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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.180 Lisboa  2006

 

Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista, António Firmino da Costa (orgs.), Etnografias Urbanas, Oeiras, Celta Editora, 2003.

 

É de saudar que a comunidade académica tenha trocado a publicação das velhas «actas» de encontros científicos — pesadas, difíceis de encontrar e com textos demasiadamente próximos da lógica da apresentação oral — por formas mais práticas e duradouras de difusão de resultados. Estas variam, no momento que corre, entre a edição on-line, com as suas grandes vantagens e grandes riscos, e os mais clássicos formatos de livro/colectânea ou de número especial de revista científica. Entre estes dois, debate-se ainda qual virá a tomar preponderância: o número temático de revista, com as suas garantias de rigor assente no sistema de revisão por pares, cada vez mais submisso às regras que emanam das ciências físico-naturais, ou o livro, com a sua liberdade e o seu espaço consolidado nos hábitos dos consumidores-leitores, das bibliotecas, dos distribuidores e livreiros. A opção é ainda livre e foi por este último formato que optaram os coordenadores de Etnografias Urbanas (Oeiras, Celta Editora, 2003) para materializar os resultados do seminário «Cidade e diversidade: perspectivas de desenvolvimento em antropologia urbana», realizado no ISCTE em 2001. Organizado pela antropóloga Graça Índias Cordeiro e pelos sociólogos Luís Vicente Baptista e António Firmino da Costa, todos eles com longa experiência de trabalho etnográfico em Lisboa, o encontro reuniu especialistas portugueses e interlocutores internacionais; sendo várias as proveniências disciplinares, dominam a antropologia e a sociologia qualitativa. De notar ainda que, embora o referencial teórico explicitado seja largamente o anglófono e sociológico, a escolha dos interlocutores — os antropólogos Gilberto Velho, do Rio de Janeiro, e Joan Pujadas, de Tarragona — revela uma das tendências contemporâneas nas ciências sociais portuguesas, a de trocar a relação hierárquica e nem sempre comunicante com os autores de língua inglesa e francesa, praticada pela geração anterior, pela relação mais paritária com colegas espanhóis e brasileiros que trabalham em assuntos afins.

Sem pretender ser exaustiva ou programática, Etnografias Urbanas dá-nos uma visão geral sobre o estado da antropologia urbana em Portugal ou, para sermos mais precisos, dos estudos sociais urbanos que recorrem à etnografia como método principal. O formato de livro revelou-se uma boa escolha, já que permitiu reproduzir a pulsação das apresentações originais com os devidos enquadramentos teóricos e discussão final. Temos, por conseguinte, um número razoável de capítulos curtos, rápidos, incisivos, pontuados por reflexões de maior fôlego.

Abre o volume uma introdução geral dos três autores, seguida de uma apresentação teórico-metodológica de Graça Cordeiro, «A antropologia urbana entre a tradição e a prática». Os capítulos organizam-se em duas secções: «Territórios, imagens e poderes», apresentada por Luís Baptista, e «Estilos de sociabilidade», apresentada por Firmino da Costa.

No primeiro grupo contamos com as reflexões de Joaquim Pais de Brito, que, a partir da Exposição do Fado, que organizou no Museu de Etnologia, chegou à «cidade exposta» — ou como um antropólogo treinado no rural e no circunscrito da aldeia encara os fios do urbano e deles expande para a problematização da antropologia, do terreno, do método. Segue-se Luís Fernandes, à solta no Rio de Janeiro com «a imagem predatória da cidade»; e, com Bachelard a bater-lhe no peito e o Porto na lembrança, as imagens soltas dos perigos que se colam à cidade cosem-se afinal numa proposta de reflexão articulada onde perpassa a experiência sensorial e cognitiva dos primeiros momentos de uma incursão etnográfica em território estranho. O texto seguinte, «Processos de integração na imigração», de Rui Pena Pires, constitui-se num momento de explanação conceptual e uma contribuição para o quadro possível de teorização de alguns dos processos que mais atraem os apetites etnográficos e aparecem, por vezes apenas na fugacidade da aparência, com recortes etnicizados e facilmente encurralados na rotina teórica que lhe propõe estudos de integração; um alerta para os excessos da empiria, portanto. Abordando um outro território, precisamente no lugar oposto dos tendencialmente marginais ou obscuros objectos de pesquisa etnográfica, vem o capítulo «Mulheres na polícia — visibilidades sociais e simbólicas», de Susana Durão e Alexandra Leandro; se na constelação convencional a polícia estava fora da cartografia do etnografável, já que era um objecto conhecido e medido pelos instrumentos do Estado e do poder, já a sua composição e mutações merecem uma reconsideração, e assim o fazem as autoras, abordando como centrais os processos de transformação na composição e género deste corpo habitualmente masculino. Com a polícia e as suas regularidades ao fundo, Tiago Neves apresenta-nos notas das suas incursões aos contextos portuenses de circulação e consumo de droga, ou, como na linha de outros autores apropriadamente designa, os «territórios psicotrópicos» e as suas «definições de normalidade» e «controle social formal». Para terminar a secção, temos em «Estratégias arquitectónicas, tácticas habitacionais» uma inspirada e inspiradora viagem à materialidade habitacional na cidade de Lisboa, com breve referência a três bairros de épocas diferentes — Avenidas, Alvalade e Olivais Sul, com mergulho completo e a vários ritmos neste último. Sem deixar de contextualizar esta experiência urbanística de grande escala entre as medidas para contenção das ameaças de caos periférico, enquadramento de conflitos, redução de tensões sociais, João Pedro Nunes privilegia a transformação do espaço material genérico da «habitação» no espaço humanizado, vivido, socializado e constrangido de particularidades da «casa».

Na segunda secção é-nos oferecido um conjunto de olhares intimistas sobre sociabilidades urbanas específicas. As referências movem-se entre grupos, redes, bairros, categorias ocupacionais/recreativas e eventos sociais e culturais. Temos as sociabilidades entre guineenses, apresentadas por Fernando Luís Machado, articulando espaço, classes, parentesco, relações intra e interétnicas; as jovens «Estrelas caboverdianas» do bairro «Estrela d’África», estudadas por Marina Antunes, cruzando as referências à geografia de diferenciação cabo-verdiana, as articulações centrípetas de classe de idade, a condição de frágil cidadania e a gramática redentora da amizade e da dança; a curiosa Xuventud de Galícia em Lisboa, apresentada por Inês Pereira («Construção identitária em rede»), onde se constroem identidades que dispensam o lastro genealógico e se concentram em actuações criadoras de legitimidade. Por fim, temos três viagens ao mundo das alterações de consciência e da sua indução colectiva, os rituais e práticas urbanos associados às substâncias e ao transe: Maria do Carmo Carvalho apresenta-nos «experiências psicadélicas juvenis», Susana Henriques fala-nos de «risco cultivado» em «novos consumos em ambientes de lazer» e Miguel Chaves leva-nos às «imagens e éticas de uma festa contemporânea», a Rave.

Com sínteses finais de Gilberto Velho («Continuidade e inovações na antropologia portuguesa: cidade e diversidade ») e Joan Pujadas («Territórios, redes e formas de sociabilidade: novos horizontes nos estudos urbanos portugueses»), este livro constitui-se num atraente caleidoscópio — à semelhança da cidade, e, como ela, alegremente viciando, convidando, inspirando a mais.

 

CRISTIANA BASTOS

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