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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.172 Lisboa out. 2004

 

José Rebelo (coord.), Novas Formas de Mobilização Popular, Porto, Campo das Letras, 2003, 298 páginas.

 

A presente obra reúne as comunicações ao colóquio internacional «Novas formas de mobilização popular », realizado no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa em Outubro de 2001, aprofundadas e reorganizadas tematicamente para publicação. Os mais de vinte textos são assinados por autores nacionais e estrangeiros, na sua maioria cientistas sociais, mas entre os quais também podem ser encontrados uma jornalista, um juiz e um investigador da área da genética.

O tema agregador destes artigos é a reflexão sobre os novos modos de participação pública, alternativos ao modelo convencional de representação e distintos dos movimentos sociais tradicionais, fundados nas diferenças de classe1. O coordenador optou pela organização dos textos, de natureza bastante diversa, em quatro grandes áreas temáticas.

Sob o título «Novas legitimidades » encontram-se quatro artigos essencialmente teóricos. M. Wieviorka analisa as lutas antiglobalização, explorando as suas lógicas internas de exclusão, alienação e individualização. Isolando três dimensões fundamentais destes movimentos (crítica, investigativa e identitária), o autor identifica os respectivos riscos: «o ascendente do esquerdismo conjugado com o pensamento hipercrítico» (p. 31), a criação de elites de contraperitagem e o fechamento identitário (que conduz à radicalização e à violência). São de destacar sobretudo os alertas lançados à investigação científica neste domínio: «não é aceitável fazer da globalização o deus ex machina da análise sociológica» (p. 20) e «não é possível compreender as lutas antiglobalização a partir da globalização a que elas se opõem [...]: não se explica a acção colectiva através daquilo a que ela se pretende opor» (p. 21). M. Carvalho da Silva aborda igualmente a questão da globalização para salientar a ameaça aos direitos sociais que ela representa e reivindicar a centralidade do trabalho nos processos de desenvolvimento e transformação da sociedade, como base para as propostas sindicais adaptadas à contemporaneidade.

Numa perspectiva mais localizada, M. Sodré destaca o caso dos grupos sociais brasileiros económica e socialmente desfavorecidos, em geral excluídos da esfera pública, que se socorrem de recursos simbólicos e culturais (as comunidades litúrgicas e os agrupamentos musicais, no caso dos afro-descendentes, o artesanato, no caso das populações indígenas) para adquirirem visibilidade e melhorarem as suas condições de existência.

Por último, o artigo de V. Matias Ferreira centra-se na cidade como palco privilegiado do exercício da cidadania, visto que «a cidade condensa e polariza, através de um esquema de representação social e política, a estrutura social e o sistema político da respectiva sociedade» (p. 60). O autor detecta um «’vazio’ das formas de manifestação (do) social e nos mecanismos da regulação (da) política» (p. 55), efeito ainda das décadas de autoritarismo político, que se materializa no eufemismo da «participação social». Sob este rótulo (usado, por exemplo, na consulta pública em planos de urbanização) esconde-se um simulacro de intervenção política, em que os cidadãos são figurantes, um somatório de comportamentos individuais sem relação entre si, um processo homogeneizante, social e economicamente discriminante.

O segundo agrupamento de artigos intitula-se «Novos dispositivos e novas práticas de comunicação», dizendo respeito aos veículos comunicacionais mobilizados por estas novas formas de protesto público. Entre estes veículos assumem particular destaque as novas tecnologias de informação e os mass media. R. Paiva convoca, uma vez mais, o caso brasileiro para demonstrar como grupos excluídos fazem uso dos media para atingirem os seus objectivos. A autora traça uma distinção pertinente entre os movimentos ou partidos que usam os media e os movimentos ou partidos mediáticos, caracterizados pela «adopção de uma postura mediática em que estética, espectáculo, telepresença e imprevisibilidade se impõem» (p. 69). No mesmo sentido, D. Andringa socorre-se de dois casos exemplares recentes de intensa mobilização dos canais televisivos (o indivíduo que se barricou nas instalações da RTP; a mobilização por Timor Leste) para distinguir a atenção mediática de cariz espectacular e emocional (centrada na esfera privada) do comprometimento cívico dos media (centrado na esfera pública).

O artigo de D. Miranda consiste num breve ensaio sobre o conceito de rede na teoria social, estruturado em cinco questões epistemológicas. M. Diani examina a influência da «comunicação mediada por computador » nos movimentos sociais. Ainda que este meio tenha associado um conjunto de vantagens genéricas, o seu impacto é fortemente condicionado pela heterogeneidade dos movimentos: diferentes tipos de organização e diferentes populações terão uma capacidade diferencial para usufruírem destes benefícios. Também a natureza ambígua deste tipo de comunicação, na fronteira entre o público e o privado, o directo e o mediado, acarreta não só mais-valias, mas igualmente constrangimentos. O autor conclui que, se a comunicação mediada por computador é eficaz na mobilização de esforços em movimentos já existentes, está por aferir a sua real capacidade para gerar «novos movimentos sociais comunitários virtuais» (p. 96).

