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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.178 Lisboa  2006

 

Frank Furedi, Where Have All the Intellectuals Gone?, Londres, Continuum, 2004.

Maria Filomena Mónica

 

Em Maio de 2001, Frank Furedi, sociólogo da Universidade de Kent, escreveu um artigo para o jornal The Sunday Times, intitulado «What is university for now?», no qual levantava problemas que surgem, com outro desenvolvimento, no livro que acaba de publicar, Where Have All the Intellectuals Gone? Segundo ele, a cultura superior passou, nas sociedades modernas, a ser substituída por «culturas», um termo nascido na antropologia, com conotações igualitaristas, no sentido em que, ao abordar os comportamentos dos nativos, o profissional não deveria tecer juízos de valor, mas tentar compreender os seus modos de vida. Dentro dos seus muros disciplinares, a ideia era justa. Importada para outras áreas, é um veneno. De facto, é nela que radica a concepção dos curricula alternativos para os alunos provindo de meios desfavorecidos: não para eles Homero, Mozart ou Eça, mas a análise de uma telenovela, de uma canção rap ou do resumo de Os Maias.

Esta ideologia veio juntar-se à ideia de que a escola, incluindo a universidade, deve transmitir apenas conhecimentos úteis. O saber puro, o deleite de descobrir algo de novo, o prazer da experimentação, deixaram de ter cabimento nos estabelecimentos de ensino, substituído, como foi, por «saberes» que vão de «choques tecnológicos» a «competências linguísticas». Como recorda Furedi, foi aqui que nasceu a ideia de que o saber fosse considerado, não o fruto do trabalho desinteressado, mas o produto final de um processo tecnológico. É por estas e por outras que o pós-modernista Jean François Lyotard anunciou, ao que parece com ar radiante, a era da morte do professor. Segundo ele, «na transmissão do conhecimento, um professor não é mais competente do que um banco de dados». A escola poderia, por conseguinte, ser substituída com vantagem por um computador. O que este filósofo esquece é o facto que qualquer ser humano sabe por experiência própria: mais do que o conteúdo de uma disciplina, o que nos marca para a vida é a personalidade de um professor.

Conheço melhor a universidade do que outros níveis de escolaridade e, por isso, prefiro falar do que ali se passa. Mas a nova ideologia permeia o sistema de ponta a ponta. Uma vez que a noção de «um nível adequado de conhecimento», de uma barreira que tem de ser ultrapassada, é geralmente considerada elitista, a instituição sente-se mal quando confrontada com alunos que, ou porque não estudaram, ou porque são estúpidos ou, caso mais trágico, por provirem de meios socialmente desfavorecidos, não conseguem corresponder ao mínimo que lhes deveria ser exigido.

A noção de elite deixou de ser aceitável. Tente argumentar que o ensino superior deve ser elitista e verá o que lhe acontece. Em vez de analisarem a forma como a origem social determina o acesso às universidades — o único estudo sobre o tema feito em Portugal tem mais de quarenta anos —, os intelectuais, ou, para ser justa, grande parte dos intelectuais, negam, à partida, a concepção meritocrática da instituição. O meu

pessimismo relativamente às universidades é frequentemente criticado. Devo esclarecer que o meu cepticismo não se reduz ao solo pátrio, estendendo-se, pelo contrário, ao mundo europeu e americano, embora reconheça que nas nossas escolas surgem dislates que jamais encontrei em qualquer outro país. Para muitos, o facto de a universidade portuguesa se ter expandido — passando dos 40 000 alunos dos anos 1960 para os 400 000 de hoje — é uma proeza sem mácula. Mas, como justamente argumenta Furedi, um dos crimes cometidos nas instituições de ensino superior massificadas é a infantilização dos alunos, os quais, pela sua idade, percurso e maturidade, deveriam ser olhados como adultos e não como menores intelectuais.

Neste contexto, a valorização dos «saberes» trazidos pelos estudantes para as salas de aula é hostil à difusão do conhecimento. O que os alunos já sabem não carece de ser elaborado. Mais valia às universidades transmitirem aquilo que as famílias não podem dar, ponto tanto mais grave quanto, em Portugal, muitos alunos provêm de lares cujos pais, avós e bisavós são analfabetos. A passagem mais importante do livro de Furedi vem perto do fim, quando, com razão, chama a atenção para o facto de a institucionalização das atitudes antielitistas não constituir uma resposta à procura vinda de baixo, das populações, mas corresponder a uma ideia surgida no interior da própria elite. Trata-se de um caso evidente de snobismo invertido. A palavra snob é geralmente aplicada a alguém cuja conduta é determinada pela admiração bacoca diante da riqueza ou do status de outrem. Por seu lado, o termo anti-snob refere-se aos que optam por reverenciarem o vulgar, o ordinário e o popular. Esta posição, rara em eras passadas, tem vido a alargar-se, afectanto, de forma inesperada, os intelectuais, com especial relevo para os radicais, que deixaram de acreditar nas reformas, quaisquer reformas, a fim de fazerem a apologia da tábua rasa revolucionária.

