz do conceito de «preteridade» na sua obra clássica sobre «O tempo e a teoria social» (v. Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social, 1996 [1974]).

4 Temo em dizer «chique», porque pode parecer que estou a criticá-los por algo que não é «pecado» individual deles, mas é uma condição geral.

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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