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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.180 Lisboa  2006

 

Isabel, condessa de Rio Maior, Correspondência para os seus filhos 1852/1865, Estudo biográfico, organização e notas de Maria Filomena Mónica, 2.ª ed., Lisboa, Quetzal Editores, 2004, 350 páginas.

Branca de Gonta Colaço, Memórias da Marquesa de Rio Maior, prefácio de Maria Filomena Mónica, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2005, 296 páginas.

 

Um registo de correspondência familiar entre uma mãe e os filhos e um livro de memórias… Duas obras, duas autoras com muitos pontos em comum, para além de uma estreita relação familiar entre si: Isabel Maria de Sousa Botelho de Vasconcelos (1812-1890), condessa de Rio Maior, autora do acervo epistolar colocado à disposição do público por decisão dos seus descendentes, era sogra de Maria Isabel Lemos e Roxas Carvalho Menezes de Saint-Léger (1841-1920), marquesa de Rio Maior, cujas memórias, recolhidas por Branca de Gonta Colaço entre 1913 e 1918 e dadas à estampa pela primeira vez em 1930, são agora reeditadas, numa feliz iniciativa da Parceria A. M. Pereira.

Ambas as autoras pertencem à nobreza portuguesa, por nascimento e casamento, mais precisamente à aristocracia de corte, tendo sido Maria Isabel de Saint-Léger dama da rainha D. Maria Pia. Encontravam-se, por isso, numa situação excepcional como observadoras da vida no paço, reconstituindo-nos, por vezes com a minúcia de uma reportagem e o pormenor de uma representação pictórica, momentos cruciais da vida palaciana: festas e saraus, a recepção a D. Estefânia, os preparativos do casamento de D. Pedro V, as exéquias da rainha, no primeiro caso, ou a inauguração do caminho de ferro do Norte e do Leste, as festas do casamento do príncipe D. Carlos com a princesa Amélia de Orleães, ou o regicídio, no segundo caso, entre tantos outros acontecimentos.

Relações familiares e mundanas definem o seu universo quotidiano, as quais são elementos-chave na formação da identidade privada e pública aristocrática. Os espaços frequentados são conhecidos: Lisboa, Pedrouços, Vale do Tejo… a que se juntam algumas deslocações ao estrangeiro sobretudo por razões de doença. Mas, mesmo fora do país, o círculo da convivência continua estruturado sobre redes pessoais que se cultivam como se de um bem patrimonial se tratasse, no seio do qual as amizades se transmitem de pai para filho. O aparato crítico, elaborado por Maria Filomena Mónica e constituído em grande parte por pequenas notas de carácter genealógico e biográfico, é bastante elucidativo, ao contextualizar os episódios descritos e ao esclarecer «quem é quem» no seio do círculo fechado e endogâmico da nobreza portuguesa. Neste campo específico, estes dois livros, que, de algum modo, se completam, constituem um testemunho histórico precioso sobre a vida quotidiana da nobreza ao longo da segunda metade do século XIX, no momento em que a sociedade aristocrática estava em vias de desaparecimento face à emergência de novos valores, laicos e republicanos. Nem vítimas, nem heroínas, Isabel Maria e Maria Isabel não foram imunes às transformações do seu tempo, que relatam, analisam, comentam, sem nunca perderem de vista o enquadramento e o comentário judicioso que ilumina e esclarece comportamentos e acções.

Todavia, um dos grandes méritos destas obras, redigidas com grande domínio da arte da escrita e de narrar, reside no olhar que as suas autoras projectam sobre a sociedade do seu tempo e o mundo em que vivem. Neste aspecto, as diferenças de personalidade e as singularidades individuais sobrepõem-se à identidade do meio.

