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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.32 Lisboa dez. 2011

 

Pax Germanica. A nova paz liberal e a velha Angst europeia

 

Luís Guilherme Pedro

Investigador do IPRI – UNL, tendo sido investigador visitante na Graduate School of Public and International Affairs na Universidade de Otava no Canadá. Doutorado em Teoria Política Internacional pela Aberystwyth University (País de Gales) onde foi assistente no Departamento de International Politics. Mestre pelo Institute of Criminology da Universidade de Cambridge e licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais pela FCSH – UNL.

 

RESUMO

O artigo procura contribuir para uma reflexão sobre a actual crise europeia através de uma teorização crítica do liberalismo, aqui caracterizado como pressuposto filosófico, político e ontológico de uma paz liberal que assenta cada vez mais num cenário geopolítico de germanização progressiva da Europa. Neste sentido, iremos revisitar dois ensaios produzidos por Carl Schmitt e Emmanuel Levinas, cujas críticas ao modelo de paz liberal descrevem muitas das limitações do modelo industrial e tecnocrático que a sustenta mas sobretudo a forma como este modelo abre caminho ao seu próprio colapso.

Palavras-chave: paz liberal, segurança, ansiedade, Europa

 

Pax Germanica. The new liberal peace and the old European Angst

ABSTRACT

This paper seeks to contribute to a reflection on the current European crisis through a critical theorization of liberalism, here characterized as a philosophical, political and ontological assumption of a liberal peace that rests increasingly on the geopolitical scenario of germanisation of Europe. Therefore, two main essays are revisited in the paper, one by Carl Schmitt and the other by Emanuel Levinas, their criticisms to the model of liberal peace describes many of the limitations of the industrial and technocratic model that underpins it, but above all the way in which this model paves the way for its own collapse.

Keywords: Liberal peace, security, anxiety, Europe

 

Could it be that we are most religious partly in consequence of being the most secular culture?

Reinhold Niebuhr1

 

What gift of direction

Is entrusted to me to take charge

Of an expedition any may

Suggest or join? For the journey homeward

Arriving by roads already known

At sites and sounds one has sensed before,

The knowledge needed is not special.

W. H. Auden2

 

O presente artigo procura contribuir para uma reflexão sobre a actual crise europeia através de uma teorização crítica do liberalismo, aqui caracterizado como pressuposto filosófico, político e ontológico de uma paz liberal que assenta cada vez mais num cenário geopolítico de germanização progressiva da Europa. É num contexto de uma discutível crise de imaginação normativa que a presente crise europeia revela, que este artigo se propõe revisitar dois ensaios produzidos por dois dos pensadores mais destacados da filosofia continental do século XX – Carl Schmitt (1888-1985) e Emmanuel Levinas (1906-1995) – e cujas críticas ao modelo de paz liberal descrevem muitas das limitações do modelo industrial e tecnocrático que a sustenta mas sobretudo a forma como este modelo abre caminho ao seu próprio colapso. Como exemplos extremos de alternativas teológico-políticas à paz liberal, o modelo schmittiano de paz política e o ideal levinasiano de paz ética, colocam em perspectiva a actual capacidade das ideologias político-partidárias para desafiar certos aspectos do paradigma industrial do liberalismo.

Como ponto preliminar à discussão que se segue, importa sublinhar que a maior limitação do liberalismo do ponto de vista schmittiano é também o maior trunfo do paradigma industrial que a paz liberal se vê impotente para reformar: a confiança cega do liberalismo nos poderes racionais de um sujeito cuja autonomia decisória supostamente meta-emocional é a fonte última de realização pessoal e colectiva, e cuja paz espiritual, directamente dependente da segurança material, justifica todas as guerras. É neste sentido que importa revisitar as críticas de Schmitt e de Levinas ao primado liberal do sujeito neutral e despolitizado, como forma de salientar as limitações ontológicas e políticas que emergem da ansiedade e da idolatria que inspiram a pacificação liberal. Ora, para lá da noção de paz política como continuação simbólica e neutralizante da guerra de que nos fala Hannah Arendt3, importa saber até que ponto é que a paz liberal conseguirá enfrentar os desafios pós-industriais que eram vistos como valências da paz liberal mas que constituem hoje obstáculos inegáveis à sua sustentabilidade futura, tais como a crise demográfica, a escassez crescente de recursos energéticos a nível mundial, a crise climática e ainda a crise das dívidas soberanas, que parecem submeter cada vez mais as soberanias nacionais a uma solidariedade com um projecto de integração europeia que alimenta em muito as aspirações económicas da Alemanha.

Nos dois ensaios de Schmitt e Levinas que aqui relemos em paralelo – intitulados, respectivamente, A Idade das Despolitizações e Neutralizações4 (1929, DN) e Paz e Proximidade5 (1984, PP) – os conceitos de paz e de ansiedade emergem discretamente como noções não apenas salientes no contexto da teoria política internacional, mas que relevam para uma reflexão contemporânea sobre a relação entre o liberalismo e o projecto de integração europeia – que o conceito de «paz liberal» sintetiza – bem como sobre os limites deste paradigma, hoje apresentado pelas elites europeias em geral como inevitável, mas cuja presumida inevitabilidade histórica parece também anunciar, de forma paradoxal e trágica, a inevitabilidade do seu próprio fim. Não obstante o cenário de continuidade entre uma paz liberal europeia sustentada pelo todo-poderoso Estado social e uma Pax Germanica cuja força normativa já se revela na retórica sentenciosa da chanceler alemã, este artigo revisita aqueles ensaios e levanta dúvidas sobre o potencial normativo e mobilizador do liberalismo para resistir a formas de tirania e de opressão às quais este sempre se arvorou como imune. O enfoque deste artigo sobre o actual momento da crise europeia, não sancionando obviamente a trajectória excepcionalista e decisionista que Schmitt viria a adoptar – e que reafirmaria mais tarde ao alistar-se no Partido Nacional-Socialista alemão – salienta o risco latente de colapso do modelo liberal europeu precisamente na medida em que este parece avançar para uma germanização do projecto de integração europeia com riscos óbvios não apenas para integração europeia mas também para o próprio regime democrático.

