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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.5 Lisboa out. 2015

 

EDITORIAL

Justificam-se os indicadores de contratualização dos cuidados de saúde primários sobre rastreios oncológicos?

Bruno Heleno*

*Departamento de Medicina Geral e Familiar, NOVA Medical School/Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

A remuneração associada a indicadores de desempenho é um incentivo poderoso para a mudança de comportamentos de profissionais de saúde. Existem poucos estudos de elevada qualidade sobre o assunto, mas o pagamento por desempenho em cuidados primários parece estar associado a pequenas melhorias na qualidade dos cuidados de saúde prestados.1-3 Neste editorial procurar-se-á refletir sobre qual a redução de mortalidade esperada com os programas de rastreio oncológico incentivados pelos indicadores de desempenho, quais os principais malefícios que podem advir destes rastreios e como os indicadores criam conflitos de interesse para os médicos de família.

Qual a redução de mortes que pode ser esperada pelo rastreio de cancro?

Os rastreios de cancro têm como objetivo principal reduzir o número de mortes por cancro. No princípio de 2015 foi publicado um artigo importantíssimo que reviu 48 ensaios clínicos e 9 meta-análises de ensaios clínicos sobre rastreio.4 As conclusões devem fazer-nos pensar: “Entre os testes de rastreio (para doenças onde a morte é uma ocorrência frequente) atualmente disponíveis, reduções de mortalidade específica são incomuns e reduções de mortalidade global são muito raras ou não existentes” (tradução do autor). Apenas três dos dez programas de rastreio avaliados (rastreio com mamografia, rastreio com pesquisa de sangue oculto nas fezes e rastreio com sigmoidoscopia) estão associados a reduções do número de mortes pelo cancro rastreado.

O Quadro mostra a redução esperada do número de cancros com os rastreios que fazem parte do painel de indicadores de contratualização dos cuidados de saúde primários. Os dados são baseados nas revisões sistemáticas publicadas pela colaboração Cochrane.5-6 O rastreio do cancro do colo do útero nunca foi avaliado em ensaios clínicos, mas foi implementado, uma vez que estudos observacionais mostraram reduções dramáticas (RRR entre 60-90%) na incidência por este cancro.7 Os dados mostram que mesmo para os cancros em que há reduções significativas de mortalidade, essas reduções são relativamente modestas (1-2 mortes evitadas por 1.000 pessoas rastreadas durante 10 anos). Divulgar estes números é importante: existem estudos que mostram que doentes e médicos sobrestimam o número de vidas salvas pelo rastreio.8-10

 

 

E há problemas importantes com os rastreios?

A designação “cancro” inclui um largo espetro de lesões, desde aquelas que serão sempre mortais se não forem tratadas (ou mesmo mortais, ainda que tratadas) até lesões indolentes com um potencial extremamente baixo de progressão metastática e morte.11 Na ausência de rastreio, os médicos apenas conseguem detetar os cancros que causam sintomas e, consequentemente, aqueles que virão a tornar-se fatais se não tratados. Dado que parte destes cancros tem mau prognóstico quando já evoluiu para sintomas, surgiu a ideia de aplicar testes em pessoas sem sintomas para procurar detetar lesões mais pequenas, pré-clínicas, na expectativa de melhorar o seu prognóstico.12 O reverso da medalha é que detetam-se não só os cancros fatais como um conjunto de lesões indolentes. O dramático da situação é que, com a tecnologia que temos habitualmente disponível (anatomia patológica, citoquímica, marcadores imunológicos, etc.), não conseguimos distinguir entre cancros fatais e indolentes. Por isso, acabamos por tratar de forma agressiva todas as lesões.13-15

Os doentes que têm cancros que virão a ser fatais podem vir a beneficiar desta deteção precoce. Mas os doentes com cancros indolentes, que nunca viriam a ter sintomas do cancro, só saem prejudicados por este tratamento agressivo e não têm qualquer possibilidade de ter benefício. Por isso, dizemos que estes doentes foram “sobrediagnosticados” e “sobretratados”. Tanto o diagnóstico como o tratamento não podiam melhorar o prognóstico de uma doença que nunca viria a evoluir, ou para sintomas ou para morte.

Decisão informada e consentimento informado

Sempre que estão em jogo aspetos importantes da saúde dos utentes e existe uma grande incerteza se os benefícios de uma intervenção ultrapassam os seus malefícios é importante procurar a decisão partilhada e o consentimento informado.16 Logo, a decisão partilhada e o consentimento informado são fundamentais quando os médicos de família convidam os seus utentes para o rastreio. Tanto mais que a medicina geral e familiar se orgulha de ser uma especialidade que pratica o método centrado na pessoa17 e valoriza um modelo de concordância terapêutica face a um modelo de simples adesão do doente ao plano de tratamento.

Atualmente os indicadores de contratualização avaliam a proporção de utentes com determinado rastreio registado no processo. Ou seja, a tónica não está em fomentar a decisão partilhada face a intervenções com benefícios modestos e potenciais malefícios, mas antes em encorajar a adesão dos utentes a esta intervenção. Para além disso, no caso da mamografia há um incentivo financeiro para que seja oferecida uma intervenção que é ferozmente discutida no meio científico.5,18-19 Entre cumprir o indicador de contratualização e manter-se firme na defesa dos melhores interesses do utente, os médicos de família escolherão conscientemente a segunda. Mas o conflito de interesses era desnecessário. Por isso, estes indicadores são desadequados do ponto de vista ético e chegam a ser contrários à própria natureza da especialidade porque desencorajam a tomada de decisão partilhada.

Conclusão

Em resumo, se a remuneração associada ao desempenho é um mecanismo poderoso ao direcionar a atenção dos médicos para determinadas intervenções em saúde, ela deveria ser reservada para situações em que os benefícios ultrapassam largamente os malefícios. Como o benefício dos rastreios em termos de mortalidade é modesto e existe prejuízo para alguns dos participantes sob a forma de sobrediagnóstico de cancro, os indicadores associados a programas de rastreio não se justificam. Adicionalmente, com a formulação atual, estes indicadores estimulam o comportamento errado. Quando estamos perante situações em que há grande incerteza se os benefícios ultrapassam os malefícios, o que deveríamos incentivar é a tomada de decisão partilhada e não a adesão cega a determinada intervenção. Isto significa que é altura de substituir estes indicadores do conjunto daqueles que são contratualizados com as USF e UCSP.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

E-mail: bruno.heleno@fcm.unl.pt

 

Conflito de interesses

O autor declara não ter conflitos de interesses.

 

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