Os dois restantes artigos neste conjunto abordam o mesmo movimento social: a mobilização da população portuguesa em torno da causa da autodeterminação de Timor Leste. Porém, se o texto de J. Coutinho Ferreira e P. Dionísio se limita a descrever esquematicamente o contexto, o processo de mobilização e o desfecho do caso, o artigo de G. Cardoso e P. Pereira Neto explora em maior detalhe o papel das novas tecnologias de informação e comunicação, nomeadamente os mass media e os «novos media» na emergência, organização e desenvolvimento do movimento. O argumento central defendido pelos autores é que o sucesso dos movimentos está estreitamente ligado à sua capacidade de seduzir os media tradicionais e instrumentalizar os novos media. Contudo, também os próprios movimentos sociais podem ser transformados pelas novas tecnologias.

O terceiro bloco temático das comunicações designa-se «Novas configurações jurídico-políticas» e localiza-se essencialmente na esfera do direito. P. Bacelar Vasconcelos traça uma súmula histórica das relações entre mobilização popular e democracia representativa, culminando no estado actual de tensão entre o que o autor define como «a impotência reformista do poder político» e a «perversão da opinião pública». A. Cluny explora a relação entre os novos direitos proporcionados pelo Estado social e a real possibilidade de acesso dos cidadãos ao direito e ao sistema judicial, objecto de reivindicação por parte dos movimentos emancipadores.

Retomando a questão da globalização, abordada nos artigos acima mencionados, J. P. Dubois analisa-a do ponto de vista da ameaça aos direitos sociais, económicos e culturais, do enfraquecimento do Estado e das transformações induzidas pelos fluxos migratórios, mas também da mundialização dos direitos fundamentais. O autor comenta ainda as «novas caras» da cidadania no mundo actual sob a perspectiva social e territorial.

O tema das novas tecnologias da informação e comunicação ressurge no texto de M. E. Gonçalves, que examina a tensão existente entre os direitos de liberdade e de propriedade na «era da Internet». Neste domínio, o direito ao acesso à informação (essencial em questões como o ambiente ou o consumo) tende a colidir com a valorização económica e social da informação e com a protecção legal conferida à propriedade intelectual (programas de computador, bases de dados, ficheiros disseminados através da Internet). A própria legislação comunitária vai no sentido de valorizar «mais a informação como mercadoria [...] do que como bem público ou benefício colectivo» (p. 167), quando «num mundo em rede o direito de acesso à informação passa a ser uma condição fundamental da liberdade individual» (p. 168). O texto de A. P. Dores consiste na apresentação de um projecto de investigação em curso relativo à reclusão de cidadãos estrangeiros em prisões portuguesas. É aflorado o impacto da globalização no sistema e instituição prisionais e são elencadas as dimensões analíticas que constroem a especificidade da situação das prisões portuguesas.

O último conjunto temático de artigos é denominado «Novos projectos, novos objectos» e diz respeito às formas de mobilização pública nos domínios da ciência, do ambiente e da cultura. J. Arriscado Nunes destaca o risco como uma arena em que «as formas tradicionais da regulação e do exercício do poder político têm-se revelado inadequadas ou insuficientespara lidar com os novos imperativos de decisão e de acção em situações de incerteza» (p. 191). Visto que tanto os benefícios como as consequências negativas das dinâmicas científicas e tecnológicas são desigualmente distribuídos, tendem a emergir novas formas de intervenção, de debate e de protesto, salientando-se, a título de exemplo, os movimentos de justiça ambiental 2. Estas formas de mobilização popular produzem novas configurações de saberes e de experiências (redefinição de fronteiras entre peritos e leigos) e a constituição de novas identidades e novos colectivos. O autor propõe, por fim, um elenco de variáveis para aferir a comparabilidade das várias experiências participativas.

O artigo de V. Soromenho Marques esboça uma breve história do associativismo ambiental, ligando-a aos constrangimentos à participação cívica em Portugal. No entanto, o autor conclui que «a intervenção cívica dos ambientalistas portugueses tem contribuído mais ou menos modestamente para dinamizar a consciência dos cidadãos, o desempenho das instituições e o rigor e a eficácia do direito» (p. 206). J. Gil Nave aborda as formas menos institucionalizadas de intervenção popular no domínio ambiental, nomeadamente os movimentos nimby (not in my backyard): «formas de mobilização e de protesto popular em defesa do status quo ambiental do quadro de vida local, em reacção contra iniciativas externas, nomeadamente com origem nas estruturas administrativas do Estado central» (p. 209). Com base nos resultados do 2.º inquérito nacional Os Portugueses e o Ambiente (Observa, 2000), o efeito nimby é confrontado com as variáveis de caracterização social, de cultura ambiental e participação cívica e de percepção social do risco para se concluir pela «omnipresença das raízes do efeito nimby» (p. 233).

