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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.175 Lisboa jul. 2005

 

Donizete Rodrigues (org.), Em Nome de Deus. A Religião na Sociedade Contemporânea, Porto, Afrontamento, 2004.

 

Ruy Llera Blanes

 

Em Nome de Deus é o resultado mais recente dos esforços do seu organizador (Donizete Rodrigues, doutorado em Antropologia Social pela Universidade de Oxford e professor associado na Universidade da Beira Interior) na produção e divulgação de estudos sobre o fenómeno religioso nos dias de hoje tanto em Portugal como no estrangeiro. Neste contexto, como o subtítulo sugere, esta colectânea de artigos pretende contribuir para uma maior compreensão do lugar da religião na sociedade contemporânea («pós-moderna», «globalizada»), tanto pela sua importância no desenvolvimento de lógicas de acção sócio-culturais, políticas e económicas como pela diversidade das suas expressões, configurações e contextos.

Assim, esta obra colectiva parte dos seguintes pressupostos: 1.º a realidade contemporânea mostra-nos uma centralidade e transversalidade da «religião» em todos os domínios do social, o que não só traduz a incongruência das teses modernistas secularizadoras, mas nos obriga a olhar o fenómeno da religião com atenção redobrada, porquanto se revela em constante mutação e reconfiguração; 2.º esta «revalorização do religioso» (p. 8) permite ainda ao observador do social repensar as suas estratégias de abordagem, agora em termos de movimentos e inter-conectividades, onde as migrações, a guerra e o terrorismo, as expressões rituais, os media, etc., são impregnados de bens, teorias e símbolos religiosos, e vice-versa.

Neste contexto, o organizador coloca duas questões fundamentais a serem debatidas ao longo da obra: qual o papel da religião no «complexo processo de transformação mundial» (p. 8) e quais as relações entre a chamada «globalização» e a «religião». Para o fazer juntará abordagens diversas de antropólogos, sociólogos, jornalistas e teólogos que procurarão encontrar diálogos e respostas nos distintos âmbitos académicos.

Tendo isto em conta, encontramos nesta obra uma colecção de artigos dividida disfarçadamente em duas secções: uma primeira parte de cariz mais teórico e abstracto e uma segunda de carácter etnográfico e concreto. Na primeira linha, deparamo-nos com a continuação da reflexão do Prof. Raul Iturra acerca dos conceitos de «cultura» e de «religião», delineando as genealogias conceptuais em função dos contextos biográficos dos diversos autores abordados (Max Weber, Marx e Engels, Agostinho de Hipona, Émile Durkheim, Marcel Mauss, Malinowski e Haddon, entre outros), para concluir que «religião» e «cultura» são mutuamente definidas. Fá-lo através de conceitos muito caros à disciplina antropológica: o de «reciprocidade» e o de «solidariedade», conceitos explicativos, segundo o autor, das lógicas de acção e reprodução social. A mesma dimensão reflexiva encontra-se presente no texto conjunto de Peter Beyer e Victor Pereira da Rosa, uma leitura talvez excessivamente sintética acerca das construções teóricas em torno dos conceitos de «religião» e «globalização», que os autores defendem como necessariamente interligados — veja-se o ponto de partida adoptado: o 11 de Setembro de 2001 (p. 35). O terceiro capítulo desta obra é uma contribuição do próprio organizador, que propõe uma leitura dos fenómenos religiosos contemporâneos através da noção de «reencantamento do mundo»: os chamados novos movimentos religiosos obrigam, pela sua dinâmica, heterogeneidade e imprevisibilidade, a repensar as teses secularistas predominantes na academia modernista. Já o sociólogo Steve Fenton propõe, na quarta secção da obra, um debate entre as noções de etnicidade, raça e religião no contexto da modernidade — ou melhor, no contexto de uma «crise» do paradigma da modernidade, onde a utopia de uma democracia igualitária se transforma em fundamentalismo, crise da moralidade e violência.

