SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número181Dilemas da república tecnológicaA experimentação humana e a crise da auto-regulação da biomedicina índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social v.181 n.181 Lisboa  2006

 

Biotecnologia e biocapitalismo global

José Luís Garcia*

 

O artigo situa a emergência da biotecnologia no contexto da reestruturação do universo tecnoeconómico e da globalização dos mercados nos anos 1980. Depois, apresenta-se o seu desenvolvimento no quadro ideológico de uma alteração do ethos científico e no interior de uma investigação crescentemente subordinada ao universo empresarial. Finalmente, refere-se o papel da biotecnologia na formação de uma bioeconomia orientada para a apropriação comercial da vida. Este último processo é perspectivado à luz da economia política e das múltiplas facetas do fenómeno carismático.

Palavras-chave: Biotecnologia, Bioeconomia, Propriedade intelectual

 

Biotehnologie et biocapitalisme global

L’article situe l’émergence de la biotechnologie dans le contexte de la restructuration de l’univers techno-économique et de la mondialisation des marchés dans les années 1980. Il montre ensuite son développement dans le cadre idéologique d’une altération de l’ethos scientifique et au sein d’une recherche de plus en plus subordonnée à l’univers des entreprises. Pour terminer, l’auteur fait référence au rôle de la biotechnologie dans la formation d’une bioéconomie orientée vers l’appropriation commerciale de la vie. Ce dernier processus est mis en perspective à la lumière de l’économie politique et des facettes multiples du phénomène charismatique.

 

Biotechnology and global biocapitalism

This article situates the rise of biotechnology in the context of the reorganization of technological and economic life and the globalization of markets in the 1980s. It goes on to discuss how biotechnology has developed in the ideological framework of a change in the scientific ethos and in a research environment increasingly dominated by global corporations. The article concludes by looking at the role of biotechnology in the formation of a bioeconomy whose purpose is the commercial appropriation of life. This process is examined in the light of political economy and the many aspects of the phenomenon of charisma.

 

Texto completo disponível apenas em PDF.

Full text only available in PDF format.

 

1 V. Randall Collins, The Sociology of Philosophies. A Global Theory of Intellectual Change, Cambridge, Massachusetts, e Londres, The Belknap Press of Harvard University Press, 1998, pp. 872-873.         [ Links ]

2 A respeito das transformações da investigação científica no sentido de uma economia de investigação, v. o excelente número temático de Actes de la recherche en sciences sociales, nº 164, 2006.

3 As origens da patente encontram-se, provavelmente, na Veneza do século XIII, onde eram concedidos monopólios de dez anos aos inventores dos mais variados instrumentos. Sabe-se que, em 1594, o Senado veneziano atribuiu a Galileu uma patente pela invenção de uma bomba de água movida pela força de cavalos. No Reino Unido, o Statute of Monopolies, de 1642, tinha por objectivo condicionar as concessões reais às novas invenções. Já a França teve de esperar até ao século XVIII por um édito que regulamentou, muito sinteticamente, um privilégio que só aos inventores podia ser concedido. Em 1790, nos EUA, uma lei definiu de modo preciso o direito dos inventores a patentear as suas descobertas por um prazo determinado de forma a garantir os direitos exclusivos de fabrico.

4 A este respeito, v. Graham Dutfield, Intellectual Property Rights and the Life Sciences Industries: a Twentieth Century History, Aldershot, Hampshire, Inglaterra, Burlington, VT, Ashgate, 2003; Uma Suthersanen, Graham Dutfield e Kit Boey Chow (eds.), Innovation without patents: Harnessing the Creative Spirit in a Diverse World, Northampton, MA, Edward Elgar, 2007, e Finn Bowring, Science, Seeds and Cyborgs. Biotechnology and the Appropriation of Life, Londres e Nova Iorque, Verso, 2003, pp. 84-85.

5 V. Bowring, Science, Seeds and Cyborgs…, pp. 91-96, e Sheldon Krimsky, Science in the Private Interest, Oxford, Rowman & Littlefield, 2003, pp. 64-65.

6 V, Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos. Breve História do Século XX 1914-1991, Lisboa, Editorial Presença, 1996, p. 539.