O artigo está dividido em duas partes. A primeira propõe-se revisitar a célebre polémica schmittiana contra o liberalismo tecnocrata na senda da sua afirmação ideológica e providencial, capaz de limitar os excessos do capitalismo a partir de dentro. Schmitt evidencia a impotência auto-reformadora da paz liberal e da sua fé tão secular quanto religiosa, no poder pretensamente apolítico da ciência e da técnica para resolver o problema da paz. Em particular, a recuperação de Schmitt permitir-nos-á reaver os fundamentos teológico-políticos daquele filósofo, cujo poder crítico se veio a afirmar não apenas como uma das instâncias mais salientes de reacção conservadora ao liberalismo, mas também como uma fonte normativa que, como Leo Strauss refere, parte ela própria de certas assunções liberais para se revoltar contra elas. A releitura avisada do ensaio de Schmitt serve precisamente para nos lembrar, portanto, como é que as maiores ameaças ao liberalismo podem surgir a partir de dentro do liberalismo, tal como a afirmação do político em Schmitt se caracterizou pela sobreposição estratégica de categorias de forma a fazer subsumir o económico, o social e o cultural na categoria do político – para Strauss, a verdadeira contradição de Schmitt.

Na segunda parte, o artigo propõe-se revisitar estes perigos ao liberalismo através de uma reconsideração do conceito de paz à luz do tipo de individualismo que, segundo a visão aqui expressa, se veio a constituir como base espiritual e religiosa – antropo-teológica – do liberalismo industrial moderno. A noção de paz de Hobbes demonstra bem a explícita associação entre guerra e pacificação que o liberalismo intima e que, conduzida por um Estado soberano contratualizado em termos da securitização do indivíduo como unidade ontológica inviolável, conduz a uma tensão ontológica entre ansiedade e idolatria que a paz tecnocrática do liberalismo se revela impotente para combater. A trajectória levinasiana consegue de facto minar o projecto moderno da paz liberal ao evidenciar a sua raiz logocêntrica numa idolatria civilizacional europeia. Para Levinas, a paz europeia não se deixa representar por nenhuma imagem ou figura em nome das quais a violência é exercida, incluindo a violência que os vários modos de paz, enquanto pacificações, já incorporaram. Assim, qualquer paz que se proponha a aproximar do ideal de amor como verdade transcendental – e não como aproximação a uma verdade racional que se substitui ao amor como valor último – é uma paz merecedora desse nome na medida em que parte do pressuposto de uma dívida ontológica impagável – uma autêntica dívida soberana – e assim da subtracção existencial de todas as soberanias à prioridade do outro, que este manifesta heroicamente através da resistência às imposições do eu, aliás condição sine qua non de uma fraternidade plural e mesmo da possibilidade da ética, segundo Levinas.

Assim, terminamos esta discussão com a nota trágica, mas ainda assim de um cinismo moderado e aberto ao futuro, de que a presente crise europeia se reflecte numa crise profunda do liberalismo em se conseguir auto-reformar de forma a se poder reconstituir num ideal de paz mais capaz de fazer frente a desafios que contradizem quer a sua raiz industrial, quer os seus pressupostos racionais subjectivos. Ora, enquanto reconhece no primado da razão subjectiva um alvo a abater, a teoria política contemporânea – e todo o espírito crítico europeu – são obrigados recorrer a este como única fonte disponível não apenas de normatividade mas também de autocrítica, o que antecipa a impossibilidade histórica de um retorno a qualquer paradigma pré-liberal aproximado ao ideal levinasiano, prevendo-se assim uma continuidade entre a presente paz liberal e uma Pax Germanica de estilo soft que Angela Merkel já vai exibindo num estilo retórico não tão ligeiro, mas com muita naturalidade.

 

LIBERALISMO, TECNOCRACIA E O ADVENTO DA PAX GERMANICA

«Nós, na Europa Central vivemos “sous l’oeil des Russes”»6, começava assim o célebre ensaio de Carl Schmitt intitulado A Idade das Despolitizações e das Neutralizações, datado de 1929. Schmitt revelava, numa crítica acutilante à presumida neutralidade do liberalismo europeu dos anos 1920, a angústia profunda da paz liberal em se constituir como forma dominante de regime e de governo, através da racionalização tecnológica e da neutralização tecnocrática daqueles impulsos e emoções colectivos que lhe pudessem fazer frente. Schmitt reconhece no ideal de paz liberal europeia, de que Weimar se assumiu epítome histórica após um conflito europeu devastador, uma estratégia de pacificação económica e positivista que impede qualquer fundamento emocional de se constituir como base ontológica alternativa à razão iluminista, e assim se deixa mortificar e amolecer perante ameaças que já se vislumbram a Leste. É óbvio que Schmitt reconhece nesta Angst germânica uma oportunidade histórica. Um fundamento emotivo-volitivo que, enquanto tal, é também um poder criativo, capaz de reerguer uma nova ordem política que realiza o sujeito metafisicamente na terra, em vez de o consignar à violência simbólica mas igualmente brutal de um eterno sentimento de culpa, que faria aliás com que a pacificação universal do mundo degenerasse em conflitos também eles universais.

Mas esta denúncia da ansiedade liberal alemã – e do medo da ascensão russa que já se adivinhava – não é desprovida de ressentimento. Recalcada da aspiração alemã em se reconstituir como império continental, a angústia de Schmitt transparece na sua crítica do olhar panóptico dos russos sobre a Europa Central, um direito que a Alemanha, do ponto de vista schmittiano, se deve legitimamente arrogar. De resto, é só do ponto de vista da sua vocação propriamente europeia de se constituir como Reich é que o sentimento de humilhação colectiva imposto por Versalhes exige uma reacção absolutamente revolucionária e excepcional. É só do alto da montanha de expectativas que a Alemanha vê frustradas na I Guerra Mundial, é que a ansiedade face ao horizonte de realização pode ser produtiva de uma auto-afirmação crescente, em dialéctica contra um inimigo potencial – de resto nem sempre evidente, e mutável de acordo com as circunstâncias históricas. Reinhart Koselleck explica melhor do que ninguém o método schmittiano na sua proeza, histórica na teoria política internacional, em fazer esvaziar a ideia de inimigo de qualquer ontologia predeterminada:

