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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.172 Lisboa out. 2004

 

A Europa, o Desafio Demográfico e o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, debate no Centro Cultural de Belém, 18 de Outubro de 2002, publicação do Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu, Lisboa, Maio de 2003.

Esta publicação reúne as comunicações de especialistas e intervenções do público durante o debate «A Europa, o desafio demográfico e o espaço de liberdade, segurança e justiça », realizado no CCB em Outubro de 2002, por iniciativa do Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu, em colaboração com o ICS e o Centro de Estudos Geográficos. O objectivo do encontro é apresentado como procurando oferecer uma visão alargada da problemática da imigração em Portugal, para a qual contou com a participação de políticos, académicos, associações patronais e sindicais, autarquias e ONGs.

As comunicações dividiram-se em quatro sessões temáticas dedicadas a:

1) «Os riscos de declínio demográfico e de envelhecimento das populações europeias e a imigração»;

2) «A regulação dos fluxos migratórios e o espaço de liberdade, segurança e justiça»;

3) «A imigração e as necessidades do mercado de trabalho: indiferenciados e altamente qualificados»;

4) «Imigração, relações internacionais e estratégias de desenvolvimento das áreas de origem ».

A questão global da imigração é apresentada, na sessão de abertura, pelo porta-voz do gabinete europeu — António Sobrinho — como sendo um elemento importante na reflexão e discussão do «futuro da Europa». Neste primeiro momento é sublinhada pelo representante do comissário António Vitorino a necessidade de rever as ideias dominantes sobre a imigração na Europa, nomeadamente a prevalência de uma «imigração humanitária » versus uma «imigração de trabalho». Joaquim Nunes de Almeida explica os resultados dessa discrepância entre as políticas de imigração e as realidades migratórias, que acabam por pressionar os institutos humanitários e abusar dos sistemas de asilo. Daí a ideia promovida pelo Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu de abertura à imigração legal para o mercado de trabalho europeu. As políticas de integração sugeridas devem adaptar-se às realidades locais, uma vez que são tanto mais eficazes quanto mais micro. O Gabinete do Parlamento Europeu propõe, assim, uma política localizada que conte com a participação activa de todos os cidadãos, adaptando às realidades concretas as traves mestras da política de Bruxelas.

Na sessão de abertura teve ainda a palavra o ministro da Administração Interna — António Figueiredo Lopes —, que focou a questão da imigração como factor de desenvolvimento e de benefício tanto da Europa comunitária como dos cidadãos exteriores que imigram para países da Comunidade. O aumento da população imigrante (3,5% da população da CE) compensa o decréscimo demográfico na Europa e absorve os fluxos migratórios pressionados pelas elevadas taxas da natalidade dos países exportadores de mão-de-obra. Face a esta realidade, a política migratória da CE tenta articular a necessidade de gestão dos fluxos migratórios com uma abordagem global dos aspectos económicos, sociais e humanitários dos mesmos, «sem esquecer a luta contra a imigração ilegal ». O resultado desta política em Portugal, segundo o ministro, foi a duplicação do número de estrangeiros em situação legal, mas que ainda não se adaptou ao número real de entradas no país. À data do colóquio (2000), o governo vigente estava a consagrar uma legislação promovendo a imigração legal «em conformidade com as necessidades e possibilidades de acolhimento do país e a efectiva integração dos imigrantes na sociedade portuguesa em igualdade de circunstâncias de direitos e obrigações com os cidadãos portugueses ». Para Figueiredo Lopes, tal regulamentação governamental deve coordenar-se com as políticas europeias de imigração no novo contexto de alargamento da Comunidade a quinze novos países membros.

O fim desta primeira sessão dá lugar a um debate com o público onde se destacam as intervenções de membros de associações como a SOS Racismo, Associação Romena e Povos Amigos, Associação Guineense de Solidariedade Social. Em contraponto às comunicações, estas intervenções da assistência (como, aliás, todas ao longo do debate) sublinham a outra realidade das associações sindicais de imigrantes e autarquias que «não estão a ser ouvidas». Também afirmam que o Ministério e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras «trabalham devagar», fazendo arrastar os processos de legalização. É ainda realçada a não participação dos representantes das comunidades migrantes na mesa do colóquio e a necessidade de estes se tornarem parceiros sociais na reformulação da política de imigração.

O primeiro painel temático sobre riscos de declínio demográfico e de envelhecimento das populações europeias reúne cinco comunicações de especialistas nas áreas da demografia, estatística e acolhimento de refugiados. Nele se analisa em detalhe a tendência demográfica para o envelhecimento da população portuguesa e o contributo da imigração para o crescimento populacional. É também indicada a necessidade de desenvolver políticas familiares e redes de solidariedade, bem como de compreender a complexidade dos fenómenos migratórios nos reequilíbrios territoriais: «Aparecimento de novas áreas de recrutamento, novas motivações de partida, maior diversidade de tempos de permanência nos locais de acolhimento », etc.