7 V. António Damásio, O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano, Mem Martins, Europa-América, 1995, O Sentimento de Si. O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência, Mem Martins, Europa-América, 2000, e Ao encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir, Mem Martins, Europa-América, 2003.

8 Segundo Philippe Aigrain, este semblante justifica que se fale de um novo tipo de capitalismo — o capitalismo informacional (v. P. Aigrain, Cause commune. L'Information entre bien commun et propriété, Paris, Fayard, 2005, pp. 94-100).

9 A soja e o milho foram as primeiras culturas transgénicas a firmarem-se em larga escala no mercado (respectivamente três quintos e um quinto de todos os OGMs cultivados) e, de acordo com dados do ISAAA (Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações em Agrobiotecnologia), em 2002, metade da soja e 20% do milho cultivados em todo o planeta eram geneticamente modificados; em 2004, a área total com culturas transgénicas cresceu pelo nono ano consecutivo numa taxa líquida de 20%, sendo a área global estimada das culturas transgénicas autorizadas de 81 milhões de hectares, envolvendo cerca de 8,25 milhões de agricultores em 17 países.

10 «Monsanto at a Glance», http://www.monsanto.com/monsanto/layout/about_us/ataglance.asp, página consultada em Janeiro de 2004.

11 V. Rafael Díaz-Salazar, Justicia Global. Las alternativas de los movimientos del Foro de Porto Alegre, Barcelona, Içaria Editorial, 2002, pp. 52-53 e 177-179.

12 V. Jack Ralph Kloppenburg (Jr.), First the Seed. The Political Economy of Plant Biotechnology 1492-2000, Madison, The University of Wisconsin Press, 2004 (1988), p. XVII.

13 V. Laymert Garcia dos Santos, Politizar as Novas Tecnologias. O Impacto Sócio-técnico da Informação Digital e Genética, São Paulo, Editora 34, 2003, pp. 27-28.

14 V. Bowring, Science, Seeds and Cyborgs…, pp. 69-70.

15 O tipo e o nível de implicações que o sistema das patentes pode ter, e tem vindo a ter, quando aplicado a organismos vivos, ficam ainda bem ilustrados quando consideramos o caso dos agricultores que utilizaram sementes modificadas da Monsanto e pretendem regressar às sementes convencionais. Estes deparam-se muitas vezes com o pagamento de elevadas indemnizações devido ao aparecimento nas colheitas seguintes de sementes que legalmente já não podem ser usadas, mas que involuntariamente, devido ao processo de contaminação, surgiram nos seus solos. E, se um agricultor convencional se depara com a disseminação entre a sua cultura de sementes transgénicas da Monsanto provenientes de um campo agrícola contíguo, pode estar sujeito a sofrer um processo judicial movido por esta empresa, sob a acusação de estar a infringir a patente.

16 Em 1996, a Monsanto, à época a quarta maior empresa química nos EUA e uma das mais poluidoras, anunciou a intenção de reduzir as descargas tóxicas e de ingressar no domínio da biotecnologia. A empresa reteve as divisões agro-químicas, mas renunciou às actividades de químicos industriais e tecidos sintéticos no valor de 3 mil milhões de dólares. Em 1998, quando era já a segunda maior empresa de sementes do mundo, comprou um número considerável de negócios de biotecnologia agrícola e fez parcerias com outros, fortalecendo sistematicamente a partir dessa altura ainda a sua posição estratégica através da aquisição de várias das principais empresas de sementes.

17 V. Leslie Sklair, The Transnational Capitalist Class, Oxford, Blackwell, 2001, p. 224.

18 V. Bowring, Science, Seeds and Cyborgs…, pp. 70-73.

19 V. Garcia dos Santos, Politizar as Novas Tecnologias…, pp. 26-27.

20 Os abusos decorrentes desta situação de desigualdade são comuns. Um caso exemplar é o da quinoa, um cereal cultivado há milhares de anos, constituindo a base alimentar dos povos indígenas da América Latina, responsáveis pelo desenvolvimento de muitas das suas variedades. Em 1994 foi aprovada nos EUA uma patente de uma variedade deste cereal existente na Bolívia (bem como de todas as outras variedades derivadas daquela). Isto significou que os donos desta variedade de quinoa patenteada, embora se tenham limitado a transportar este cereal de avião para os EUA, passaram a poder cobrar direitos às exportações bolivianas de quinoa (cerca de um milhão de dólares por ano). A este respeito, bem como para uma visão alargada dos OGMs no mundo da agro-indústria e da alimentação, v. o rigoroso trabalho da bióloga portuguesa Margarida Silva, Alimentos Transgénicos. Um Guia para Consumidores Cautelosos, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2003.