«O par conceptual entre Amigo e Inimigo é caracterizado pelo seu formalismo político, estabelecendo uma grelha de possíveis antíteses sem as identificar. Em primeiro lugar, por causa da sua negação formal, este diz respeito a contraconceitos puramente simétricos, pois no caso do binário Amigo-Inimigo, a definição de um ou do outro fica aberta ao uso simultâneo para qualquer das duas partes. São categorias epistemológicas cujo conteúdo substancial (determinado pela experiência histórica) pode servir para preencher assimetricamente ambos os campos linguísticos. Independentemente de Schmitt ter desenvolvido este contraste a partir da sua própria posição, ele conota uma fórmula que não pode ser descartada como uma condição de uma política possível. Este é um conceito de político, não da política.»7

Toda a polémica schmittiana contra a neutralidade tecnocrática do liberalismo reside não no perigo da neutralidade per se, mas no facto dessa neutralidade facilitar a possibilidade de a Rússia se apropriar dos mesmos instrumentos e assim se agigantar perante o continente. «A sua vitalidade é forte o suficiente para que sejam capazes de se apropriarem do conhecimento e da tecnologia como armas.»8

Não deixa de ser interessante sobrepor este imaginário ao actual panorama europeu. De facto, e apesar das diferenças, nós, na Europa do Sul, vivemos hoje «sous l’oeil des Allemands», tal como os alemães vivem em grande medida sob o olhar atento dos chineses. O sistema político internacional afirma-se, pelo menos desde a Guerra Fria, como um balanço de poder em que os poderes competem pelas suas capacidades panópticas sobre o adversário. Claro que Schmitt tinha muitas mais razões para temer a sobreposição de que fala «entre eslavismo e socialismo» protagonizada por Estaline9, do que o comum cidadão europeu do Sul hoje tem para suspeitar da justaposição do capitalismo liberal ao protestantismo germânico que a crescente situação de Pax Germanica configura – e que o projecto de integração europeia parece ter conseguido matizar por algum tempo. Mas do ponto de vista das injustiças sociais e dos desequilíbrios regionais que já se manifestam na Europa e no mundo, é de facto impossível prever os efeitos da presente afirmação de poder alemão no seio da União Europeia, e como potência económica que, sustentada no maior bloco económico mundial, se procura guindar para o plano das superpotências globais.

Sabemos que desta vez é diferente, como sabemos também da aparente primazia do económico sobre o político que o panóptico chinês impõe sobre a Alemanha e mesmo sobre os Estados Unidos, cuja paz armada mundial já não consegue disfarçar uma lenta decadência imperial. Depreende-se, ainda assim, uma reconfiguração do alinhamento de poderes dentro da União Europeia que não deixará de despoletar tantas mais reacções, quanto mais insistentes forem as tentativas disciplinadoras daquele país sobre os outros. Schmitt tinha razão pelo menos neste ponto: a neutralidade da paz liberal nunca é «sem espírito». A sua crítica não é pois dirigida ao desnorte generalizado do liberalismo como pretende Botwinick no seu paralelo pioneiro entre Schmtit e Levinas10, nem tão-pouco à fraqueza, apatia e materialismo da paz liberal; Schmitt visa opor directamente o político ao político, o «espírito a outro espírito», e assim expor a hipocrisia liberal e tecnocrata, incapaz de assumir no seu paradigma industrial, tecnológico e económico, o político latente em todo o liberalismo:

«O espírito da tecnicidade, que levou à crença generalizada num activismo anti-religioso, é também espírito; talvez um espírito maléfico e demónico, mas que não pode ser descartado como mecanicista e atribuído à tecnologia. É talvez algo de macabro, mas não é em si mecânico ou técnico. É a crença numa metafísica activista – a crença num poder ilimitado e no domínio do homem sobre a natureza, a crença num ilimitado recuo das fronteiras naturais, nas possibilidades ilimitadas de mudança e prosperidade. Esta crença pode ser chamada de fantástica e satânica, mas não pode ser considerada morta, sem espírito ou sem alma.»11

Ora, o contexto da actual crise liberal europeia obriga-nos a reler Schmitt. As soluções que por estes dias são apresentadas para a crise económica que a Europa atravessa submetem claramente o objectivo da paz social aos pressupostos do liberalismo, seguindo a velha tradição contratualista de simbiose entre prosperidade material e paz metafísica. «A paz na Europa depende do Euro», como nos transmitiu em Lisboa um dos líderes europeus12. Contra o que alguém uma vez pretendeu como um princípio de federação entre povos fraternos, o liberalismo europeu afirma hoje a premissa moderna e secular da subordinação da tradição judaico-cristã do amor transcendental às imposições da razão técnica. A austeridade é apontada como instrumento essencial de uma paz liberal, conduzindo à subida ao poder nos países do Sul de várias elites oriundas das burocracias europeias, à margem do sufrágio eleitoral, na esperança vã de que «uma elite politicamente dominante possa emergir da comunidade de técnicos inventores».13

Mas, como lembra também Schmitt, «nenhuma invenção técnica pode alguma vez calcular os seus resultados políticos objectivos. […] Nenhuma questão política nem nenhuma resposta política poderá advir de perspectivas e princípios puramente técnicos»14.

Para aqueles que ainda acreditam na possibilidade de reconstituição legítima da paz liberal, este défice democrático tem de ser corrigido rapidamente pois põe em causa o princípio da representação e de legitimação do poder, abrindo caminho ao colapso do Estado social e assim da democracia. Para muitos destes analistas, que ainda povoam o discurso mediático e jornalístico com imagens algo romantizadas de uma Europa em torno da miragem da igualdade entre os estados, as receitas de austeridade económica que têm origem nas tecnocracias europeias são apenas um meio para a afirmação e consolidação de um modelo económico mais justo, mais democrático e mais respeitador dos direitos humanos, que se possa afirmar como modelo de desenvolvimento para o resto do mundo. No jornal italiano La Stampa, lê-se mesmo a mensagem de esperança, própria do estado de graça de um governo recente que, contudo, não foi eleito, e que é imposto aos italianos a partir do eixo franco-alemão, de que «não se trata de abolir a política nem de suspender a democracia, mas de aproveitar a crise italiana para abrir um novo ciclo político»15. No mesmo espírito, um conhecido jornalista português observa que «o governo sem políticos é um meio e não um fim»16.