Sensível, inteligente e crítica, Isabel Maria, condessa de Rio Maior, deixou-nos nas cartas redigidas para os seus filhos, António e José, quando estes se encontravam em Coimbra, a estudar na universidade, observações incisivas mas desencantadas sobre a política nacional, sobre as causas do seu tempo (a «questão dos vínculos», a entrada em Portugal das Irmãs de Caridade…) ou tão-só sobre alguns vultos do rotativismo parlamentar, que disseca sem dó nem piedade, por entre as mil e uma descrições dos trabalhos e das alegrias de uma dona de casa infatigável (a gestão do património, as preocupações financeiras, as soirées e as festas, os achaques e os lutos…) ou das suas responsabilidades directivas em instituições de beneficência.

Conhecedora daquilo de que fala, Isabel Maria define-se como antimiguelista e anticabralista, manifestando simpatia pela Regeneração e pelo progresso alcançado no país. Move-a a lógica burguesa que apostava na educação dos filhos varões, a qual é assumida como a valorização de um capital sócio-cultural. «Bem sabes que o estudo é a minha mania, a minha ideia fixa», escrevia em 12 de Novembro de 1856. Procura incutir nos filhos a vontade de se distinguirem pelo conhecimento, pelo talento e, acima de tudo, por «glórias próprias suas», ao arrepio da educação tradicional da fidalguia portuguesa. Bem à maneira do século XVIII, a condessa de Rio Maior «utiliza» a correspondência trocada com os filhos, a qual é redigida num estilo coloquial sob a forma de uma conversa por escrito, como um instrumento propedêutico, de educação à distância, transmitindo por essa via subtis mensagens pedagógicas e conselhos moralizadores. As suas cartas deixam ainda transparecer a natureza do afecto que a une aos filhos, presente nas expressões de ternura reiteradamente repetidas («meu querido filho do meu coração»), no envio de pequenos mimos («filhoses»…) ou na angústia com que vive os seus «defluxos» ou a intervenção no episódio académico da «Tomarada».

Dotada de uma forte personalidade e de uma cultura fora do comum, Isabel Maria, condessa de Rio Maior, afasta-se do padrão feminino oitocentista: para si a política não guarda segredos nem a intimida. Constitui uma figura de indiscutível modernidade, tão longe e tão perto de nós.

Ainda na linha do registo feminino e autobiográfico, as Memórias da Marquesa de Rio Maior obedecem a outros pressupostos. Estas constituem um verdadeiro compêndio de uma mulher madura, consciente das qualidades do seu espírito de observação e de excelente comunicadora que sabe imprimir vivacidade e brilho aos acontecimentos narrados. Convergem nesta obra o interesse pela vida privada, durante muito tempo relegado para o campo da petite histoire, o fascínio pelo aristocrático século XIX e a descoberta de personagens públicas.

As suas recordações são uma mina de informações, embora filtradas pelo prisma do eu que impõe escolhas, modifica tonalidades ou as submete a distorções. Casamentos e festas reais, cerimónias do beija-mão, visitas de príncipes e figuras da realeza, estadas no estrangeiro e a vida nas termas, entre tantos e tantos acontecimentos, são descritos com indefectível encanto.

Nem sempre, porém, história e memória coincidem nesta obra, na qual se capta a vontade manifesta de exaltação da monarquia e dos seus valores. Tudo o mais é deixado na sombra e as omissões e os silêncios pesam como chumbo… As suas recordações suspendem-se com a implantação da República para serem retomadas mais tarde, em França, entre exilados. A adesão ao regime monárquico é o «seu» fio condutor da história, a matriz da sua identidade memorialista.

Trata-se, pois, de dois importantes testemunhos humanos, dois olhares femininos sobre realidades próximas e que tanto interessam ao historiador como ao sociólogo e ao investigador de história das mulheres. Enriquecem as obras os prefácios redigidos por Maria Filomena Mónica.

Duas obras a ler e a reler, aguardando-se com expectativa a versão on line da restante correspondência da condessa de Rio Maior. Que outras surpresas nos aguardarão?

 

IRENE VAQUINHAS

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