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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.172 Lisboa out. 2004

 

Jason Kaufman, For the Common Good? American Civic Life and the Golden Age of Fraternity, Oxford, Oxford University Press, 2002.

 

Desde o périplo de Alexis de Tocqueville na década de 1830 que os Estados Unidos da América ficaram conhecidos como a pátria do associativismo e do voluntariado, a pátria da «arte da associação». O período de maior expansão associativa, contudo, estava ainda para chegar. As décadas entre 1860 e 1940 assistiram a um crescimento tão elevado do número de associações voluntárias que contemporâneos e historiadores passaram a referir-se-lhes como a golden age of fraternity. O objectivo de Jason Kaufman é descobrir o que originou esse período particular.

Condições e características históricas dos EUA tornavam este país um solo fértil para o desenvolvimento do associativismo. A ausência de um passado feudal, em particular a inexistência de ordens e corporações pré-modernas, tornava a agregação e formulação de interesses mais livre. A descentralização política e administrativa e a competição entre os diversos estados federais favoreciam o desenvolvimento de organizações a todos os níveis da organização política do território, do condado ao governo federal. A total liberdade de associação, que desde a independência singularizava os EUA no mundo, reduzia os custos individuais da participação associativa e, ao contrário do que se passava na Europa, onde se concebia a liberdade de associação como uma fonte de revolução, a associação voluntária quase não tinha entraves legais à sua expansão como forma organizativa. A estrutura da religião tornava também este país único. A inexistência de uma religião de Estado, a competição entre as diversas denominações protestantes e o desenvolvimento de novas seitas evangélicas a partir da década de 1830, tornavam o mercado dos fiéis tão fluido e inconstante que todo o autoproclamado pastor logo fundava uma associação para mobilizar os potenciais seguidores. Por último, o facto de o associativismo ser anterior ao estabelecimento de um Estado central forte tornava-o mais difícil de controlar e reprimir.

Estes factores não eram, no entanto, suficientes para desencadear o elevado crescimento de associações de finais do século XIX e inícios do século XX. Segundo Kaufman, a chave para este fenómeno reside na interacção entre dois processos sociais: as consequências da guerra civil e a imigração. Após a guerra civil americana, os custos dos seguros de doença e de poupança para funerais tornaram-se tão elevados que apenas uma pequena parte da população poderia suportá-los. Um estratagema para os tornar mais baratos foi utilizar as associações voluntárias, como as ordens fraternais (fraternal orders), responsáveis pela gestão desses serviços. Como beneficiavam de uma carga fiscal muito baixa, o que lhes permitia reduzir os custos da actividade seguradora e, por consequência, fazer preços mais baixos, as associações voluntárias tornaram- se a organização privilegiada para este tipo de actividades. À medida que as associações assumiam esta função, estabeleceu-se também uma necessidade crescente de novos membros, de forma a adquirir os fundos monetários suficientes para financiar os seguros dos membros mais antigos, o que desencadeou um processo de competição entre associações. Este processo acabaria por se tornar tão esmagador que qualquer associação, independentemente do seu tipo, se tornava uma companhia de seguros.

O aumento da imigração para os EUA originaria também o aparecimento de associações de teor étnico e religioso. Grupos até então minoritários nos EUA, como os italianos, polacos ou irlandeses, maioritariamente católicos, ou os judeus oriundos da Europa central e oriental, eram organizados em associações por «empresários» associativos da mesma comunidade étnica mas há mais tempo estabelecidos nos EUA. Por sua vez, sectores da população de origem anglo-saxónica e protestante desencadeiam um movimento de contramobilização associativa para conterem o que denominavam de invasão estrangeira. Mais ainda, esta competição associativa organizava- se também em redor de linhas de clivagem entre os recém-chegados. Exemplos foram a competição entre italianos e irlandeses pelo controlo de determinados bairros das grandes cidades norte-americanas ou a rivalidade, neste caso no interior de uma mesma comunidade étnica, entre irlandeses católicos e protestantes. Todas estas lutas se organizaram através da associação voluntária, num processo que Kaufman designa de voluntariado competitivo: o número de associações numa sociedade tende a aumentar quanto maior for a sua competição por membros, dinheiro, legitimidade e poder. De acordo com esta teoria, o declínio do número de associações após a década de 1940 dá-se por causa da queda da imigração e da erosão das identidades étnicas em favor de uma identidade nacional, americana (a primeira guerra mundial é aqui o momento crucial, onde instituições como o exército serviram para atenuar e até dissolver diferenças étnicas e religiosas), e com a emergência de organizações rivais, sobretudo a partir da década de 1920, que também providenciavam seguros, como empresas e companhias de seguros comerciais.

O que à época se passava na Europa era muito diferente. As associações mutualistas da Alemanha, da França ou do Reino Unido possuíam um tipo de membros bastante diferente, baseado em linhas de classe, e não em clivagens etno-religiosas, tinham evoluído a partir dos sistemas pré-modernos das corporações ocupacionais e eram fortemente reguladas pelo Estado. Em França estavam associadas a partidos políticos; na Alemanha, além de enfrentarem desde 1870 um contexto legal autoritário, o seu papel era diminuto, já que desde o século XVIII que o Estado providenciava os serviços de assistência social (os trabalhadores alemães eram compelidos a inscreverem-se em fundos públicos de doença e segurança pessoal); na Grã-Bretanha, o país europeu que maiores semelhanças tinha com o modelo americano, os seguros eram partilhados por bancos, sindicatos, cooperativas e alguns programas públicos.

