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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.172 Lisboa Oct. 2004

 

Conceição A. Martins e Nuno G. Monteiro (orgs.), A Agricultura: Dicionário das Ocupações, vol. 3 de Nuno Luís Madureira (coord.), História do Trabalho e das Ocupações, Oeiras, Celta Editora, 2002, 421 páginas.

 

Não é fácil recensear um dicionário, que, por definição, não tem um argumento, não desenrola uma narrativa, não discute uma tese. Podemos começar por dizer, com toda a verdade e justiça, que está muito bem feito, é de grande utilidade e será certamente uma obra de referência indispensável para o estudo da história das ocupações agrícolas e da agricultura em geral.

Este dicionário descreve um amplo acervo vocabular estruturado em três capítulos, segundo os principais vectores das relações de produção: a posse da terra («Proprietários, lavradores, rendeiros», com 29 entradas); o trabalho agrícola nas suas variadas especializações técnicas («Trabalhadores », com 61 entradas); com 44 entradas, os «Outros», a variedade de ocupações não directamente agrícolas, mas imbricadas nas relações sociais e na cadeia de valor da agricultura, seja no fabrico e na manutenção dos meios de produção (e. g., albardeiro, carpinteiro, ferrador), noutras esferas de produção relacionadas (e. g., caçador, carvoeiro, lagareiro), na prestação de serviços (e. g., agrónomo, alugador de máquinas, veterinário), nas trocas e na circulação do produto agrícola (e. g., açougueiro, almocreve, negociante), ou ainda na administração e no controle da ordem agrária (e. g., couteiro, guarda, partidor, recebedor). Ao todo, são 334 entradas principais, dando conta de perto de um milhar de variantes, debulhadas de um diversificado conjunto de fontes de informação que vão dos forais à literatura neo-realista, passando pelas fontes paroquiais, fiscais e estatísticas, pela bibliografia etnográfica e historiográfica e, claro, pelos principais dicionários de referência. Um quarto capítulo é dedicado à análise etimológica dos nomes de ocupações, indicando desde quando se encontram documentalmente atestados.

Os verbetes oscilam desde algumas linhas com definições concisas até pequenos ensaios de síntese com várias páginas, incluindo pontos de situação historiográfica sobre o tópico descrito. E, deste ponto de vista, as questões relativas à propriedade e à posse da terra mereceram um tratamento bastante favorecido: as entradas deste capítulo contam, em média, mais de 4 páginas, ao passo que as dos outros dois capítulos rondam apenas metade dessa extensão. Além desta diferença, indiciam-se também variações no nível de especialização: as 29 entradas do primeiro capítulo contam com 7 autorias (em média, 4 entradas por autor), tantas como as que assinam as 44 entradas do terceiro capítulo (6 entradas por autor), ao passo que as 61 entradas sobre trabalhadores são subscritas por apenas 5 autores (12 entradas por autor). Em parte, tal dever-se-á terminológico, que corresponde às tarefas técnicas, mais especializadas do que as relações de propriedade e as posições a elas associadas. Mas podemos ler estas assimetrias como indicadores do desenvolvimento relativo destas linhas temáticas na nossa investigação histórica sobre a agricultura, que tem sublinhado muito mais as problemáticas do regime senhorial, das estruturas agrárias, dos contratos agrários, da distribuição da riqueza e das elites proprietárias do que a do trabalho agrícola, da sua organização e tecnologia. Mesmo o facto de um sexto das entradas relativas a trabalhadores ser directamente relacionado com a viticultura (além das abundantes menções que lhe são feitas em entradas menos específicas) «trai» o carácter excepcional das investigações de Conceição Andrade Martins nesta divisão do trabalho historiográfico, não menos importante do que essa outra divisão regional de que falam os organizadores na introdução e que tem privilegiado o Sul — entenda-se, o Alentejo — até nas opções iniciais do projecto que gerou esta obra.