Como se da estratégia de imposição da paz germânica e liberal não fizesse parte a confusão, celebrizada por Maquiavel, entre meios e fins, onde o sentido das intenções se perde ou passa a servir fins que eram, no início, apenas dados como meios. Como se a austeridade imposta aos países do Sul não servisse sobretudo a Alemanha, de resto o país que, consensualmente, mais beneficiou com a integração. De facto, o ensaio de Carl Schmitt reafirma a visão segundo a qual a economia, a técnica e a ciência são apenas meios para um fim político.

«Na base de um novo domínio central esperava-se encontrar um acordo mínimo e premissas comuns que permitissem a possibilidade de segurança, clareza, prudência e paz. Os europeus direccionaram-se então para a neutralização e minimalização no contexto das quais aceitaram uma lei que os mantivesse “em linha” e que pudesse constituir o seu conceito de verdade.»17

Mas Schmitt denota, nesta histórica «batalha por um domínio neutro», uma metafísica vontade de poder:

«Nas doutrinas liberais do pouvoir neutre e do stato neutrale o processo de neutralização encontra a sua fórmula mais clássica porque capta o que é mais decisivo: o poder político […] No novo domínio [liberal] as antíteses entre homens e entre interesses ganha uma nova intensidade e agudiza-se. Os europeus oscilaram sempre entre um domínio conflitual e um domínio neutral, e sempre o mais recente domínio neutral se reconstituiu imediatamente em novo palco de guerra, requerendo outra vez um novo domínio neutral.»18

Schmitt mostra portanto que é precisamente na sua despolitização e neutralização temporárias que o liberalismo tecnocrático consegue disfarçar a sua eficácia política, isto é, consegue servir a afirmação política de uma entidade ou de um Estado enquanto se propõem a distribuir prosperidade, bem-estar e felicidade de forma igual e imparcial: «A tecnologia é o último fundamento da neutralidade […] Mas é precisamente porque a tecnologia serve a todos que ela não é neutra. Nenhuma decisão pode ser derivada da imanência da tecnologia.»19

Desenganem-se portanto aqueles que solicitam o regresso da política no sentido tradicional da afirmação do poder do Estado face à força das dinâmicas económicas. A política nunca esteve tão presente na Europa como agora, precisamente na medida em que nunca a sua presença esteve tão à altura da sua ausência. Essa é a grande valência da paz liberal, como sugere Schmitt: uma paz tão pacificadora do ponto de vista económico quanto ela serve uma violência simbólica mais agravada e global.

«É o próprio esquecimento da presença do inimigo que se apoderou do liberalismo que explica a sua capitulação e a sua impotência em assegurar a coexistência irénica das nossas sociedades. Convencido que só o direito, inseparável do progresso, pode pacificar e obstruir os antagonismos humanos, o homem liberal que se desembaraçou da teologia não pode imaginar que possa ser de outra forma. A sua paixão por, e o seu sonho de, produção e de fruição frenéticos dos bens deste mundo que o tornam amnésico face à morte e ao trágico da vida. […] Após Schmitt, o paradoxo da modernidade reside nesta fúria prometaica em edificar uma existência sem drama, sem sofrimento, desapossados de toda a especificidade humana; embora a grandeza do homem resida igualmente na abertura ao infinito e à sua coragem face às vicissitudes da vida, da morte e do destino.»20

É neste sentido que este artigo se propõe descrever a Pax Germanica do futuro próximo, e que só agora começa a mostrar a sua face, como a sequência lógica da impotência normativa dos imaginários políticos e ideológicos europeus nacionais e comunitários, incapazes de fazer frente à crise e de olhar o liberalismo a partir de ponto de vista externo como afirmação política específica de uma paz ideológica. Ora, o que parece estar a baralhar este vislumbre mais ou menos claro de uma asserção de poder alemão sobre o resto da Europa é que a instauração plena do liberalismo germânico sobre o Sul só se consegue afirmar na medida em que a Alemanha compromete o seu destino político nacional, sempre problemático e instável, com a sua missão universal de federalização da Europa à sua própria imagem, sempre problemática e instável. A paz liberal da Europa não serve, e dificilmente servirá, a paz ou liberalismo per se; estes são meras tecnologias sociais e económicas postas ao serviço de um poder que optamos aqui por não designar como «imperial» porque não corresponde à imagem tradicional de um Reich, não deixando por isso, todavia, de se constituir numa Pax et Potestas continental e civilizacional onde «Europa» e «Alemanha» se confundem cada vez mais. Deste ponto de vista, a suposta europeização da Alemanha21 de que falam muitos cientistas políticos encontra na germanização da Europa o seu volte-face ideal – que só o estigma do holocausto impedia até agora de discernir com clareza e de antecipar até com alguma previsibilidade.

Ora, vivemos um tempo em que a paz liberal parece recuperar alguma da sua chama normativa sob o comando da Alemanha. O sucesso do individualismo não pode apenas ser atribuído a razões puramente económicas. Há por detrás dele um claro alento teológico-político. O avanço da austeridade sobre o Sul consagra o culto do individualismo e assim a ética protestante que Max Weber tão bem descreve na sua simbiose com o capitalismo liberal22 e ao fazê-lo beneficia as sociedades protestantes em detrimento das outras. O próprio catolicismo é remetido para segundo plano, neutralizando quase por completo o que ainda restava de duas unidades sociais que este privilegiava tradicionalmente nos países do Sul: a família e a escola. Donde, os constantes apelos aos estados nacionais por parte dos vários sectores católicos das sociedades portuguesa, espanhola, italiana, bem como do próprio Vaticano, que já antecipa na presente crise um apagamento generalizado do valor cristão da fraternidade e o realinhamento da integração europeia com as intenções político-civilizacionais do liberalismo, assentes na corrupção da noção de amor transcendental em idolatria individualista. Este realinhar de forças e poderes parece aliás configurar mais uma ofensiva greco-romana, agora germanizada, contra a tradição judaico-cristã, que viu no projecto falhado da Constituição Europeia a última oportunidade para se reafirmar como tradição de fundo (e espírito) da própria integração.