Na literatura sobre associativismo e sociedade civil, este livro aponta não só novas luzes sobre o associativismo americano, mas tem também uma relevância teórica mais geral. Em primeiro lugar, porque concebe a associação voluntária como uma forma de organização que está em competição com outras organizações, como as empresas e o Estado, por membros, recursos e influência social e política. Neste sentido, vem na esteira de estudos, como os de Charles Tilly ou de Sidney Tarrow sobre a França ou a Itália, que colocam a associação voluntária a par de redes de sociabilidade, como as comunidades locais, a Igreja e a família. A associação voluntária não é, assim, vista como a forma de organização por excelência das sociedades nem são os seres humanos criaturas imbuídas de um especial espírito de associação. A relevância social da associação voluntária depende antes de circunstâncias e legados históricos e as funções que desempenha num contexto são desempenhadas noutros locais por organizações diversas. Em segundo lugar, porque esta perspectiva permite lançar novas hipóteses sobre os processos de desenvolvimento político e suas variações em questões, por exemplo, como os tipos de Estado ou a força do movimento operário. Sobre a concepção de um Estado americano pequeno e sem exército permanente, Kaufman defende o argumento de que a ideia de que é o povo que deve ter o direito a possuir armas, e não o Estado, nasceu neste período, e não durante a guerra da independência, remontando aos planos dos governadores de certos estados para organizarem milícias estaduais e exércitos privados (também eles fundados sobre o modelo da ordem fraternal) e aos conflitos entre trabalhadores e patrões, onde uma interpretação da Segunda Emenda da Constituição dos EUA permitia aos patrões organizarem milícias. Com o passar do tempo, as milícias estaduais tenderam a desaparecer e a ser substituídas por milícias privadas: de início, uma reacção WASP a outras etnias; depois, um fenómeno que se alargou a quase todos os grupos étnicos. A mais conhecida destas associações seria a National Riffle Association, que no início do século XX organizava clubes nos liceus do país.

O fracasso do movimento operário nos EUA, quer em termos do número de filiados, quer em termos de influência política, é também explicado pela dinâmica associativa. Na década de 1880, o principal sindicato da América do Norte, os Knights of Labor, era tão poderoso como qualquer sindicato europeu. Nos anos seguintes, contudo, sofreria uma inescapável decadência. Não só porque os patrões americanos empregaram milícias estaduais para reprimirem o movimento operário, mas também porque o facto de os Knights of Labor se terem estruturado no modelo da ordem fraternal fez com que fossem mais vulneráveis à competição por parte das associações voluntárias.

Por último, o principal contributo deste livro está na forma como se distancia de muita literatura contemporânea celebratória dos supostos benefícios do associativismo. Para Kaufman, o associativismo em si próprio não é bom nem mau. Esta não é uma questão a ser resolvida no campo abstracto dos valores e da teoria, mas deve ancorar-se numa rigorosa investigação histórica. Aliás, no caso particular da golden age of fraternity, as suas consequências foram sobretudo negativas. Durante este período, as associações voluntárias funcionaram como organizações de controlo social de «empresários» associativos ambiciosos, indivíduos cujo interesse era estimularem o desenvolvimento de uma determinada identidade étnica ou religiosa de forma a manterem um grupo coeso e rapidamente mobilizável para eleições e outras iniciativas políticas. Mas os efeitos mais nefastos do «voluntariado competitivo» foram as inumeráveis divisões que deixou na sociedade americana. Como as práticas de recrutamento das associações tendiam apenas a trazer membros que partilhavam preferências, origens sociais e redes de sociabilidade daqueles que já eram membros, a participação cívica tendia a reforçar as semelhanças entre indivíduos e a fortalecer sentimentos de exclusão e preconceito face a outros grupos. Ao contrário de Robert Putnam e da teoria do capital social, que vêem o desenvolvimento de associações baseado na expansão de atitudes como a confiança interpessoal, neste período da história americana aconteceu o contrário: quanto mais racismo, desconfiança, hostilidade ao próximo e «amor às armas», mais associações apareciam. O argumento teórico subjacente é que o pluralismo e a profusão de associações têm mais efeitos negativos do que positivos e aproxima-se, assim, das teorias do neocorporativismo, que defendem que, na Europa ocidental, os países onde se deu uma centralização e monopólio sindicais foram aqueles que mais desenvolveram o Estado-providência e sociedades mais igualitárias. Kaufman, na verdade, salienta também como o associativismo contribuiu para evitar o aparecimento de um Estado-providência nos EUA, sobretudo porque quaisquer políticas de redistribuição efectuadas pelo governo encontravam uma resistência muito forte, pois isso implicava sempre a possibilidade de se estar a financiar um grupo inimigo.

A principal inconsistência deste livro é a introdução de causas exteriores ao modelo inicial do «voluntariado competitivo» para fazer luz sobre factos aparentemente contraditórios. As associações são por vezes vistas como locais de oportunidade para efectuar contactos úteis a negócios futuros (sobretudo os grupos de interesses) e, nesse sentido, pode dizer- se que desempenham um função sobretudo económica. Quando o autor refere que as instituições herdadas do passado colonial influenciaram a forma de organizar associações nos EUA, é difícil não perguntar se as causas do associativismo da golden age não são mais remotas e se o tipo de império colonial é uma variável que devia ter sido analisada com mais cuidado, o que implicaria eventualmente uma outra estratégia de comparação (por exemplo, com países da América Latina e outras colónias anglo-saxónicas, como o Canadá ou a Austrália, e não com países europeus). Kaufman refere também por vezes a importância de factores políticos, como, por exemplo, no caso dos clubes de elite (clubes republicanos e democratas), associações que não obedeciam à lógica da ordem fraternal e que foram criadas com objectivos puramente eleitorais. No final ficamos com a impressão de que a explicação da emergência de tipos diferentes de associações requer diferentes teorias e não é subsumível num esquema conceptual único.

Tiago Fernandes

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