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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.174 Lisboa abr. 2005

 

Pedro Abrantes, Os Sentidos da Escola. Identidades Juvenis e Dinâmicas de Escolaridade, Oeiras, Celta Editora, 2003, 145 páginas.

 

Relativamente invulgar no actual panorama editorial português, a publicação em livro de uma dissertação de licenciatura não deixa de suscitar, inevitavelmente, curiosidade acrescida. Na verdade, tendo-se protelado no tempo e transmutado para níveis subsequentes do sistema escolar o que se crê dever ser o acto inaugural da investigação científica verdadeiramente autónoma, há muito que o reconhecimento entre pares de cada novo investigador se transferiu para a conclusão do seu trabalho de doutoramento. Homologamente, também o critério de pertinência editorial se fixou claramente nos produtos da investigação pós-graduada. Neste sentido, portanto, está-se perante um trabalho singular, gerador de fundadas expectativas.

Mas a pesquisa levada a cabo por Pedro Abrantes apresenta ainda outra relevância. Trata-se de um trabalho que se inscreve no domínio disciplinar da sociologia e que incide sobre fenómenos educativos. Esclareça-se que a ordem de apresentação não é aqui arbitrária. Identificada uma matriz teórica a que se associa uma perspectiva específica, segue-se a indicação do campo de observação seleccionado pelo autor. Ora esta sequência não deixa de ter consequências. Significa isto que será legítimo esperar, neste trabalho, um exercício de mobilização criativa do saber sociológico disponível para o conhecimento e análise de fenómenos sociais situados no campo educativo — ou seja, um exercício de sociologia da educação. Para uma ciência que, no contexto das chamadas «ciências da educação», é frequentemente identificada como uma interpretação social subordinada, posta ao serviço do primado científico da «educação», esta clarificação está longe de ser irrelevante.

As expectativas são grandes, como se depreende. Procedamos então à análise crítica de Os sentidos da Escola.

Delimitado o objecto e a perspectiva deste estudo — «estudar os processos e fenómenos escolares, partindo da compreensão dos diferentes sentidos que os actores sociais (sobretudo os jovens) atribuem à escola e à sua acção na escola» (p. 5) — o autor apresenta a questão de partida que suscitou esta pesquisa — «de que forma os contextos de origem, as redes de sociabilidade/culturas juvenis e a própria escola interagem de modo a produzirem determinadas identidades juvenis e dinâmicas de escolaridade?» (p. 8). Vislumbra-se, assim, claramente a articulação central deste estudo: a relação entre jovens e escola, ou melhor, entre «identidades juvenis» e «dinâmicas de escolaridade», como o subtítulo do livro sugere.

É justamente pela discussão teórica destes conceitos que o autor inicia o seu estudo. O primeiro capítulo da obra, «Jovens e estudantes — discussões teóricas», dedicado à construção de uma problemática teórica, começa com uma constatação central para a perspectiva de análise adoptada em toda a obra. É ela o hiato que o autor encontra entre dois campos subdisciplinares da sociologia — a sociologia da educação e a sociologia da juventude — no tratamento dos jovens alunos. Como afirma, «as referências, linguagens e descrições são tão divergentes que, por momentos, chega-se a suspeitar que os estudantes dos trabalhos sobre educação e os jovens dos estudos culturais não se tratam dos mesmos actores» (p. 11).

Lançado o mote, Pedro Abrantes procede à justificação desta afirmação, recorrendo a uma análise crítica de algumas das mais consagradas teorias desenvolvidas quer pela sociologia da educação, quer pela sociologia da juventude, mobilizando ainda pesquisas e desenvolvimentos teóricos mais recentes. Daqui resulta uma viagem pela teoria da reprodução, pelos trabalhos da «nova sociologia da educação», pelos estudos associados às «novas desigualdades» — como o género e a etnia — no espaço escolar, pelas teorias relativas ao universo cultural juvenil, concluída pela apresentação de novas tendências e correntes que, sobretudo originadas do lado da sociologia da educação, tentam reflectir articuladamente contextos escolares, condições estudantis e identidades juvenis, abrindo novas pistas para a pesquisa empírica.