Ora, para aqueles que já perderam a esperança neste modelo de paz liberal e que anteviram na queda do comunismo de há vinte anos, o lento esboroar, não apenas dos capitalismos centralizados e totalitários, mas de todos os paradigmas modernos de ordem pública assentes no paradigma industrial – incluindo o do próprio liberalismo – esta crise desmascara por completo a ilusão de um liberalismo capaz de se autolimitar e auto-regular. No fundo, o que a crise revela é que todos os poderes de autocontrolo da paz liberal servem apenas a sua própria recondução como macroestrutura económica do sistema político internacional, através de um positivismo legal e científico cuja aparente incapacidade de mobilização colectiva é depois colmatada com a fervorosa religiosidade do individualismo que coloca o self no altar da sua Igreja. Era precisamente este tipo de ordem liberal pretensamente anónima, tecnocrática e despolitizada que Carl Schmitt denunciava anos antes da ascensão do partido nacional-socialista, um partido que o próprio viria a integrar juntamente com Martin Heidegger em 1933, e cuja aposta ideológica era a de uma radical fusão entre povo e Estado – ou seja, entre emoção e razão –, capaz de racionalizar os medos e ansiedades de cada alemão numa política de projecção e realização de aspirações meta-individuais, política essa que o contratualismo e o liberalismo moderno pensavam ter cerceado. Resta saber se de um retorno àquele cenário excepcional e violento que despoletou a II Guerra Mundial não poderá sair culpado o liberalismo, na sua senda tão pacificadora.

Nos dias que correm, já não é preciso lembrar que a crise de identidade europeia latente à crise económica intima o fracasso de uma paz construída na base de uma integração aparentemente económica e cujos verdadeiros contornos políticos parecem de novo ensombrar a Europa com o fantasma histórico da última paz falhada. Uma nuvem negra debruçada sobre um destino que, para o bem e para o mal, vai ser sempre comum. Face à ansiedade causada pelo potencial recuo ao paradigma schmittiano, a seguinte parte irá procurar caracterizar o paradigma liberal e industrial de paz encetado por Thomas Hobbes. O ideal levinasiano de paz como proximidade constitui uma contraproposta teórica quer ao ideal de paz liberal dominante de raiz hobbesiana, quer à sua radicalização na obra de Schmitt, evidenciando o que, contudo, este denunciava como a fachada do rigor económico e da problem-solving capability de algumas elites e o facto de a tecnocracia esconder não apenas um tipo de paz antidemocrática – na medida em que é feito à margem das democracias nacionais – mas uma afirmação do Norte protestante e puritano face ao Sul, que dificilmente deixará de despoletar ansiedades colectivas capazes de reavivar fantasmas que julgávamos ter mumificado em definitivo.

 

A SEGURANÇA E A SOLICITUDE DO TEMPO QUE VEM

Como Habermas observa, é com o advento da modernidade como momento específico e especificamente autoconsciente da história que o princípio da subjectividade moderna se afirma como face ao futuro23. Este movimento configura uma cesura revolucionária e auto-incutida face ao passado, da razão contra a tradição e do valor da verdade materializável contra o valor passé do amor imaterial, culminando num triunfo da ciência sobre a religião em que a primeira assume agora o lugar da última. Donde, a assimilação por parte das grandes ideologias e imaginários políticos europeus – desde o marxismo ao nazismo passando também pelo liberalismo e pela social-democracia – de uma ansiedade existencial perante o futuro, que é fonte de incerteza e portanto objecto de securitização, neutralização e pacificação.

Mas se, por um lado, Carl Schmitt tinha razão ao denunciar a despolitização liberal e superficial desta radical exposição à precariedade de um futuro incertus, o próprio acaba, como afirma Leo Strauss24, por ceder ao liberalismo através de uma repolitização também ela securitária, do tempo presente. Numa linha levinasiana, esta parte do artigo levanta a hipótese que muitas ideologias modernas acabam por sucumbir ao liberalismo porque a sua crítica do sujeito não consegue escapar nem ao primado da razão crítica nem à primazia do paradigma industrial e científico liberal. Donde, a ilação do colapso do imaginário normativo europeu na sua tentativa, constantemente frustrada, de constituir uma visão pós-industrial e pós-liberal que possa responder à crise da paz liberal, na sua insustentabilidade industrial, assente num ideal de sujeito capaz de procurar e de produzir felicidade, prosperidade, controlo, conhecimento e progresso ad eternum. Mas antes de concluir com este ponto de vista trágico, importa rever os mecanismos e as «figurações» mentais, para usar um termo caro à sociologia de Norbert Elias25, que o liberalismo construiu para diluir as ansiedades medievais por uma paz apenas saciável no reino de Deus.

Entendemos por liberalismo esta procura de materialização no «cidadão» – como interface entre self económico e soberania política – do máximo potencial de capacidade de sobrevivência, «entretenimento», enjoyment, oportunamente simbolizados na expressão francesa joie de vivre, tomada como máxima do individualismo que constitui afinal a base de verdade da paz liberal sustentada no crescimento económico, nos direitos humanos e na democracia. Ora, é precisamente neste sentido que esta paz se consegue afirmar como secularização de uma paz celestial. Na Europa liberal de hoje, como na Pax Germanica de amanhã, a vida impõe-se a si própria não apenas o imperativo da sobrevivência mas sobretudo a sua reinterpretação e distorção liberais em termos de bem-estar e qualidade de vida. Com o liberalismo a ideia de sobrevivência é entendida literalmente como sobrevida, isto é, como vida que para esquecer ou suspender a sua ansiedade perante um futuro de expectativas que a morte necessariamente compromete, é vivida no máximo da sua resistência à morte, isto é, como «estilo de vida». Mas como é que o indivíduo, reduto mínimo de direitos e deveres, é transformado nesta unidade ontológica inviolável, e sobre a qual recaem todas as responsabilidades de um destino político que, de resto, consagra a concretização do seu interesse individual como máxima programática e ideológica?