Em 1964, Pierre Bourdieu, num livro justamente famoso, Les héritiers, defendeu a ideia de que o gosto estético, a cultura superior e a admiração pelas obras de arte eram socialmente determinados. Como é patente, a tese contém uma dose de verdade. Na altura, a obra conquistou-me. O risco consiste na interdição informal dos mais desfavorecidos à cultura superior com base em que esta é mais um meio ao seu alcance para os poderosos dominarem os pobres. Nos livros seguintes, nomeadamente em la reproduction, de 1976, Bourdieu encurralou-se num programa absurdo. As medidas tendentes a democratizarem o acesso à cultura seriam inúteis, por constituírem estratégias subtis da burguesia para dominar as classes trabalhadoras. Todos os critérios de avaliação, tanto do belo quanto da verdade, desapareceram. Aquilo de que gosto, acredito ou admiro, proclamavam os relativistas culturais, vale tanto quanto aquilo de que tu gostas, acreditas ou admiras.

O objectivo dos progressistas pretéritos era a elite social, não a intelectual. Mas o antielitismo contemporâneo raramente se dirige aos ricos, concentrando-se preferencialmente nos que defendem a existência da cultura superior. A exigência de níveis de excelência é tida como um pecado, uma vez que, por implicação, desrespeita aqueles que não conseguem chegar ao patamar superior. A fim de se manter a «auto-estima» de todos os meninos, seria necessário destruir as diferenças. Ironicamente, quem mais sofre com a difusão desta ideologia são os pobres.

Para os relativistas culturais, o povo seria incapaz de apreciar um produto cultural de qualidade. O que se está a passar nas escolas indigna Furedi. É esse, aliás, um dos méritos do livro. Num momento em que tantos baixam os braços, ele continua a lutar e, mérito seu, a ter saudades do tempo em que existiam intelectuais, como Bertrand Russell (cuja Autobiografia recomendo vivamente), capazes de, em simultâneo, produzirem obras intelectuais de peso e de se envolverem nos debates contemporâneos.

Na raiz do mal está a incapacidade de os intelectuais estabelecerem a necessária distinção entre elitismo e exclusão social. Se é verdade que, por vezes, elites sociais e intelectuais coincidem, isto está longe de ser a regra, especialmente em Portugal, onde, desde sempre, as classes altas consideraram a cultura um adereço desnecessário. Como Furedi salienta, os populistas culturais não são democratas. Nenhum cigano, que eu saiba, pediu ao Estado para ensinar os filhos a atirar facas, nenhum angolano a explicar-lhes como se tocam tambores, nenhum camponês a introduzi-los na arte das desfolhadas. Para eles, contudo, esta objecção não interessa, porque são estas «modernices» que lhes conferem poder.

A nova ideologia é paternalista no pior sentido da palavra: trata-se de dar aos filhos dos pobres o conhecimento que os «filósofos-cientistas» julgam acessível aos materialmente desmunidos. Do cimo da sua sapiência, pensam que o homem comum não é capaz de apreciar a cultura superior, excepto na versão diluída que, da escola primária à universidade, lhe é oferecida. As actuais políticas educativas constituem um cruzamento entre a menorização e a psicoterapia: menorizam os estudantes, porque os nivelam pelo menor denominador comum, e psicoterapizam a cultura, porque não querem beliscar a «auto-estima» dos adolescentes.

As últimas linhas do livro de Frank Furedi constituem um apelo importante. Segundo ele, ao sermos cúmplices do relativismo cultural, estamos a dar cabo de nós próprios. A obra termina da seguinte forma: «Há muito pouco que possamos fazer para forçar as elites a abandonarem uma visão do mundo instrumental e inimiga da cultura. Mas podemos envolver-nos num combate, no campo das ideias, a fim de conquistarmos o coração e o espírito do público. A forma como o fizermos é uma das questões cruciais do nosso tempo.»

 

 

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