A extensa bibliografia final, com umas seis centenas de referências a fontes e bibliografia citada, não é decerto menos útil do que os conteúdos acima resumidos. Não pretendendo a exaustividade de um inventário, é certamente a mais ampla e actualizada recolha ao dispor dos investigadores e estudiosos da nossa história agrária. Estranha-se, no entanto, uma lacuna como a da memória de Joaquim Pedro Fragoso de Sequeira sobre as gadanhas, nas Memórias Económicas da Academia das Ciências (t. 5, 1815), em que encontramos uma das mais interessantes e minuciosas descrições de sempre do trabalho da ceifa nas lezírias do Ribatejo e no Alentejo, incluindo os contratos de trabalho, os gestos e os instrumentos e até a receita do gaspacho, prevenção contra as insolações de que morriam muitos ceifeiros, onde, além do mais, se ganharia o vocábulo «rei», aparentemente usado pelos «ratinhos» para designarem o seu «capataz», que Sequeira usa no sentido de «manageiro ». Também António Henriques da Silveira, no t. 1 das mesmas Memórias (1789), apesar de referenciado nas fontes, poderia ter sido mais bem explorado. Ganhar-se-ia, por exemplo, o termo «posseiro», como sinónimo de «senhorio» (noutras fontes, «maior senhorio» ou «mor senhorio») nas relações de arrendamento das herdades do Alentejo, em sentido semelhante ao do «possoeiro », que o verbete restringe aos forais manuelinos da Beira, Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes e às relações de aforamento. E algum vocabulário de conotação pejorativa dos argumentos políticos parece ter sido esquecido: por exemplo, termos como «monopolista», aplicado tanto a rendeiros de múltiplas herdades no Alentejo como a negociantes de cereais, e «atravessador», no âmbito do comércio interno dos bens agrícolas, tiveram uma função pragmática de designação (negativa) de papéis e posições sociais, demasiado importante para poder ser ignorada num levantamento do vocabulário social sobre as ocupações. Certamente o porvir do escrutínio por especialistas de diversos terrenos não deixará de referenciar idênticas lacunas, inevitáveis em trabalho desta envergadura e que em futuras edições poderão ser completadas.

Resta abordar a questão do modelo de livro pelo qual os organizadores deste volume optaram. O formato de dicionário destoa do adoptado pelos outros volumes publicados desta História do Trabalho e das Ocupações e parece introduzir alguma discrepância de critérios na sua coordenação geral. Por se tratar de uma crítica óbvia, merecem elogio os organizadores deste volume e o coordenador da obra, que tiveram a coragem de se lhe exporem. Porque, pelo menos no estado presente da história da agricultura em Portugal, me parece ter sido esta a opção acertada. Como os organizadores sugerem na introdução, é muito discutível a pertinência da escala nacional para uma história do trabalho e das ocupações agrícolas, dada a enorme variabilidade regional e a sedimentação histórica dos modos de repartir a posse da terra e de praticar a agricultura, que inevitavelmente se repercutem nas formas de classificação das ocupações. Por maioria de razão, dificilmente essa diversidade essencial se presta a uma narrativa histórica unificada e coerente da evolução do trabalho e das ocupações agrícolas.

Com efeito, estas classificações sociais são espacialmente específicas, porque diferentes estruturas agrárias, técnicas e práticas agrícolas requerem o desempenho de diferentes papéis, distribuem diferentes posições e constroem diferentes identidades sociais. Mais ainda, o mesmo vocábulo designa muitas vezes posições, papéis e identidades sociais variáveis. Não se trata só da variabilidade normal, mesmo nas menos ambíguas classificações sociais, mas de uma ampla dispersão semântica e pragmática através de diferentes contextos espácio-temporais. «Lavrador» não designa o mesmo tipo de actor nem de posição na estrutura social na pena de Brian O’Neill e na de José Cutileiro, respectivamente sobre uma comunidade rural transmontana e uma outra alentejana na segunda metade do século XX. Mas tão-pouco o objecto social descrito por «lavrador» é exactamente o mesmo na comunidade estudada por Cutileiro nos anos 60 do século passsado — onde estava normalmente reservada aos «latifundiários », proprietários de várias herdades — e nos textos sobre o Alentejo da segunda metade do século XVIII — cujo vocabulário, num verdadeiro registo de luta social pela classificação legítima para fins políticos, opunha aos «lavradores de profissão, filhos e netos de lavradores» esses «monopolistas de herdades» que, numa trajectória lançada decisivamente nessa época e concretizada com o acesso à propriedade plena após a reforma agrária liberal, foram uma das origens sociais dos «lavradores » descritos por Cutileiro.

Por isso, a opção por um modelo de texto histórico que procurasse sintetizar toda essa diversidade cairia facilmente quer em generalizações mal fundamentadas e com grande desperdício de informação, quer num mosaico de descrições parciais de coerência problemática e, no estado presente da investigação histórica, necessariamente lacunares. O formato de dicionário, sacrificando conscientemente a consistência de um argumento global, permitiu valorizar por inteiro a informação recolhida no âmbito do projecto, contextualizando- a nos textos explicativos e relacionando- a de modo complexo através das remissões cruzadas que os atravessam. Este dicionário constitui, assim, um instrumento que não substitui uma história do trabalho agrícola, mas sistematiza a informação dispersa para começar a pensá-la.

 

Rui Santos

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