Ora, é com Thomas Hobbes que a ansiedade moderna face a um futuro auspicioso, a que ele se refere como uma «solicitude of the time to come»26 – e que ele ainda reconhece como alvo respeitável a abater – se deixa apropriar pela «cidade dos homens» através da construção hobbesiana de um «Deus mortal» capaz de canalizar a esperança numa paz vindoura para uma paz presente, anulando assim todos os medos e todas as ansiedades relativas à incerteza do futuro. Pois no momento em que o futuro se faz transportar para o presente não é só o presente que se assegura contra a incerteza e o desconhecido; é também a imprevisibilidade do próprio futuro que desaparece, e com ela todas as nossas ansiedades, agora reconduzidas para o estudo do passado e da tradição, face à qual o período moderno se pode afirmar, com os pés assentes na razão, como Modernus27. Daí que para Hobbes, o conceito de ansiedade seja útil não no sentido de fazer pairar sobre o sujeito o espectro de um futuro «por natureza imprevisível», mas de o reverter a favor do conhecimento do presente, isto é, como ansiedade face ao passado, onde a causa dos erros presentes – e, portanto, o estudo científico da causalidade – pode criar a possibilidade de uma paz futura, ou até de uma «everlasting peace»28.

Às ansiedades e angústias medievais, cujo paradigma de futuridade remetia para um destino só realizável num reino «not of this world», inefável e assim fora do controlo humano, Hobbes sobrepõe um medo relativo a algo muito mais tangível e até controlável, ou, pelo menos, com alguma «prudência», prorrogável: o «medo da morte» («fear of death»)29. Claro que a esta valorização de uma vida terrena cada vez mais eternizável corresponde uma desvalorização do ideal antigo de vida eterna, agora cada vez mais importável para o reino das coisas. Por consequência, esta valorização da morte como horizonte último veio a significar, para o europeu moderno, uma sobrevalorização da vida e de tudo aquilo que podemos cultivar para estender a sua longevidade: a saúde, a «comodidade», o bem-estar, a segurança, o entretenimento, o lazer, o trabalho, a «indústria»30, etc., etc. A fusão entre política, ontologia e economia consagra o paradigma da paz liberal como ordem industriosa e industrial. Ela atinge o seu pleno na articulação estratégica e engenhosa do conceito hobbesiano de «paz», triangulado com o «medo da morte», o «desejo» e a «indústria». Segundo o próprio Hobbes, «as paixões que inclinam os homens para a Paz são o Medo da Morte; o Desejo daquelas coisas necessárias a uma vida cómoda; e a esperança de que, pela sua Indústria, elas sejam alcançadas»31.

O mito do Leviatã obtém assim uma força normativa e um impacto prescritivo impressionante e cuja longevidade ainda não conseguimos divisar, precisamente porque, ao contrário do Deus transcendental, este semideus é facilmente filtrado para a realidade do dia-a-dia: ele é mortal como nós. O realismo de Hobbes descobre na recriação do Deus transcendental em deus pecador, a possibilidade de uma deidade perfeita para um mundo de sinners irremediáveis. De resto, a longa experiência anglo-saxónica do liberalismo parece confirmar a hipótese genial do filósofo inglês de que os homens se identificam mais plenamente com um deus que se afirma tão pecador quanto eles: um deus que cobra mas que também recompensa, que recebe mas que paga, enfim, que cumpre um contrato e assim, a bem da paz política e da estabilidade económica, permite a projecção terrena, e não extraterrestre, da «sobrevida», de uma vida que pode ser vivida, enjoyable, gozada nas suas comodidades e concupiscências – «ease, and lusts»32 – num exercício de aculturação do próprio Deus à necessidade de instituir uma paz capaz de assegurar a possibilidade do habitus liberal.

No quadro deste paradigma, a lógica do princípio cristão tradicional do Imago Dei é reapropriada e retrabalhada numa reeconomização geral do espectro possível de imanentizações do Deus cristão. Procede-se a uma colagem cada vez mais transparente entre ser e existir, onde o existente não é já visto como alienado do ser real – como sugere a origem etimológica do termo no étimo latino ex-istere, «stare ex» = «estar fora» – mas em que o ser real é transposto para o domínio do existente e contido neste, primeiro na figura do monarca e depois na do cidadão. Esta revolução secular levou de resto ao célebre prenúncio nietzscheano da morte de Deus, consistindo numa transfusão – a que Voegelin oportunamente chamou «imanentização»33 – que assegura o ser humano como fonte de paz presente e futura. Como se para ascender a Deus o sujeito tivesse agora que voltar a si sob a forma de uma asserção das suas capacidades racionais autocognitivas e auto-suficientes, em vez de se fazer transcender pela redenção, isto é, pelo reconhecimento da impossibilidade absoluta de um autocontrolo pleno. Ora, é neste novo enquadramento histórico que Deus se deve conformar à projecção transcendental do homem sobre o divino, e não o inverso: God is dead. Long live the Leviathan! É esta prerrogativa hobbesiana da vida, que remete o seu ens metafísico para o horizonte limitado do seu finis biológico, e em que à fuga constante ao medo de morte é alocado um estatuto específico – como último imperativo moral e normativo – que é posta em causa pelas correntes teológicas e filosóficas tradicionais que procuram, por sua vez, recriar a dialéctica entre vida e morte da pré-modernidade, sobremaneira sob a capa de um pós-modernismo mais conservador ou mais revolucionário. Emmanuel Levinas insere-se nesta tendência filosófica global de indignação contra o liberalismo individualista.

Segundo Levinas, esta paz liberal europeia, engenhosamente encetada por Hobbes, revela uma «má consciência» que não é nem resultado dos enjoos habituais causados pelas «seduções de uma paz que assegura a cada um a tranquilidade do seu bem-estar e a liberdade para se apoderar do mundo», nem de um «medo da morte» hobbesiano que a todos apoquenta. Há, para Levinas, todo um sentimento latente de ansiedade ou angústia

«na prática de crimes mesmo quando os conceitos estão em acordo. Há uma angústia [angoisse] que incumbe a cada um de nós na morte e sofrimento do outro. A crença de cada um por si na mortalidade de cada um nunca chega a absorver a gravidade da morte cometida e do escândalo da indiferença ao sofrimento do outro. Por detrás do perigo que cada um corre por si num mundo sem segurança, eleva-se a consciência da imoralidade imediata de uma cultura e de uma história»34.

