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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.177 Lisboa out. 2005

 

Ferruccio Gambino, Migranti nella tempesta: avvistamenti per l´inizio del nuovo millennio, Ombre Corte/culture, Verona, 2003, 182 páginas.

Marzia Grassi

Ferruccio Gambino apresenta nesta obra uma interessante análise política sobre alguns dos instrumentos mais pertinentes para a compreensão científica de problemas que parecem relacionados com o contexto actual das migrações internacionais. Dizemos parecem relacionados, não porque haja alguma dúvida sobre a sua existência, mas antes para sublinharmos a complexidade deste tema em termos de relações causa/efeito.

As questões tratadas no livro são essenciais e resultam de uma reflexão que o autor desenvolve há vários anos. Com efeito, o livro reúne seis textos escritos nas ultimas duas décadas do século XX (1979-1998), quatro dos quais já publicados. Os dois inéditos (o quarto e o sexto em ordem de apresentação no livro) correspondem a duas contribuições científicas apresentadas pelo autor — docente de Sociologia do Trabalho na Universidade de Pádua (Itália) — no âmbito de seminários internacionais, um dos quais em Lisboa em 1992. A apresentação formal dos textos segue uma ordem cronológica muito útil, sobretudo para os leitores não familiarizados com a história italiana.

No primeiro e no segundo texto, Ferruccio Gambino debruça-se sobre alguns aspectos da contratação colectiva em Itália e apresenta uma leiura da expansão da «nova» divisão internacional do trabalho, da mão-de-obra exposta ao mundo, da precarização e da segregação do trabalho, aspectos que considera um instrumento oportuno para analisar o modelo de produção e reprodução capitalistas que rege o mundo actual.

A análise de Gambino tem o mérito de enquadrar a imigração em Itália a partir da sua origem, anos 70 do século XX, em diferentes períodos. Assim, o autor começa por destacar o esforço de alguns militantes políticos nos anos 70 do século passado como tendo sido os primeiros a tentarem analisar a questão migratória em Itália. Reconhece a dificuldade desta tarefa, pois durante um século (1880 a 1980) tinha havido um muito bem sucedido esforço político de «branqueamento» da população italiana. Em Itália, ao longo do século XX e até os anos 80, as questões migratórias não eram, pura e simplesmente, abordadas. É a partir da década de 80 que o país, reconvertido em país de acolhimento, necessita de problematizar as questões ligadas a este fenómeno, questões delicadas, uma vez que obrigavam a uma reflexão sobre as atitudes da população em relação às diferenças. Mas o silêncio pactuado pelos diferentes regimes políticos sobre esta questão não impede que, nos finais dos anos 70, a imigração se ligue ao processo de enfraquecimento do movimento operário e à erosão da contratação colectiva. Ferruccio Gambino é de opinião que a análise do mercado de trabalho italiano necessita de ser feita tendo em consideração, por um lado, os movimentos migratórios produtivos e a chegada de trabalhadores migrantes e, por outro lado, a reacção do poder público que utiliza o trabalho dos migrantes como arma de chantagem contra o trabalho organizado e as conquistas sindicais dos anos 60 e 70. Quanto ao momento actual, a questão migratória em Itália é vivida como um processo social muito importante que origina um debate denso e emocionalmente intenso em todos os sectores da sociedade.

No terceiro texto que o autor apresenta há um salto cronológico até à primeira expedição no Golfo (1990-1991). O autor explica este salto temporal pela impossibilidade de desenvolver um estudo de terreno sobre as questões abordadas nos dois primeiros textos, por «motivi di forza maggiore». Ferruccio Gambino relata que foi obrigado a uma «migração forçada» devido a acusações, das quais será completamente ilibado, no âmbito da ofensiva política e judiciária contra a «autonomia operária organizada», iniciada em 7 de Abril de 1979, com o encarceramento de muitos dos seus dirigentes, que ficarão durante um longo período em prisão preventiva antes de serem completamente absolvidos das acusações.

Ferruccio Gambino, no texto que dá o título ao livro (Migranti nella tempesta), oferece uma análise político-económica da operação «tempestade no deserto», habitualmente referida como um simples evento militar, destacando os fenómenos de migração e o destino da gente comum nos países do Golfo. Em particular, debruça-se sobre o destino da juventude iraquiana e dos migrantes do Golfo, bem como sobre as deslocações livres e forçadas durante e depois da operação militar.