21 Para um aprofundamento das diversas dimensões das transformações dos direitos de propriedade intelectual e sua relação com o conhecimento tradicional e a biodiversidade, v. os vários estudos de Graham Dutfield: Darrell A. Posey e Graham Dutfield, Beyond Intellectual Property: Toward Traditional Resource Rights for Indigenous and Local Communities, Otava, International Development Research Centre, 1996, Graham Dutfield, Can the TRIPS Agreement Protect Biological and Cultural Diversity?, Nairobi, Quénia, ACTS Press, African Centre for Technology Studies, 1997, id., Intellectual Property Rights, Trade and Biodiversity, IUCN, World Conservation Union, Earthscan Publications, 2002.

22 V. Hugh Lacey (2004), «Ética, produção agro-industrial e biotecnologia», in Danilo Santos de Miranda (org.), Ética e cultura, São Paulo, Perspectiva, p. 216.

23 V. Mae-Wan Ho, Genetic Engineering. Dream or Nightmare? The Brave New World of Bad Science and Big Business, Bath, Gateway Books, 1998, p. 22.

24 Por exemplo, antes do término da patente relativa ao antialérgico Claritin, líder de vendas da Schering-Plough, esta companhia aumentou o seu preço trinta vezes em apenas cinco anos, num total de mais de 50% (v. Marcia Angell, The Truth about Drug Companies, New York, Random House, 2004, pp. XII e 3).

25 V. Garcia dos Santos, Politizar as Nova Tecnologias…, p. 83.

26 V. Bronwin Parry, Trading the Genome. Investigating the Commodification of Bio-information, Nova Iorque, Columbia University Press, 2004, p. 4.

27 V. Parry, Trading the Genome…, p. 148.

28 V. Garcia dos Santos, Politizar as Novas Tecnologias…, p. 95.

29 O caso da brazeína, uma proteína cerca de 500 vezes mais doce do que o açúcar existente em certas bagas da África ocidental, é exemplificativo da situação já cunhada de «biopirataria». O ingrediente activo desta proteína foi patenteado por um cientista que constatara que as populações indígenas utilizavam aquelas bagas na alimentação por serem muito doces. Agora a Universidade de Wisconsin não só não se mostra disposta a dividir os lucros com as populações africanas que de facto descobriram a brazeína (e que, agora que ela é produzida artificialmente em larga escala, já não a conseguem exportar), como também, por deter a patente do seu princípio activo, impede qualquer outra entidade de o produzir. E a brazeína representa um potencial de mercado calculado em 100 mil milhões de dólares anuais. Semelhante destino teve a Mirabilis, uma planta das florestas peruanas tradicionalmente utilizada no tratamento de micoses — cujo princípio activo foi patenteado pela Syngenta. E também a Hoodia, uma planta carnuda espontânea dos desertos da África do Sul, localmente conhecida por ser o melhor meio de estancar a fome e a sede, e que foi patenteada pela Pfizer, que calcula poder vir a obter lucros na ordem dos 3 mil milhões de dólares com a venda de medicamentos para emagrecer à base dessa planta.

30 V. Parry, Trading the Genome…, pp. 254-258.

31 V. Parry, Trading the Genome…, pp. 254-255.

32 Parry, Trading the Genome…, p. 165; v. também pp. 118-120, 152 e 254-258.

33 V. Kloppenburg, First the Seed…, pp. 339-340.

34 V. Philippe Pignarre, O Grande Segredo da Indústria Farmacêutica, Lisboa, Campo da Comunicação, 2004, p. 21.

35 V. Pignarre, O Grande Segredo…, p. 23.

36 V. Pignarre, O Grande Segredo…, pp. 135-140.

37 V. Krimsky, Science in the Private…, p. 57.

38 Bowring, Science, Seeds and Cyborgs…, p. 224.

39 V. Dominique Pestre, Science, argent et politique. Un essai d'interprétation, Paris, INRA Editions, 2003, pp. 114-115.