A descrição levinasiana desfere assim um rude golpe no individualismo hobbesiano, inerente a uma concepção de morte individual como a derradeira ameaça a ser evitada a todo o custo mesmo que tal implique a exportação da guerra além Europa:

«Não ouvimos já, na vocação da Europa – e ainda antes da mensagem de Verdade que transporta – o “Tu não matarás” do Decálogo e da Bíblia? No capítulo 32 do Génesis, Jacob é atormentado pelo anúncio de que o seu irmão Esau – inimigo ou amigo – marcha ao seu encontro, encabeçando 400 homens. No oitavo verso podemos ler: Jacob tem medo e está angustiado. Mas qual a diferença entre medo e angústia? Rachi, célebre comentador rabínico, informa-nos: “Jacob teme pela sua morte mas está angustiado com a possibilidade de ter de matar”.»35

Ora, o tipo específico de idolatria civilizacional europeia, tão propriamente moderno e assente no imperativo da sobrevivência do bem-estar, não se reduz apenas às instâncias históricas de alienação colectiva em torno do Estado. Para Levinas, a paz liberal e «burguesa»36 é não apenas uma forma de resistência a esta secularização que ora politiza o Deus transcendental ora deifica o Estado; ela é, na verdade, a outra face da mesma moeda, isto é, também ela um produto desse processo de idealização e sublimação do ego que, em face da falência dos egos totalitários, recupera agora o modelo hobbesiano de instanciação pessoal do Deus no indivíduo, como foco de religiosidade e iconologia, cujas imagens são santificadas e endeusadas, precisamente porque são possuídas pelo eu, e assim o projectam numa dialéctica infinita de auto-adoração – uma ideia de resto simbolizada no conceito moderno de Personal Jesus. Ora, o desafio que se coloca a qualquer teoria política ou ética contemporânea segundo Levinas é o de conceber uma paz que

«não se reduza a uma mera confirmação de uma identidade humana na sua substancialidade nem a uma liberdade feita de tranquilidade, ancorando o sujeito na sua identidade de Eu. Não se trata aqui já da paz burguesa do homem que se fecha em casa para rejeitar aquilo que, fora dela, o nega; não se trata aqui de uma paz conforme ao ideal da unidade do Um que toda a alteridade perturba»37.

Importa perceber, portanto, até que ponto é que os europeus conseguem discernir, para lá das imposições sistémicas do liberalismo, um objectivo último de realização comum que não se resuma à felicidade individual, um ideal de felicity e de happiness que encontra no último anúncio publicitário da Hugo Boss a sua expressão niilista e, salvo o anacronismo, hobbesiana mais conseguida: «Be inspired by whatever; Whatever meets the way; Changes direction; Whatever surprises, thrills, sparks; Whatever is magnetic. ‘Whatever’ is just the beginning. Whatever, it’s your turn.»38

Representação altamente elucidativa do ideal de paz liberal, que apazigua o indivíduo ao tomar este whatever como princípio absoluto e fim último do seu ser. O «nada» como imperativo moral capaz de absorver o sujeito num frenesim autopoiético tão acelerado e electrificante que ludibria a própria possibilidade crítica da razão subjectiva em expor a miragem de auto-sustentabilidade como falácia religiosa e até «fundamentalista», como reconhece Habermas. Uma razão que se toma a si própria como princípio transcendental e se demite da sua responsabilidade em se auto-regular numa dialéctica com outros impulsos. Uma razão que terá perdido a noção do seu substrato emotivo com o intuito único de dar a vez ao self: «Whatever, it’s your turn». Compreende-se o apelo à autonomia voluntarista, à imunidade auto-adulatória e até o êxtase de um ego realizado na sua própria «autarcia» que dispensa tudo e todos, enfim, um voo para lá da terra e para junto dos deuses, desejo intemporal de um ser que procura, desde que se conhece amarrado à terra, escapar a essa condição. Já não se depreende, contudo, desta mensagem, qualquer imaginário ético e normativo capaz de evitar que a Europa, como projecto pós-moderno e pós-ocidental, se reduza a um aglomerado arbitrário de indivíduos isolados e alheados, gladiadores greco-romanos deixados à sua sorte numa arena politicamente neutralizada pela sua própria egocentricidade, e despidos de qualquer sentido de responsabilidade e de hospitalidade face a outrem.

Estará este self-made-man que os anúncios projectam como ideal-tipo completamente absorvido no ar que respira – que é o do seu próprio perfume? Será ele incapaz de discernir, num sentimento de ansiedade mais funda que o de um mero sentir, e que antecede mesmo a sua auto-imagem? Será este o modelo de cidadania que a Pax Germanica, como o novo estágio do liberalismo atlântico, irá consagrar? Ou corresponderá esta fundamentalização do self ao seu fundamento último e assim também à razão do seu afundamento derradeiro? Será este apelo perverso a um whatever, produtivo ele próprio de reacções e de resistências capazes de devolver ao sujeito todos os seus poderes recreativos que lhe permitem repensar as formas como se organiza em comunidade e, portanto, como constrói a paz? Estas perguntas fazem recair a nossa atenção sobre a razão de ser última da paz liberal, e não apenas a sua razão de ser mais óbvia: poderá a paz liberal, até na sua mais recente vaga de germanização da Europa do Sul, servir como instrumento de resistência ao perigo dos populismos nacionalistas e não apenas como glorificação de um bem-estar material e individual que parece esvaziado de qualquer sentido de bem comum? Se assim é que margem nos é deixada para pensarmos a paz para lá do espírito de idolatria que o paradigma da razão instrumental continua a alimentar, mas que, de resto, só é criticável a partir de uma razão emancipada da tradição?

Os escritos de Levinas e de Schmitt extremam o espectro de respostas possíveis a estas questões, debruçando-se sobre as rendições históricas e políticas da dinâmica secular de idolatria do homem moderno acima descrita. De facto, ambos parecem concordar no ponto em que o que caracteriza o sujeito moderno é uma ansiedade profunda que a expectativa de paz final e absoluta inspira nele e que o faz rememorar o passado de forma escatológica, e mais ou menos linear, como caminhando para esse fim adventício39. A razão secularizada e assim esvaziada da transcendência própria de um Deus que ama indiferentemente é imanentizada num sujeito que procura realizar o seu próprio destino individual, que é aliás o único porque a razão que o determina já foi subjectivizada no self racional. Resta assim saber o que é que pode constituir uma paz europeia aceitável para estes autores, feita a crítica da paz liberal como forma última de violência metafísica. Sobretudo tendo em conta a situação paradoxal da própria filosofia política moderna: por um lado, impossibilitada de um regresso a um passado de harmonia e integração plenas com o plano transcendental divino após a emergência da razão secular como ponto de passagem inevitável de qualquer filosofia crítica; por outro, confrontada com uma existência mundana cujas fórmulas institucionais, políticas e legais continuam a manifestar, de alguma forma, uma ansiedade face a um plano transcendental que a razão secular não consegue capturar de todo.