O quarto texto, inédito, corresponde a uma comunicação apresentada em Lisboa em 1992. Aqui o autor apresenta um estudo de caso situado geograficamente numa região do norte da Itália, na província de Vicenza. A população local tem historicamente uma escassa experiência de contactos com fenómenos de imigração e o autor conta a «descoberta» por parte da população autóctone de que os imigrantes, na sua maioria, não são pessoas «de passagem», mas sim indivíduos e famílias inteiras que vieram para ficar. Esta análise fundamenta-se em dados que resultam do trabalho de campo de Laura Corradi (35 entrevistas entre 1989 e 1991) no terreno norte-oriental italiano. É oportuno recordar que esta região tem sido um lugar privilegiado de experiências ligadas ao fenómeno migratório de diversa natureza: das lógicas católicas e sindicais de acolhimento (refugiados vietnamitas dos anos 70, aos quais se seguiram outros vindos da Eritreia, do Chile, da Argentina, do Uruguai e de Salvador, todos eles apoiados pela diocese católica) às lógicas de recusa e oposição sintetizadas no racismo da Liga Lombarda, que, no entanto, não impediu a utilização dos benefícios do trabalho dos imigrados. Foi também nesta região que os poderes públicos e burocráticos implantaram um modelo económico de «zona de desenvolvimento especial». Este modelo fundamentou-se, segundo o nosso autor, na euforia ideológica da economia subterrânea, que esconderia um ataque directo aos direitos dos trabalhadores.

Se não fosse pela complexidade da questão da informalidade económica — porventura uma das mais debatidas na área da economia transnacional tanto em termos teóricos e académicos como a nível político e nas grandes organizações internacionais públicas preocupadas com a compreensão dos motivos do seu crescimento exponencial —, encontraríamos aqui uma clara explicação deste tema, muito caro aos economistas do desenvolvimento. A explicação funcionalista que o autor propõe não me parece completamente satisfatória em termos teóricos, embora a considere muito pertinente em termos políticos e sindicais. É que os actos económicos não existem isolados das relações sociais e culturais em que se estruturam e das quais se alimentam. Analisá-los implica o seu enquadramento na questão mais vasta da organização social e territorial no contexto do movimento de pessoas, informação e mercadoria do mundo actual. As características e as formas que este movimento assume obrigam à reformulação paradigmática da organização social económica e política do planeta e ao questionamento dos valores em que esta última se fundamenta.

Nos últimos dois textos — «Aporie delle migrazioni internazionali» e «Convergenze parziali del lavoro vivo» — o autor oferece uma releitura da teoria do imperialismo e das consequências políticas da divisão internacional do trabalho. Questiona que estratos sociais — e não só os migrantes — têm interesse em invocarem uma suspensão do senso comum e em distanciarem-se do megatrend da superioridade civilizacional que enquadra as migrações nas tendências de longo período do mundo globalizado. A questão migratória é um fenómeno global que se relaciona com a questão da mão-de-obra também de uma forma global e que põe em evidência as desigualdades e as lutas pela redistribuição da riqueza. Depois de analisar a história das atitudes dos países mais ricos no acolhimento da mão-de-obra a partir do período logo a seguir à segunda guerra mundial, o autor sintetiza a questão com a frase «pede-se mão-de-obra e chegam pessoas», sublinhando que isto implica considerar uma maneira de acolher também os corpos, as mentes, os costumes, as línguas e as aspirações dos que migram. O ponto de contacto do convívio entre populações de acolhimento e migrantes torna-se, segundo este autor, o factor crucial para a aquisição de capacidades de comunicação sociais e políticas. Defende por isso que é esta a via que as sociedades de acolhimento devem percorrer, pois é a única que poderá impedir a rigidez social.

O interesse deste livro situa-se sobretudo na capacidade de o autor conseguir repensar a dimensão internacional das mudanças em curso e das relações sociais, estendendo a análise além dos países ricos, aos lugares da mão-de-obra barata. Os textos seleccionados são um contributo para a percepção da necessidade que move os governos dos países industrializados a apropriarem-se dos recursos naturais de outras regiões, provocando com isso a desestabilização de milhões de pessoas.

Ferruccio Gambino trata aqui de questões incómodas, como seja a relação estreita entre racismo, selecção e acumulação, questões hoje em dia ainda inquietantemente actuais e que precisam de ser consideradas no contexto político internacional caracterizado por recentes fluxos migratórios que ainda estão longe de serem verdadeiramente livres. Os movimentos migratórios actuais, como bem explica o autor, criam situações de graves desigualdades estruturais que só podem ser explicadas com a interpretação do processo de transformação da discriminação que o autor situa, no primeiro texto, no âmbito das lutas anticoloniais e da necessidade de libertação do trabalho forçado. A relação de causa-efeito entre a divisão internacional do trabalho e os fluxos migratórios torna-se, com este texto, sem dúvida, mais clara, uma vez que o autor a situa no contexto do actual ciclo liberalista. Os fluxos migratórios que a divisão internacional do trabalho provoca levam o autor a situar a centralidade da questão no direito de cidadania universal em defesa dos indivíduos, uma vez que os direitos individuais são ofendidos sempre que se começa a falar de «nós» e dos «outros» e sempre que se classificam os migrantes segundo critérios — étnicos, religiosos ou geográficos — que acabam por fechá-los num gueto.

 

 

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