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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.176 Lisboa out. 2005

 

Manuel Henrique Figueira, Um roteiro da educação nova em Portugal. Escolas novas e práticas pedagógicas inovadoras (1882-1935), Lisboa, Livros Horizonte, 2004, 319 páginas.

 

Jorge de Sousa Rodrigues

Os temas relacionados com o Movimento da Educação Nova em Portugal têm merecido especial atenção dos investigadores nos últimos anos. A partir de uma diversidade razoável de fontes, Henrique Figueira procurou identificar o modo como este movimento se implantou e que desenvolvimento teve, assumindo deliberadamente uma atitude de registo das actividades de doze escolas, tendo como incidência cronológica principal as três primeiras décadas do século XX.

A obra, apresentada como Roteiro, procura explicar historicamente cada escola, inseri-la no meio educativo da época e compará-la com iniciativas semelhantes. Para além disso, são apresentados e analisados os casos concretos da difusão de quatro práticas pedagógicas inovadoras — trabalhos manuais educativos, correspondência interescolar, imprensa escolar e cinema educativo —, classificadas como tal pelos protagonistas que as concretizaram noutras escolas espalhadas pelo país.

O Movimento da Educação Nova surgiu nos anos 80 do século xix, representando a primeira tentativa estruturada de dimensão internacional que pôs em causa a escola tradicional e os sistemas estatais de ensino desenvolvidos a partir de finais do século xviii: a transmissão dos conhecimentos exclusivamente através das aulas magistrais e dos livros estava completamente desligada do real; as aquisições cognitivas de tipo memorial não originavam qualquer saber que tivesse por base a compreensão; finalmente, o ensino simultâneo era considerado um abuso por uniformizar horários, programas e métodos, com uma absoluta falta de respeito pela identidade própria e pela autonomia das crianças.

Ao mesmo tempo que contestou a escola tradicional, este movimento inovador pretendeu criar uma escola alternativa que respeitasse a individualidade dos alunos, procurando ter em conta o desenvolvimento das suas aptidões. Este propósito foi posto em prática através da introdução de novos elementos de apoio à formação das crianças e jovens: grupos de trabalho de composição variável ao longo do ano — as chamadas classes móveis; novos espaços para actividades educativas, além da sala de aula — excursões científico-pedagógicas, visitas de estudo, conferências proferidas aos alunos e pelos alunos, jogos lúdico-educativos e jogos desportivos; novos espaços de saber e de saber-fazer, para além das disciplinas — trabalhos manuais educativos, trabalhos oficinais e trabalhos agrícolas; novos espaços de autocontrolo — tempos livres para actividades de escolha dos alunos geridos por si próprios, a par do controlo social exercido através do horário escolar; finalmente, novos espaços de participação social — associações, «solidárias», clubes, jornais escolares e correspondência interescolar. O desenvolvimento da educação nova — movimento pedagógico que se desenvolveu essencialmente nos países ocidentais — incorporou as preocupações da sociedade e os avanços científicos de várias disciplinas nos anos finais de Oitocentos. Uma das influências que se podem identificar é a do higienismo, derivado da necessidade de correcção dos problemas causados pelo industrialismo e urbanismo desenfreados. Vários estudos científicos evidenciavam também os malefícios provocados nas crianças escolarizadas pelo modelo de organização escolar vigente, contrário ao seu desenvolvimento fisiológico e psicológico.

Os progressos da medicina experimental permitiram a identificação da origem dos males e a elaboração de soluções. A educação nova lutou pela afirmação da higiene escolar, no cruzamento da higiene com a pedagogia.A medicina pedagógica realçou a importância da observação do indivíduo e a consideração das suas potencialidades físicas e mentais, como condições prévias do processo de aprendizagem. A psicologia, emergente nos finais do século, mostrava as especificidades da infância em relação à idade adulta, dando origem ao desenvolvimento de uma pedagogia centrada essencialmente no aluno. Por outro lado, do ponto de vista político, cada vez mais se sentia a necessidade de formação de elites com capacidade de niciativa que pudessem corresponder à agressiva competição entre os países. Manuel Henrique Figueira procedeu à análise dos elementos da cultura organizacional das doze escolas em apreço: as manifestações conceptuais (a partir dos textos de autojustificação), as práticas pedagógicas, os sistemas de avaliação dos alunos, as normas e regulamentos e as actividades educativas não curriculares, como jogos, festas, visitas de estudo, excursões, colónias de férias e outras.

