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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.172 Lisboa out. 2004

 

Chamberlain, Kathleen P., Under Sacred Ground: A History of Navajo Oil, 1922-1982, Albuquerque, University of New Mexico Press, 2000.

O primeiro aspecto a salientar neste livro é o carácter enganador do título. De facto, a sacralidade da terra não é de forma alguma o seu centro, mas apenas um ponto referido de passagem nas primeiras páginas. Se é esse o tema que exclusivamente interessa o leitor, será melhor procurá-lo noutras obras — sabendo que com isso corre o risco de perder uma leitura que vale bem o tempo nela gasto.

É, contudo, correcto o subtítulo, «Uma história do petróleo Navajo», embora também pudéssemos dizer, de forma talvez mais exacta, que o livro trata das relações de poder que envolveram e envolvem a exploração petrolífera na reserva Navajo — ou, em termos mais gerais, das limitações e abusos aos direitos indígenas sobre a terra.

Visto a partir desta perspectiva, o tema do livro é passível de interessar quaisquer cientistas sociais que se confrontem com situações em que os direitos e controle dos «indígenas » ou da «população local» sobre a terra e o subsolo se vejam subordinados a interesses mais fortes — sejam esses interesses os de grupos hegemónicos, os do «desenvolvimento » ou os da «nação».

Este é, afinal, um problema muito mais disseminado e contemporâneo do que é habitual supormos, não estando de todo restrito nem a contextos coloniais, «inter-raciais» ou de pós-conquista nem a situações em que a sobrevivência, cultura ou estilo de vida das «populações locais» sejam irrelevantes para os detentores do poder.

A título de exemplo, o governo moçambicano — formalmente, o proprietário último de todo o território nacional — pretendia, há cerca de cinco anos, saber de quanta terra necessitavam os camponeses para viver, por forma a concessionar a «restante» a grandes empresas agrícolas, a fim de aumentar o PIB e desenvolver o país. Recordando referências históricas locais, alguns cientistas sociais moçambicanos temiam o surgimento de entidades com uma autonomia semelhante à das companhias majestáticas durante parte do período colonial; a um estrangeiro, contudo, esses planos governamentais traziam mais à memória as reservas ameríndias.

A legitimação desses planos não se baseava, neste caso, na vitória e conquista em guerras absurdamente antigas e imorais, num auto-atribuído direito enquanto «raça» dominante, numa suposta missão civilizadora ou mesmo na protecção do status quo, mas antes no «desenvolvimento» e no «interesse nacional» — que implicitamente incluíam os próprios camponeses. O abuso sobre direitos e posse de terra consuetudinários e não capitalistas tão-pouco seria sequer efectuado contra pessoas concebidas como «o outro», mas exactamente contra as pessoas que justificam a existência e independência do país. Não obstante, o resultado teria sido a deslocação e confinamento dos «indígenas» (independentemente da sua opinião, desejo e crenças) com base em objectivos «mais altos» e no pressuposto de que os camponeses seriam incapazes de usar a terra «da melhor forma», ou talvez até de entender quão mais altos eram esses objectivos.

No livro de Chamberlain encontramos, assim, a história de um — entre muitos — contexto específico em que o abuso, manipulação e ambiguidade dos direitos indígenas sobre a terra resultaram na imposição dos interesses económicos de empresas e grupos sociais hegemónicos, em retribuições injustas e na sua ruptura social, sem que reais alternativas acabassem por emergir.

Contudo, se a autora lida com um contexto específico de um fenómeno mais alargado, esse contexto é também particularmente eloquente e arquetípico — na medida em que as reservas norte-americanas são, ao mesmo tempo, instituições relativamente antigas e um modelo conceptual e na medida em que o enjeu é, no caso navajo, um signo de modernidade, como o petróleo, e não apenas um qualquer produto subterrâneo valioso. As ocasiões para reflectir e especular acerca de analogias com outros contextos surgem, assim, com bastante frequência durante a leitura do livro.

Gostaria, contudo, de sublinhar fortemente o uso anterior da palavra «história», porque é esse o contexto disciplinar do livro e da démarche que segue e porque é como um livro de história (e não de antropologia, por exemplo) que ele deverá ser entendido e lido.

O texto é, de facto, bastante descritivo e essencialmente baseado em fontes escritas, tanto bibliográficas quanto primárias, correspondendo as últimas sobretudo às actas das instituições tribais criadas pelo Bureau of Indian Affaires (BIA). A este nível, a pesquisa aparenta ter sido muito completa e o seu resultado é bastante impressionante.

Kathleen Chamberlain consegue fornecer-nos uma descrição muito detalhada dos acontecimentos, intimamente combinada com a análise dos interesses e objectivos envolvidos e com as estratégias e idiossincrasias individuais — tanto no concernente aos líderes navajo quanto às autoridades governativas e do BIA. Aquilo a que temos acesso é então uma apresentação geralmente harmoniosa do que aconteceu, dos objectivos que lhe presidiram e dos papéis desempenhados pelas pessoas envolvidas.

Uma das virtudes do livro será exactamente a bem conseguida interacção entre estes três aspectos, a par da vasta informação que nos é fornecida num estilo quase sempre ligeiro, agradável e fácil de ler — o que certamente constituirá um particular motivo de agrado para a maior parte dos leitores que não tenham o inglês por língua materna.