No segundo capítulo, o autor tenta explicitar o modelo de análise construído e os caminhos metodológicos percorridos na pesquisa empírica. Inspirando-se no trabalho homólogo de Dubet e Martuccelli (1996), Pedro Abrantes privilegia a «experiência escolar» como contexto de observação adequado ao apuramento das posições e disposições dos jovens face à escola. Nesta pesquisa, posições e disposições são entendidas como resultantes da interacção quotidiana entre os jovens e a escola, o que, se, por um lado, permite circunscrever um núcleo de conceitos centrais, por outro, sugere pistas metodológicas mais adequadas à captação do objecto.

O primeiro conceito nuclear, «identidade juvenil», é definido como «o processo extremamente complexo através do qual os indivíduos se constroem a si próprios […] no decorrer da sua vida quotidiana» (p. 46), passível de assumir múltiplos contornos resultantes dos diversos campos sociais em que, simultaneamente, o indivíduo se move. Afinal, acrescentaríamos nós, recorrendo a Bernard Lahire e ao seu questionamento do carácter homogéneo e unificador do conceito de habitus em Bourdieu, a pluralidade dos contextos sociais e dos repertórios de esquemas de acção, por vezes opostos, contraditórios, que concorrem para a afirmação de indivíduos plurais em sociedades diferenciadas como as modernas. Segundo Abrantes, três contextos são hoje nucleares naquele processo de estruturação das identidades juvenis: o contexto de origem, o universo juvenil e a própria escola.

Quanto às «dinâmicas de escolaridade», elas referem-se aos «fluxos cruzados que se desenvolvem nos estabelecimentos de ensino e que enformam e condicionam o percurso escolar dos jovens» (p. 48).

Para aceder à empiria, o autor optou por uma metodologia de tipo qualitativo, privilegiando a técnica da «pesquisa de terreno» numa escola secundária da periferia de Lisboa inserida num meio suburbano socialmente desfavorecido, a cuja caracterização consagra todo o capítulo seguinte.

Mas é nos quatro capítulos subsequentes que Abrantes apresenta o núcleo central da sua pesquisa.

O primeiro é dedicado ao questionamento das culturas juvenis que se cruzam no espaço escolar e às disposições que manifestam face à escolaridade. Se o traço estruturante que hoje emerge na relação entre os jovens e a escola tem mais de «adesão distanciada» do que de resistência assumida — o que parece configurar uma cultura juvenil autonomizada —, a verdade é que, numa análise mais fina, contemplando a dimensão estrutural (a origem social dos jovens), a dimensão longitudinal (o decurso da escolaridade) e a dimensão interaccional (as sociabilidades na escola), se detectam disposições significativamente mais plurais.

Um forte eixo de diferenciação, no contexto escolar, é o género, ao qual o autor consagra todo o capítulo seguinte. Embora as tendências encontradas nesta escola sejam convergentes com os resultados apurados na já vasta bibliografia recente sobre o tema — a melhor integração das raparigas, contrastando com a distância e o cepticismo com que os seus pares masculinos encaram as propostas escolares —, a consideração das dimensões atrás indicadas permite apurar, também aqui, variações relativas nas disposições que uns e outros apresentam face à escola, com fortes imbricações na construção de identidades de género.

Dimensão fulcral na construção da experiência escolar e dos sentidos atribuídos à escola, a sociabilidade juvenil é também aqui objecto de análise. Embora revelando-se um universo fragmentado, o mundo das trocas afectivas e das amizades não é estanque e permite transacções múltiplas, de acordo com as circunstâncias ou ocasiões. Mesmo os interlocutores podem não se confinar ao mundo juvenil, como o provam os laços de sociabilidade estabelecidos entre professores e alunos para além do espaço da sala de aula. Estas sociabilidades podem ser encaradas como «campos de possibilidade» para a acção e, no que se refere a este estudo, Pedro Abrantes capta a importância de que elas se revestem aquando, nomeadamente, das escolhas escolares ou na construção de projectos de futuro.

O último capítulo de análise de resultados incide sobre a própria escola. A perspectiva dinâmica adoptada neste estudo permite ao autor descobrir um espaço escolar onde, para lá de dimensões de cristalização de práticas refractárias à inovação — como as que se prendem com a «fabricação» segregacionista de turmas, ou com os mecanismos de selectividade na orientação escolar dos alunos —, coexistem igualmente dimensões de inovação potencialmente geradoras, em alguns jovens, de um reencontro positivo com a escola — como seja o envolvimento em clubes de ciência, no centro de recursos/biblioteca ou na animação cultural.

As conclusões finais sublinham as respostas que, através deste estudo, foi possível obter para as questões de partida. Identifico as principais.

Em primeiro lugar, a confirmação de que jovens e escola se constroem mutuamente, o que significa que «os jovens não vão simplesmente à escola: apropriam-se dela, atribuem-lhe sentidos e são influenciados por ela» (p. 120). Conclusão aparentemente óbvia, mas na realidade contrária a alguns dos pressupostos de tipo voluntarista ou ainda a algumas versões reificadas da instituição escolar que suportam ainda hoje alguns dos estudos sobre a escola.

Por outro lado, a constatação de que, ao arrepio do que os estudos clássicos da sociologia da educação revelam, a maioria dos jovens permanece hoje numa «situação indefinida» face à escola, «sendo sensíveis às dinâmicas cruzadas que rodeiam o seu processo de escolaridade» (p. 121). Se essa ambiguidade se expressa na manifestação de graus de envolvimento escolar muito diferenciados consoante as situações, por parte de cada aluno, não há dúvida também de que o tipo de experiências escolares genericamente possibilitadas — nas quais se incluem as interacções com os professores — se revela também decisivo na definição dos sentidos atribuídos pelos jovens à escola e na delimitação dos seus projectos de futuro.

Finalmente, como se depreende do ponto anterior, este estudo sublinha a importância fulcral que as redes de sociabilidade assumem na «estruturação de projectos e trajectos escolares» (p. 127) dos jovens, tanto mais decisivos quanto estes provêm de contextos sociais desfavorecidos.

Mas as conclusões apresentadas por Pedro Abrantes identificam, igualmente, áreas de investigação lacunares na sua pesquisa. Reconhecendo, no final do livro, a importância decisiva que a cultura singular de cada escola assume na delimitação de dinâmicas de escolaridade aí observadas, o autor ensaia um conjunto de propostas para futuras investigações sobre este domínio (p. 131), ou seja, por outras palavras, sobre as dinâmicas de estruturação das «identidades de escola» (p. 131).

A viagem através de Os sentidos da escola faz-nos descobrir um investigador genuinamente investido da imaginação sociológica de que nos fala Wright Mills. A um tempo dotado de um sólido domínio teórico-metodológico e, simultaneamente, de um profundo gosto pelo questionamento social. Se a primeira dimensão permite a Pedro Abrantes mover-se com à-vontade entre os labirintos teóricos e os procedimentos metodológicos necessários à concretização da sempre difícil — mas desafiadora! — tarefa que transporta o investigador, da questão de partida à construção de uma problemática teórica e de um modelo de análise com que afronta a sempre surpreendente empiria, a segunda dimensão acrescenta uma significativa espessura criativa ao trabalho realizado.

Na base desta última dimensão está, afinal, o exercício permanente do princípio fundador desta ciência social (aliás, de toda a ciência): o de não tomar nada como dado. É ele que inspira, neste estudo, o questionamento de todos os passos da investigação — desde os pressupostos teóricos aos resultados das investigações dos autores nacionais e estrangeiros a que recorre, mesmo que «consagrados», passando pela reflexividade crítica acerca dos procedimentos que desenvolve no processo de pesquisa. Exemplifiquemos.

Através do confronto entre teoria e empiria, Pedro Abrantes procede à desmontagem de alguns dos sensos comuns que ainda hoje enformam certos discursos e representações que professores, técnicos e responsáveis educativos produzem sobre a escola e os seus actores. São eles o mito da suposta predominância de «famílias desestruturadas» associadas aos contextos sociais desfavorecidos (p. 58), ou o carácter meramente retórico que assume o discurso recorrente sobre as vantagens da relação entre a escola e as famílias e a comunidade local (pp. 65-66), ou ainda a crença naturalizada acerca do suposto alheamento manifestado pelos alunos das classes desfavorecidas face ao seu trajecto escolar (p. 103).

Mas não é só o saber comum que é aqui sujeito a escrutínio no confronto com a empiria. Algumas teses sociológicas mais ou menos consagradas no domínio da juventude (Machado Pais, Maffesolli) e da escola (Willis, Teixeira Lopes) não são poupadas a um trabalho crítico sustentado, conducente à revelação de limitações e vulnerabilidades explicativas.

Finalmente, os próprios procedimentos metodológicos adoptados são objecto de questionamento fecundo. Os sentidos da escola encerra também uma interessante reflexão sobre os constrangimentos colocados à produção de ciência social pelas relações sociais de observação. Neste caso, questões como a idade do investigador, a sua inexperiência nessa função, a difícil definição do seu estatuto na escola, não são subtilmente escamoteadas como estratégia para não beliscar a autoridade científica do autor, mas, pelo contrário, são postas claramente a nu para sobre elas se produzir reflexão pertinente sobre os processos de produção de ciência sobre o social, na linha do que Madureira Pinto propõe como «epistemologia reformista».

Semelhantes virtudes não isentam esta obra de algumas dimensões mais vulneráveis.

Com efeito, a avisada prudência com que quase constantemente se mune para evitar tentações generalizadoras — reconhecendo os limites locais dos resultados deste e de outros estudos alheios que mobiliza — ou embarcar precipitadamente em conclusões simplistas — fugindo a uma interpretação dicotómica dos resultados a que chega — não só não se aplica em toda a linha ao longo do texto, como nem sempre é suficientemente compensada com disposição homóloga face à tentação contrária — o hiper-relativismo.

Na realidade, momentos há em que Pedro Abrantes abandona a militante prudência questionadora e cede a interpretações já «dadas» do espaço escolar e dos seus protagonistas.

É o caso, precisamente, quando se refere ao novo tipo de trabalho exigido aos professores pelas novas tarefas imputadas actualmente à escola — a gestão e a criação de ofertas educativas inovadoras (p. 109), por exemplo. Quando toma como um dado a exigência do «trabalho em equipas multidisciplinares», classificando-o como «uma necessidade premente» (p. 109) não devidamente praticada pelos próprios docentes, porque envolvidos numa «cultura de trabalho altamente individualizada e rotinizada», o autor deixa escapar uma interessante oportunidade para justamente problematizar essa questão — ainda que o seu estudo não trate como objecto central o professorado. Na realidade, com a transferência, por parte do Estado, para instâncias descentralizadas — como os estabelecimentos de ensino — do trabalho de acordo com os princípios de justificação escolar, a questão que se coloca é justamente, como refere Jean-Louis Derouet (1992), a de como fazer funcionar o sistema a partir de compromissos locais. Ora, na base desta transferência está a assunção do postulado da inequívoca vontade de participação activa e interessada de todos os actores locais — professores incluídos — nas decisões escolares, o que na realidade está longe de se verificar. Um dos constrangimentos do projecto imaginado de modernidade, tal como Peter Wagner (1996) o enuncia, situa-se justamente aqui — a injunção para a participação permanente dos actores, mesmo e quando estes não o desejam fazer. É esta, aliás, a origem das disposições que Pedro Abrantes identifica no caso dos alunos quando fala da sua «adesão distanciada» face à escola. Por que não considerar idênticas possibilidades, pelo menos em algumas circunstâncias, no caso de (alguns) professores?

Por outro lado, momentos há, no texto, em que uma das principais virtudes deste trabalho — o desejo de dar conta da extrema complexidade e pluralidade revelada pelo social — quase se transmuta em hiper-relativismo esterilizador da compreensão dos processos em estudo e, sobretudo, das relações que os vários factores identificados estabelecem entre si. Assim, a constante preocupação em colocar lado a lado tendências fortes, mas também contratendências fracas [a identificação das diferentes disposições de alunos oriundos de distintos contextos sociais face à escola, mas também o seu inverso (pp. 73-74 e 84-85); das diferentes disposições no feminino e no masculino face à escola, mas também o seu inverso (p. 88-89); das bases estruturais das afinidades electivas nas redes de sociabilidade, mas também o seu inverso (p. 100), por exemplo], acaba por resultar, por vezes, em enunciados de plausibilidade quase equivalente, o que confere alguma arbitrariedade — pode ser tudo ou o seu inverso — à compreensão sociológica dos fenómenos.

Não obstante, e em jeito de conclusão, pode afirmar-se que a perspectiva dinâmica e plural adoptada nesta pesquisa sociológica sobre a escola demonstra amplamente todas as potencialidades criativas que este saber pode trazer para o conhecimento enriquecido de fenómenos educativos.

As expectativas iniciais não foram iludidas. Podemos mesmo dizer que foram, em larga medida, excedidas. Sendo um livro sobre a escola e os seus sentidos, pode concluir-se que Pedro Abrantes assumiu, com paixão e dedicação — e com benefícios para toda a comunidade científica! —, o ofício de estudante… de sociologia.

 

Maria Manuel Vieira

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