Apesar dos esforços de inovação, estas escolas não conseguiram romper com a estrutura organizacional do modelo escolar dominante, tendo sido compostas por uma mescla de elementos estruturais e organizacionais. Alguns elementos foram adoptados da escola que existia (e que continuou a existir). Outros faziam (e ainda hoje fazem) parte da cultura escolar, de um modo geral (a chamada gramática da escola). Outros ainda eram efectivamente elementos da educação nova.

Da escola existente foi adoptada, na maior parte dos casos (apesar de todas as ideias inovadoras), a estrutura fundamental: classes graduadas de composição homogénea; professores actuando a título individual (generalistas no primário e especialistas no secundário); espaços estruturados de acção escolar induzindo uma pedagogia centrada na sala de aula; o controlo social do tempo escolar através dos horários; a maioria dos saberes organizados em disciplinas.

Um outro aspecto focado como gerador de fragilidades intrínsecas foi o da ambiguidade conceptual do movimento, em geral, e das escolas analisadas, em particular. A educação nova enunciava um vasto conjunto de princípios orientadores que constituíram um saber pedagógico do qual resultaram novas práticas que se diziam científicas, assim como a difusão de saberes e de saber-fazer em relação à criança e ao acto pedagógico. As principais bases eram a psicologia infantil, o apoio na ciência, a pedagogia do interesse, a educação integral (intelectual, física e moral), a escola activa (participação dos alunos), um novo papel do professor, uma escola na vida (ligação à realidade e simulação de vivências sociais), a actividade manual, o espírito criador, o respeito pela individualidade do aluno, a autodisciplina e a auto-educação.

Todavia, todas estas noções eram pouco precisas e susceptíveis de originarem práticas díspares, se não mesmo contraditórias, algumas das quais necessitaram posteriormente de ser explicitadas, sem que a ambiguidade de que eram portadoras tivesse sido eliminada. O resultado, segundo o autor, teria sido a aplicação das ideias da educação nova em diversos espaços sociais e a sua posterior apropriação por projectos políticos diferentes e mesmo antagónicos, como já António Nóvoa defendeu em várias das suas obras.

É precisamente neste ponto que reside a principal deficiência que se pode apontar a esta tese. Henrique Figueira identifica correctamente os propósitos políticos da maior parte dos intervenientes, que visavam uma formação do cidadão através da educação moral e cívica, baseados na crença maçónica e republicana da transformação do mundo através da escola. Aponta ainda o caldeamento entre educação nova e os ideais libertários na prática identificada da Escola Oficina n.º 1 de Lisboa. Porém, apesar de apresentar alguns registos que o podiam orientar, o autor não refere suficientemente a presença entre os iniciadores e mentores das escolas novas de convictos e abnegados tradicionalistas, cujos fins de formação divergiam acentuadamente dos apontados, embora mantenham pontos de contacto.

O Colégio Liceu Figueirense (1902-1911), por exemplo, era obra da iniciativa do seu director, que Manuel Henrique Figueira aponta como «monárquico e bastante religioso» quando procura explicar a dificuldade de adaptação ao regime republicano (p. 57). Porém, não tira a devida ilação dos factos apresentados — a da existência, desde muito cedo, de uma corrente tradicionalista e católica no seio do próprio movimento em Portugal. Na distribuição dos tempos de ocupação do Liceu Figueirense incluíam-se orações (duas vezes por dia), uma disciplina de Religião e Moral (duas vezes por semana) e missa ao domingo. O Colégio foi encerrado por iniciativa própria em Agosto de 1911, em pleno período de euforia republicana, em que o Estado fiscalizava a laicidade do ensino particular. Embora os seus princípios apontassem no sentido da regeneração em relação a uma sociedade considerada perversa, decerto que o modelo de cidadão que pretendia formar não era o mesmo do defendido pelos maçons e republicanos presentes na maioria das outras iniciativas.