A partir do capítulo 5 é aberto um conjunto de reflexões acerca da religião oriundas do âmbito teológico. Num texto algo desenquadrado do conjunto da obra, Mário Robalo estabelece uma revisão das propostas doutrinais nascidas da vida e obra de Jesus Cristo, recordando o carácter humanista e ético do cristianismo antigo, enquanto projecto de vida individual e colectiva, sem a hierarquia e institucionalização da «religião» como projecto sócio-político. No entanto, o carácter actual da obra é recuperado no texto do sacerdote católico e teólogo Joaquim Carreira das Neves, que procura reflectir acerca do problema do fundamentalismo religioso e da violência a propósito do conflito israelo-palestiniano. Neste empreendimento, Joaquim Carreira das Neves procura enquadrar, através de um método histórico crítico e comparativo, o «problema religioso» do fundamentalismo no âmbito de estratégias sócio-políticas: neste contexto, o fundamentalismo é mais uma atitude ou estratégia que extravasa o âmbito da crença religiosa para se situar no âmbito da imposição de «verdades» pretensamente universalizantes. A problemática da guerra e o exemplo palestiniano continuam presentes no texto seguinte (cap. 7), de António Marujo, que promove uma reflexão ecuménica (na linha da Declaração de Assis de 2002) acerca do papel das religiões na guerra e na construção da paz a partir do case-study do padre Elias Chacour, promotor de inúmeras iniciativas de diálogo, reflexão e cooperação ecuménica naquela região.

O texto seguinte, de Manuel da Silva e Costa, recupera a temática do «reencantamento do mundo» para analisar o papel da religião na sociedade contemporânea, desta vez num contexto de «desinstitucionalização religiosa», progressivamente substituída por uma «proliferação de religiosidades». Este processo, segundo o autor, não combate a hegemonia contemporânea do «culto da eficácia»: a tecnologização, o lucro, o progresso (ou seja, o capitalismo).

Entramos, finalmente, no conjunto de textos de carácter mais etnográfico — textos que, no fundo, serviriam como pontos de partida para as reflexões de carácter mais abstracto. O primeiro (cap. 9), da autoria de Donizete Rodrigues e Ana Paula Santos, transporta-nos para uma realidade pouco explorada no âmbito científico: o desenvolvimento do movimento pentecostal entre os ciganos portugueses desde os anos 70 do século xx e as transformações subsequentes nas noções de «identidade» e «cultura cigana» no contexto social português, através de uma análise do conteúdo doutrinal da Igreja Evangélica de Filadélfia e dos processos de conversão. O mesmo registo é empregue por Peter Clarke no capítulo seguinte, desta vez acerca da implantação de um movimento milenarista de origem japonesa (a Igreja Messiânica Mundial) no Brasil, através da sua ligação com os movimentos migratórios japoneses para o Brasil e a sua inserção, enquanto NMR (novo movimento religioso) no contexto de pluralidade religiosa neste país. Esta obra acaba com uma revisão histórica e bibliográfica elaborada pela socióloga Cecília Mariz relativamente ao Movimento de Renovação Carismática Católica, mais uma vez no Brasil, numa tentativa de compreender as diferentes tendências discursivas, tanto no seio da própria instituição como da academia, que debatem as causas e efeitos do movimento na tradição eclesiástica em causa.

Em suma, deparamo-nos aqui com um conjunto de textos que ganham valor pela urgência e actualidade dos conteúdos debatidos, assim como pela virtual inexistência de debate académico (antropológico, sociológico) relativo à «religião contemporânea» no contexto português. Esta obra vem, neste sentido, preencher uma lacuna importante. No entanto, pessoalmente lamenta-se aqui algum desequilíbrio em termos de excesso de textos teorizantes em desfavor de conteúdos mais empíricos. Neste contexto, destacamos aqui a contribuição (infelizmente, a única nesta obra) de Donizete Rodrigues e Ana Paula Santos para o estudo do panorama religioso português contemporâneo, reflexo da escassez de projectos de investigação consistentes nesta área. Daí o valor desta obra conjunta. Por outro lado, destaca-se a propositada heterogeneidade disciplinar das propostas e reflexões apresentadas, que ficaria talvez a ganhar com um maior diálogo intertextual, concretização temática e maior explicitação da estrutura da obra, mas que igualmente reflecte o carácter transdisciplinar e socialmente transversal do fenómeno abordado.

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