A segunda sessão, dedicada ao tema da regulação dos fluxos migratórios, mostra como o crescimento da população extracomunitária residente na UE (mais de 14 milhões de pessoas) tem exigido uma maior regulação dos movimentos e da inserção dos imigrantes. Em Portugal, tal exigência deu origem a regularizações das autorizações de permanência e da igualdade de direitos entre nacionais e estrangeiros (no trabalho, habitação e política). Algumas comunicações apresentam ilustrações dos dramas vividos pelos imigrantes que tentam entrar na Europa ilegalmente. Este lado «vivo» das realidades migratórias permite constatar os contrastes entre as experiências concretas dos imigrantes e as políticas oficiais dos Estados e da União Europeia. Sobre a forma como os europeus vivem e vêem as comunidades imigradas, a comunicação do psicólogo social Jorge Vala sublinha a sustentação generalizada da ideia de diferença entre «eles» e «nós» para os cidadãos da UE pela predominância de representações sociais baseadas numa hierarquia cultural para a qual contribuem os meios de comunicação social. Vala fala de «racismo sem raça», mostrando que «a etnização das minorias, a sua inferiorização cultural, se faz hoje de forma velada, através da simples acentuação das diferenças culturais». A discriminação entre grupos humanos permanece de acordo com novos eixos organizadores das representações sociais. Os imigrantes são vistos como «invasores » que ameaçam uma ordem demográfica estabelecida. Segundo o mesmo autor, a ideia de «vaga» associada às entradas de imigrantes, também representa uma ameaça de contaminação étnica que se confunde com uma ideologia racista tradicional. Na mesma ordem de ideias, a comunicação do sociólogo Fernando Luís Machado indica as situações de continuidade cultural entre grupos distintos via de integração dos imigrantes: «Regular fluxos migratórios no sentido da maior integração dos migrantes significa, portanto, procurar converter contrastes em continuidades [...] e converter contrastes em continuidades significa, basicamente, combater as formas de desigualdade social, muitas delas territorializadas, que atingem diferentes populações migrantes no plano do emprego, da educação ou da habitação.» As dinâmicas de continuidade só podem ser geradas pela «livre interacção entre autóctones e migrantes» e devem ter em conta os efeitos perversos das políticas multiculturais. Promover politicamente a diversidade cultural pode sublinhar as diferenças, reforçando estereótipos e limitando as esferas de pertença dos indivíduos a fronteiras culturais determinadas.

Na sessão dedicada ao tema da imigração e às necessidades do mercado de trabalho são de destacar as informações sobre a atracção de imigrantes qualificados e a expansão dos espaços (territoriais e de actividades) de imigração. Estas novas realidades, segundo os especialistas, suscitam um outro tipo de políticas de imigração centradas na selecção das entradas de imigrantes com base nas qualificações dos mesmos. Estas são apontadas como medidas de criação de igualdade de oportunidades para os cidadãos estrangeiros qualificados. Quanto aos não qualificados, são sugeridas políticas de emprego e formação técnico-profissional no sentido de elevar as suas qualificações no país de acolhimento e de melhorar a qualidade do trabalho. No debate final desta mesa é de salientar o comentário do embaixador de Cabo Verde em Portugal, que remete para a origem histórica do seu país a fim de relembrar a necessidade de pensar nas causas dos imigrantes cabo- -verdianos como sendo causas portuguesas. O pedido de responsabilidade do embaixador pretende sublinhar a complexidade das implicações da questão da integração dos imigrantes vindos de Cabo Verde. Resta saber se também se pode falar (e como?) de uma responsabilidade de futuro em relação a outras comunidades migrantes não oriundas de países colonizados pelos portugueses.

A quarta mesa sobre relações internacionais e estratégias de desenvolvimento das áreas de origem foca a articulação da questão das migrações com as estratégias de desenvolvimento dos países de origem. Às contribuições de especialistas nas áreas da geografia humana e planeamento regional juntam-se os testemunhos de autarcas sobre experiências concretas de relações entre locais de origem e zonas de residência dos imigrantes. O desenvolvimento de parcerias entre cidades e o incremento de programas de cooperação descentralizada são exemplos dessa articulação. Os municípios e as comunidades transnacionais manifestam serem mais eficazes na promoção do desenvolvimento nas áreas de origem e de acolhimento dos imigrantes do que organismos estatais centralizados. As associações de imigrantes podem desempenhar um papel fundamental nessa área, mas têm, em Portugal, uma actividade ainda limitada.

Por fim, na sessão de encerramento, o secretário de Estado dos Assuntos Europeus teve a palavra, frisando a necessidade de a União Europeia receber «sangue novo» e desenvolver novas políticas comunitárias de imigração. As políticas a fomentar devem orientar-se no sentido de criarem um sentimento de «cidadania europeia», onde todos os cidadãos, sem excepção, se sintam num espaço de liberdade, segurança e justiça.

No conjunto, o debate sugere uma oscilação entre um optimismo dos representantes políticos e o realismo desencantado dos associativistas ou pessoas próximas da realidade dos imigrantes. As contribuições dos diversos especialistas esclarecem a complexidade dos assuntos em causa, ilustrando novas pistas de compreensão e de acção sobre as questões da imigração na Europa e em Portugal.

Elsa Lechner

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