O tratamento deste caso é sintoma do modo como a obra se desenvolve. A forte presença de ideologias legitimadoras e de utopias de regeneração não terá sido destacada em todas as suas vertentes, como, aliás, é prática comum na grande parte das obras de história da educação produzidas no nosso país.

Embora o autor faça referência aos ideais da maior parte dos mentores e os relacione com algumas concepções e práticas da educação nova, não consegue constituir o puzzle entre essa ideias e a pedagogia. E, no entanto, fornece praticamente todas as peças para estabelecer essa ligação. Eventualmente, não o terá conseguido por ser portador de uma perspectiva demasiado centrada nas virtualidades autónomas da pedagogia. Ora, a pedagogia consiste num conjunto de métodos e processos que visam atingir determinados fins. E não podemos confundir esses objectivos, a maioria das vezes dissimulados ou inconscientes, com as fórmulas justificativas e de autolegitimação dos currículos e da propaganda.

Ao pretenderem formar cidadãos com iniciativa, criatividade e capacidade empreendedora, os pedagogos tinham (e têm) sempre subjacentes modelos de sociedade, e de cidadão, ideais que lhes serviam (e servem) de referência. Assim sendo, é muito questionável qualquer alegada autonomia dos métodos e processos educativos. Normalmente eles estão ao serviço de sistemas de crenças (entendidos como o conjunto das ideologias de legitimação e de utopias de regeneração ou de salvação).

Um dos sistemas de crenças presentes na sociedade de então, apesar do combate que lhe foi movido, no início, pelo Estado laico republicano, foi o nacionalismo católico, aliado ou não às várias causas monárquicas. O principal objectivo defendido por esta corrente desde os fins do século xix e, de certa maneira, implícito em toda a sua matriz doutrinal era o da recristianização da sociedade, relacionando o ressurgimento pátrio com a restauração da influência católica. Tratava-se, portanto, de uma causa apresentada com uma dupla feição redentora: nacional e moral/religiosa. Este objectivo implicava a formação de elites dinâmicas imbuídas do mesmo sistema de crenças para levar por diante os seus propósitos.

Do mesmo modo que nas correntes maçónica, republicana e anarquista, também entre os tradicionalistas católicos houve quem compreendesse as limitações dos métodos de ensino vigentes na formação de indivíduos activos e enérgicos. E esses formaram uma tendência dentro do próprio Movimento da Educação Nova, mesmo a nível internacional, que havia de se tornar preponderante nos anos 30 do século xx. Não se trata, portanto, de qualquer tipo de apropriação tardia (como é geralmente sugerido) a adopção e divulgação da educação nova por sectores tradicionalistas, mas sim o resultado da existência de uma pluralidade de influências políticas, tentando usar em proveito próprio um movimento que se manteve propositadamente ambíguo nos seus propósitos.

Em Portugal, a participação desta corrente na educação nova é, nesta obra, detectável desde 1902 no Colégio Liceu Figueirense. Todavia, existem outros casos que merecem algumas associações de ideias.

No Colégio da Boavista, no Porto (1905-1924), são registados o ensino da religião cristã e a missa aos domingos (pp. 82-83), apesar de Henrique Figueira afirmar que o seu fundador, proprietário e director, João Diogo do Carmo, apenas se guiava por razões educativas (p. 224). Uma outra afirmação do autor, em relação às iniciativas deste pedagogo, de que não houve explicitamente um objectivo político a atingir merece o comentário de que os fins implícitos ou dissimulados são, na maioria dos casos, muito mais facilmente atingidos, exactamente pelo facto de serem menos susceptíveis de levantarem obstáculos e objecções externas. E o manifesto anticlericalista republicano justificava plenamente este tipo de actuação.