Em resultado disso, tornam-se claros para o leitor:

— Os constrangimentos económicos e ideológicos que conduziram (pelo menos quanto à década de 1920 e durante a crise energética da década de 1970) a concessões de exploração petrolífera quase compulsórias;

— As pressões e manipulações políticas destinadas a garantir a aprovação dessas concessões, incluindo a criação de sistemas representativos navajo, quando nem sequer assembleias tribais alguma vez haviam existido antes;

— A ambiguidade do quadro legal, que chegou a permitir, entre outros casos, que as autoridades jogassem com o receio de que a reserva pudesse ser retirada aos seus habitantes se estes não se comportassem como «índios bons»;

— A interacção entre interesses externos e a oposição interna entre «tradicionalistas» e «progressistas » — ou, seria talvez mais correcto dizê-lo, «pró- -integracionistas»;

— A desigualdade de royalties e rendimentos pagos dentro e fora da reserva Navajo;

— Algumas das tensões internas e rupturas sociais decorrentes da exploração petrolífera e da utilização de royalties.

Contudo, se esta é uma leitura pertinente e enriquecedora para quem se interesse por processos envolvendo os direitos e acesso à terra de «indígenas » e «populações locais», algumas outras características do livro são pelo menos controversas quando o encaramos de uma perspectiva antropológica ou sociológica.

Algumas dessas características parecem decorrer da importância central que foi atribuída às fontes escritas. Suspeito ser essa a razão para a sistemática ausência dos valores, opiniões e acções dos navajo «comuns»— que, conforme a autora implicitamente demonstra, constitui uma efectiva lacuna, e não apenas uma questão de preferência pessoal.

De facto, Chamberlain refere diversas vezes que o conselho tribal apenas representava uma pequena e específica minoria, enquanto uma parte maciça da população navajo não partilhava as suas opiniões e decisões, nem sequer mantinha contactos com ele. Pelo que lemos no livro, isto parece lógico e bastante credível; mas, ao chegarmos à última página, continuamos sem saber quase nada acerca das posições e actos dessas pessoas, sem que pareça plausível que elas se tenham limitado a estar, durante décadas, passivas e queixando-se entre si. Ao compararmos o pouco que deles sabemos com o que ficámos a saber acerca dos líderes navajo e dos políticos e funcionários estadunidenses, o fosso revela-se enorme e não conseguimos evitar a sensação de que alguma coisa importante se perdeu e de que esta pesquisa se centrou bastante mais nas elites económicas e políticas do que aquilo que desejaríamos.

Talvez decorra igualmente desta opção um outro aspecto desconfortável no livro. Os «tradicionalistas» antiprospecção desaparecem das suas páginas logo que, cronologicamente, se vêem afastados das novas instituições representativas navajo criadas pelo BIA. A partir desse momento, as discordâncias internas parecem nunca se centrar na continuidade das concessões petrolíferas, mas apenas no valor e tipo de utilização dos rendimentos por elas originados — o que é, contudo, uma questão importante, dado concentrar em si o confronto entre estratégias de integração e de auto-suficiência. É provável que tal fosse o caso apenas ao nível do conselho tribal; mas os dados apresentados pela autora sugerem que já nos primeiros e mais alargados debates, no início da década de 1920, as oposições à exploração petrolífera tiveram muito mais a ver com a vinda de estranhos e a possibilidade de futuras expoliações de terrenos do que com violações à terra-mãe ou com o valor sagrado e cosmogónico do solo da reserva.

Neste contexto, é bastante surpreendente a importância atribuída a estas últimas questões no capítulo de abertura do livro e, especialmente, o discurso do «bom selvagem» que é nele utilizado. Restar-nos-á, neste caso, tolerar um deslize compreensível em autores de áreas disciplinares em que o evitamento deste tipo de retórica não se tornou uma obrigação profissional «instintiva», acrescentando que, se esse tipo de discurso é passível de irritar um leitor familiarizado com a antropologia, não põe em causa os méritos mais importantes da obra.

Finalmente, suponho que muitos leitores prefeririam que, sem limitar a vasta informação que nos fornece, o livro fosse menos descritivo. Por vezes, de facto, os acontecimentos parecem pedir uma análise mais aprofundada; outras vezes, dados que apenas são referidos de passagem podem deixar a impressão de um filão inexplorado.

Por exemplo, quando nos é dito que «there is no indication that Navajos met as a tribe prior to 1923» (p. 14), podemos legitimamente deduzir — e outros dados corroboram essa ideia — que a agora chamada nação navajo nunca realmente existiu enquanto unidade política até o BIA ter tido necessidade de a reunir como tal, por forma a recolher o seu assentimento à realização de concessões petrolíferas. Se nos lembrarmos de vários contextos coloniais e pós- -coloniais possíveis, podemos sentir- -nos levados a pensar neste facto em termos comparativos; mas podemos igualmente sentir que, por si só, este assunto mereceria um livro, ou pelo menos o seu próprio capítulo.

Contudo, este não é o objectivo ou a perspectiva do livro de Kathleen Chamberlain, nem pretende sê-lo. Sobretudo, podemos francamente dizer que ocasionais frustrações do leitor, originadas por casos como este, se verão, sem dúvida, compensadas pelas novas questões que o livro e a sua impressionante panóplia de dados lhe permitirão levantar.

Paulo Granjo

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