A. F. Cascais explora o tema da bioética, expondo a história da sua emergência como disciplina científica, o papel assumido pelos movimentos sociais (sobretudo feministas e homossexuais) no seu desenvolvimento e a sua pertinência face ao estado actual da ciência e tecnologia. Perante os perigos colocados pela dominância da racionalidade técnico- -científica, a bioética apresenta um património de reflexão e de investigação, de instrumentos de regulação e de práticas de avaliação das comunidades e actividades científicas que será determinante mobilizar de forma a garantir o controlo da sociedade sobre a tecnociência. No mesmo sentido, C. Monteiro, no texto seguinte, alerta para os problemas suscitados pelo papel dominante das empresas privadas nos recentes desenvolvimentos na área da genética humana. A aplicação de patentes sobre inovações nas técnicas de diagnóstico, por motivos comerciais, constituirá uma infracção ao direito das populações à saúde.

Os dois últimos textos desta publicação dizem respeito à esfera da cultura. C. Lopes apresenta um texto essencialmente teórico em torno da análise da festa (como nova/velha forma de mobilização popular) a partir do conceito de ludicidade. I. Conde reflecte sobre a arte contemporânea em Portugal em função dos vectores do espaço (globalização/localização), do tempo (velocidades contemporâneas vs. nostalgias do passado), das políticas (financiamento e regulação por parte do Estado) e dos direitos (dos artistas e do público).

Num país em que a tradição e as taxas de participação cívica são escassas 3 e em que o aparelho burocrático- administrativo, «centralizado, hierarquizado e secretista» 4, está pouco rotinizado na auscultação das populações no processo de tomada de decisão, a análise das novas formas de mobilização pública assume um especial relevo. A presente obra tem o mérito indiscutível de abordar um tema actual e pertinente, que carece de reflexão e estudo, apresentando as múltiplas questões, metodologias e mesmo disciplinas científicas através das quais pode ser investigado. No entanto, representa apenas uma amostra destes novos movimentos sociais, ficando muitos outros por abordar (nos domínios da saúde, da segurança rodoviária, da educação, do desenvolvimento local, etc.). A maior fragilidade desta obra reside na qualidade desigual dos artigos, alguns dos quais só remotamente relacionados com o tema central ou escassamente sustentados em investigação empírica sólida.

Ana Delicado

 

1 V., a título de exemplo, entre a abundante literatura desta área: A. Touraine (1993), La voix et le regard, sociologie des mouvements sociaux, Paris, Seuil, e obras posteriores do mesmo autor; D. Lapeyronnie (1988), «Mouvements sociaux et action politique, in Revue française de sociologie, XXIX, pp. 593-619; L. Maheu (1995), Social Movements and Social Class — the Future of Collective Action, Londres, Sage; S. M. Lyman (ed.) (1995), Social Movements: Critiques, Concepts, Case-Studies, Londres, Macmillan; Elísio Estanque (1999), «Acção colectiva, comunidade e movimentos sociais — para um estudo dos movimentos de protesto público», in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 55, pp. 85-112.

2 Um dos casos que têm sido abundantemente estudados é o da co-incineração de resíduos perigosos [v., a título de exemplo, M. E. Gonçalves (2003), «Imagens públicas da ciência e confiança nas instituições: o caso de Foz Coa e da co-incineração», in Os Portugueses e a Ciência, Lisboa, D. Quixote, e João Arriscado Nunes e Marisa Matias (2003), «Controvérsia científica e conflitos ambientais em Portugal: o caso da co-incineração de resíduos industriais perigosos», in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 65].

3 V., por exemplo, M. V. Cabral (2000), «O exercício da cidadania política em Portugal », in M. V. Cabral, J. Vala e J. Freire, Atitudes Sociais dos Portugueses, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, pp. 123-162, e André Freire (2003), «Pós-materialismo e comportamentos políticos: o caso português em perspectiva comparativa», in Jorge Vala, M. V. Cabral e Alice Ramos, Valores Sociais: Mudanças e Contrastes em Portugal e na Europa, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, p. 325.

4 Maria Eduarda Gonçalves (2002), «Implementation of EIA directives in Portugal: how changes in civic culture are challenging political and administrative practice», in Environmental Impact Assessment Review, n.º 22, p. 250.

 

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