O mesmo raciocínio pode perfeitamente aplicar-se ao Colégio Moderno de Coimbra (1910-1921). José Joaquim de Oliveira Guimarães, um dos fundadores, director e principal pedagogo do Colégio, era membro do Centro Académico da Democracia Cristã, de Coimbra, desde 1906 (v. a revista Estudos Sociais, órgão do CADC, ano ii, n.os 2, 3, 4 e 10). Durante o Estado Novo seria o inspector do Ensino Particular, com a função de verificar o cumprimento das regras estabelecidas para este tipo de ensino (de sujeição total às directrizes do governo), e um dos obreiros da célebre reforma de Carneiro Pacheco em 1936.

O registo de actividades do Colégio, obtido por informação do próprio Oliveira Guimarães em 1913, não denuncia qualquer actividade ligada à religião e nos propósitos apresentados apenas se afirma que a educação moral é toda tendente a integrar no carácter dos alunos um automatismo psicológico de uma moralidade perfeita. No entanto, em 1913, dizer algo de mais concreto para além disto poderia implicar o fecho do Colégio.

Há outros pormenores que complementam este raciocínio: a participação activa de Manuel Rodrigues, elemento próximo de Salazar, que, em 1926, seria, como ministro da Justiça, o concessor de um estatuto jurídico e o iniciador do processo de devolução dos bens à Igreja, para além da sua constante participação nos governos do período de edificação do Estado Novo (1930-1936); por outro lado, há que destacar a presença na bandeira do Colégio, por trás do escudo nacional, de uma cruz de Cristo, elemento icónico adoptado como símbolo pelo Partido Nacionalista (1903-1910), pelo CADC, pelo Integralismo Lusitano e, mais tarde, pelos nacionais-sindicalistas.

Um último pormenor: por coincidência (ou não), nenhum destes três colégios praticou a coeducação, opção educativa considerada por Manuel Henrique Figueira fulcral para o desenvolvimento dos aspectos relacionais dentro do espírito da educação nova. É conhecido o combate dos católicos contra esta opção no aparelho de Estado a partir de 1926, apesar das justificações aduzidas pelo autor em relação à sua ausência em cada um destes três estabelecimentos de ensino.

A actividade de uma corrente tradicionalista no seio do Movimento da Educação Nova é ainda atestada pelos conflitos que levaram à mudança dos representantes em Portugal da Liga Internacional para a Educação Nova em 1929 — Manuel Subtil, Cruz Filipe e Domingos Evangelista são os principais nomes em saliência. Cai, assim, por terra a ideia de uma dualidade educação nova/progressistas versus tradicionalistas, defendida pelo autor nesta obra e constante nos trabalhos publicados em Portugal sobre o assunto. As pressões e a repressão exercidas sobre algumas figuras da educação nova podem ser compreendidas a partir da noção de que essas figuras eram, real ou supostamente, também activistas políticos que o regime autoritário não podia deixar de reprimir. E não se deve deixar de salientar que o expoente máximo da educação nova em Portugal, Faria de Vasconcelos, colaborou com o Estado Novo, como director do Instituto de Orientação Profissional, até 1939.

De qualquer forma, o presente trabalho é uma obra de referência obrigatória para os estudiosos da educação do período da República, e até do Estado Novo, pela importância que as práticas pedagógicas inovadoras viriam a assumir nos projectos educativos para os liceus e escolas técnicas do salazarismo. Pelo conjunto da informação disponibilizada, pela sua forma inovadora de apresentação, pelas deduções explícitas ou implícitas, pela actualidade do tema, constitui também um instrumento de trabalho imprescindível a quem se debruce sobre os problemas da educação em Portugal.

 

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