40 V. Michel Foucault, O Nascimento da Clínica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004 (1980), pp. 216-218.

41 V. Elisabeth Beck-Gernsheim, «Health and responsibility: from social change to technological change and vice-versa», in Barbara Adam, Ulrich Beck e Joost Van Loon (eds.), The Risk Society and Beyond. Critical Issues for Social Theory, Londres, Sage, 2002 (2000), pp. 122-135.

42 V. Michael J. Sandel, «The case against perfection», in The Atlantic Monthly, Abril de 2004, p. 4.

43 V. Bill McKibbenl, Enough. Staying Human in an Engineered Age, Nova Iorque, Henry Holt and Company, 2003.

44 V. Dan Schiller, A Globalização e as Novas Tecnologias, Lisboa, Presença, 2002 (1999). 

45 V. Karl Marx, Capital. A Critique of Political Economy, Nova Iorque, The Modern Library, 1906 (1876).

46 No alento para reconhecer a importância da análise de Marx sobre as estruturas sócio-económicas do capitalismo, limito-me a seguir teóricos reputados que se distinguiram, aliás, pela sua crítica ao sistema teórico marxista e aversão ao comunismo. De entre os muitos autores que poderiam ser citados, é apropriado lembrar as seguintes palavras de Raymond Aron: «Como os amigos da minha juventude, eu nunca separei a filosofia da política, nem o pensamento do compromisso; mas dediquei bastante mais tempo do que eles a estudar a economia e os mecanismos sociais. Neste sentido, acredito que fui mais fiel a Marx do que eles» (v. D'une Sainte famille à l'autre: essays sur les marxismes imaginaires, Paris, Gallimard, 1969, p. 11). Podem também ser recordadas as palavras de Eric Voegelin sobre a crítica da economia política de Marx: «É o único pensador de estatura do século xix que tentou criar unma filosofia do trabalho humano e uma análise crítica da sociedade industrial. […] Cento e cinquenta anos após Marx é duvidoso que qualquer escola de teoria económica tenha suficientemente desenvolvido este ponto» (v. Estudos de Ideias Políticas. De Erasmo a Nietzsche, Lisboa, Edições Ática, 1996, p. 221). Sobre a definição do pensamento de Marx como estrutura escatológica ao serviço do messianismo político, v. a obra seminal de Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism: the Founders, the golden age, the Breakdown, Nova Iorque, W. W. Norton & Company, 2005 (1976); e My correct Views on Everything, South Bend, Indiana, St Augustine's Press, 2005.

47 V. Kloppenburg, First the Seed…, p. 10.

48 V. Harold Innis, Changing Concepts of Time, Toronto, University of Toronto Press, 1952.

49 A este respeito, v. James Carey, «Culture, geography, and communications: the work of Harold Innis in an American context», in William Melody, Liora Salter e Paul Heyer (eds.), Culture, Communication, and Dependency. The Tradition of H. A. Innis, Nova Jérsia, Ablex Publishing Corporation, 1981, pp. 73-91; v. também Filipa Subtil, «Uma teoria da globalização avant la lettre. Tecnologias da comunicação, espaço e tempo em Harold Innis», in Hermínio Martins e José Luís Garcia (coords.), Dilemas da Civilização Tecnológica, Lisboa, ICS, 2003, pp. 287-311.

50 V. John Keneth Galbraith, The New Industrial State, Second Edition, Revised, Boston, Houghton Mifflin Company, 1971 (1967), pp. 213-220. Na tradução portuguesa desta obra, assinada por Fernando Felgueiras, os conceitos admitted sequence e revised sequence surgem traduzidos, respectivamente, por «sequência clássica» e «sequência invertida» (cf. O Novo Estado Industrial, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1973, pp. 263-272).

51 Galbraith, The New Industrial…, p. 214. Jean Baudrillard fez eco desta visão na sua obra de crítica à sociedade de consumo (v. La société de consommation, Paris, Gallimard, 1970).

52 Karl Polanyi, The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time, Boston, Beacon Press, 2001 (1944).

 

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

 

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons