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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.173 Lisboa  2005

 

Jack Goody: nota bibliográfica

 

Jack Goody é uma figura cimeira da antropologia dos nossos dias. Nascido em Londres em 1919, combateu na segunda guerra mundial, no decurso da qual foi feito prisioneiro no Norte de África, donde foi transferido para campos de internamento de militares na Itália e na Alemanha. Finda esta, formou-se em estudos ingleses, e interessou-se pela arqueologia, antes de se dedicar à antropologia. A sua carreira académica foi marcada por uma trajectória biográfica de convívio com gente de nacionalidades e culturas distintas. Em África teve o primeiro contacto com o Islão e o mundo mediterrânico; em Itália, com os camponeses, que o esconderam durante uma fuga, que veio a falhar, de um dos campos de prisioneiros. Estas experiências, ligadas a uma educação reformista familiar, e em coerência com uma posição ideológica à esquerda e com o ambiente reformador que se seguiu ao conflito em Inglaterra, estiveram na base da sua opção pela antropologia. Tem sido, todavia, um antropólogo muito singular, quer pela atenção conferida às produções da chamada «alta cultura», quer sobretudo pela inserção da história, entendida em termos de estruturas de longa duração, nas suas preocupações analíticas.

Aluno de Evans-Pritchard e Meyer Fortes, veio a suceder a este último como professor de Antropologia em Cambridge, cargo do qual se reformou, continuando a manter uma vida científica activa. A sua obra tem em comum com a de Evans-Pritchard a ênfase na ligação indissociável entre antropologia e história. Aliás, para ele, tanto a sociologia como a antropologia serão ramos da sociologia comparativa - com uma dimensão histórica -, posicionamento que decorreu do conhecimento directo adquirido no contacto com sociólogos influentes, como Talcott Parsons, Edward Shils ou George Homans. A obra de Meyer Fortes terá contribuído para o seu interesse pela dimensão psicológica da vida social e para o relevo que veio a atribuir ao grupo doméstico e ao seu ciclo de desenvolvimento. Para lá dos seus contemporâneos, as obras de Marx, Weber e Freud tiveram um papel destacado na configuração do seu pensamento. De grande importância para a sua perspectiva de interpretação é o contributo do arqueólogo V. Gordon Childe, que vê na Idade do Bronze um momento revolucionário que define a especificidade da Eurásia, com a génese do mundo urbano, das culturas mercantis e da escrita.

Tendo realizado trabalho de campo no Ghana, principalmente em torno do grupo doméstico e das implicações da oralidade e da escrita para a memória e para a cognição, tem produzido um conjunto amplo de sínteses em que está patente de um modo mais ou menos explícito o contraste entre a Eurásia e a África negra. Esse contraste é analisado tendo em conta as diferenças existentes a nível da economia, nível fundamental, dos regimes matrimoniais, da transmissão de propriedade, da estratificação social e cultural, dos sistemas religiosos e políticos. Goody procura discernir as razões que levam, por exemplo, a que na Eurásia se valorize o casamento no âmbito do mesmo grupo social e a monogamia, enquanto em África se assiste à valorização do casamento fora do grupo e da poligenia, ou que na primeira seja comum um determinado tipo de herança (lateral), enquanto a segunda é caracterizada por um outro tipo de herança e sucessão. Estas e outras diferenças, incluindo as que se verificam nos planos da estrutura social - ausêcia de verdadeiras castas ou classes em África - e da cultura -, práticas culturais estratificadas socialmente (Eurásia) e práticas culturais generalizadas a todo o conjunto social (África negra), são relacionadas com os sistemas agrícolas prevalecentes: agricultura mais simples da enxada, em África, agricultura mais complexa do arado, na Eurásia.

Merecem destaque, no que se refere ao seu labor comparativo, as obras que se iniciam com Production and Reproduction: A Comparative Study of the Domestic Domain (1976), a que se seguem The Development of the Family and Marriage in Europe (1983), The Oriental, the Ancienty and the Primitive: Systems of Marriage and the Family in the Pre-Industrial Societies of Eurasia (1990) e uma síntese dos seus estudos sobre a família na Europa, The European Family (2000). A estas obras centradas na família e no parentesco deverão acrescentar-se Cooking, Cuisine and Class: a Study in Comparative Sociology (1982), The Culture of Flowers (1993), Representations and Contradictions: Ambivalence towards Images, Theatre, Fiction, Poetics, Sexuality (1997), bem como os trabalhos que tem dedicado às implicações da presença ou da ausência da escrita para a organização das sociedades em termos de cognição e em termos de poder - The Domestication of the Savage Mind (1977), The Interface between the Written and the Oral (1987) e, mais recentemente, The Power of Written Tradition (2000). Todas estas pesquisas têm como pano de fundo o contraste mencionado entre a Eurásia e os outros - a África negra em particular - diga ele respeito à culinária, ao cultivo das flores, à arte, à economia, à política ou à ciência.

A maior parte dos seus trabalhos mais recentes - The East in the West (1996), Food and Love: a Cultural History of East and West (1998), Capitalism and Modernity (2004) - são dedicados à análise da própria Eurásia. Observa-a na longa duração, procurando mostrar como as diferenças, essencializadas na construção de uma oposição entre o Ocidente e o Oriente, são erróneas. Critica, por isso, todos os que têm acentuado excessivamente a especificidade do Ocidente - matriz da modernidade da racionalidade, do progresso, da secularização, etc. - e a do seu contraponto, o Oriente: atrasado, místico, supersticioso, etc. Em seu entender, para lá das diferenças - nomeadamente as introduzidas pela revolução industrial iniciada em Inglaterra -, existe um percurso feito de afinidades. Percurso em que, se alguns - no Ocidente - tiveram um papel em determinado momento do desenvolvimento económico -, outros - no Oriente, a China, a Índia, o Japão, os novos «tigres asiáticos» -, que no passado já tiveram um lugar cimeiro, aprestam-se a disputar a primazia. Esta preocupação com a afinidade no seio da Eurásia está particularmente presente na obra que dedica às relações entre a Europa e o mundo muçulmano: Islam in Europe (2004). Por mostrar que a presença islâmica é forte e antiga, tanto em termos de migrações humanas como em termos científicos e culturais, que ela é parte constitutiva da história europeia, e que há profundas afinidades entre esses universos, incluindo as que decorrem do peso da religião nas construções identitárias, a obra de Goody revela-se um elemento incontornável de reflexão científica sobre o momento actual.

 

JOSÉ MANUEL  SOBRAL

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