Ora, do ponto de vista interno ao liberalismo, é obviamente difícil para qualquer modelo de paz eximir-se à necessidade de desenvolver uma estratégia de neutralização emocional em que o sujeito é alienado da afectividade divina, isto é, de uma caritas pré-subjectiva que o criou e que o leva a afirmar uma paz entendida como segurança no sentido literal e metafísico de uma «sem-caridade» (sine+caritas = securitas). Uma paz que se pretende despida de ansiedade e assim sem amor – entendido aqui como ligação ao mundo e a uma cosmovisão encetada a partir do ponto de vista transcendental de um Deus criador transparente a uma razão que não se toma como fim último. É portanto neste contexto que o conceito de ansiedade adquire uma enorme valência explicativa crítica do liberalismo porque reconhece no sujeito uma criatura, por oposição ao paradigma individualista que o liberalismo procura disfarçar de autocriação individual.

Em Levinas, o ego humano padroniza uma racionalidade universal na qual se revê como indivíduo, isto é, como actualização individual de um universo mais global ou genus universal de que o outro também é necessariamente uma concretização específica. Assim, o outro é factor de violência e de perturbação da paz liberal quando não se enquadra num determinado número de práticas egológicas que o eu europeu, na sua razão soberana, já se encarregou de instaurar à partida como parâmetro último de todas as ordens aceitáveis – à luz do critério da racionalidade egológica que tolera e aceita o outro na medida em que este for capaz de ser como eu. Desta forma, o eu evita uma exposição desnecessária à diferença que o iria forçar a questionar-se a si mesmo e assim a entrar em guerra civil consigo próprio.

«A Paz como fundamento da verdade, que […] comanda os homens sem os obrigar a combater, que os governa e agrega sem os tornar subservientes, que os consegue convencer com palavras sem os conquistar, e que consegue dominar os elementos mais hostis da natureza através dos cálculos e do conhecimento prático da tecnologia. Paz na base de um Estado que corresponde à agregação de homens que participam das mesmas verdades ideais. Uma paz que é assim gozada como uma tranquilidade assegurada pela solidariedade – a medida exacta de reciprocidade de serviços permutados entre as partes: a unidade de um todo em que cada qual encontra o seu repouso, o seu lugar e a sua base. A paz como tranquilidade e descanso! A paz do descanso entre seres de pés assentes na solidez da sua própria substância, auto-suficientes na sua identidade e capazes de se satisfazer na procura de satisfação.»40

Para Levinas toda a ética liberal é uma falsa ética porque já foi politizada num eu naturalizado, que só é negociável na base de um ego que se economiza para depois projectar sobre o outro o seu próprio fechamento egocêntrico. É precisamente no contexto desta possibilidade que importa insistir na abordagem pós-liberal de Levinas à problemática da paz, sobretudo no potencial de crítica à paz liberal que encontra na justiça como fairness de John Rawls e na «acção comunicativa» de Jürgen Habermas os seus arautos mais recentes. Concentremo-nos, por momentos, na relação que Levinas estabelece entre o eu europeu e a possibilidade histórica de uma paz ética:

«O problema da Europa e da paz é precisamente aquele posto pela contradição da nossa consciência de europeus. É o problema da humanidade em nós, da centralidade da Europa cujas “forças vitais” – aquelas onde ainda se mantém activa a perseverança brutal dos seres no seu ser – são já seduzidas pela paz, pela paz preferida à violência e, mais precisamente ainda, pela paz de uma humanidade que, europeia em nós, já se decidiu pela sageza Grega de maneira a definir a paz humana a partir do Verdadeiro.»41

Entendida na sua definição judaico-cristã, a paz não pode ser vista, segundo Levinas, como um processo histórico de acalmia social generalizada e gradual que nas relações internacionais descrevemos normalmente como pacificação ou apeasement. Antes, a paz transcendental encontra no ideal de amor, de fraternidade e de justiça face ao outro a fonte mais legítima de negação de uma concepção de subjectividade racional-liberal que Levinas apresenta como agressiva e violenta logo à partida, porque, ainda antes de receber o outro na sua capacidade afectiva de se constituir como absolutamente responsável, o eu europeu projecta o seu modelo de um dever ser humano sobre o outro, impedindo logo à partida a sua performance constituinte de uma paz assente num amor sem quaisquer complexos de racionalidade subjectiva e descomprometida de qualquer matriz identitária própria das soberanias tradicionais. Para Levinas, a «justiça não procede da Verdade, da adequação do acto como facto com a ideia, mas emerge da relação com o Outro que para Levinas cria a condição de Verdade. Numa inversão característica, não é a ideia que é revelada no discurso, mas o discurso com o Outro que cria a necessidade razoável da ideia»42.

Assim, numa crítica cerrada ao primado kantiano do «eu penso», herdeiro do cogito cartesiano mas também da segurança hobbesiana, Levinas confronta-nos com um desafio radical à paz liberal, ao desenterrar, do fundo do judaísmo e do cristianismo, por estes dias esquecidos, o ideal de amor transcendental para o contrapor à paz liberal e tecnológica da razão imanente:

«Temos de nos perguntar se a paz, em lugar de se dedicar à absorção ou desaparição da alteridade, não deverá ser pelo contrário entendida como forma fraternal da proximidade do outro, que não seria apenas o do fracasso de uma coincidência com o outro, mas que significa precisamente o excesso de socialidade sobre toda a solidão – excesso de socialidade e de Amor. Não pronunciamos esta palavra, tantas vezes abusada, de forma ligeira.»43

A negatividade absoluta da paz face às subjectividades positivadas em «Selves», desmascara o conteúdo egocêntrico da guerra, ao demonstrar que não pode haver nada de substantivo ou de autêntico num ego que não seja a sua própria dívida perante o poder constituinte e criador do outro. Uma soberania que nasce da sua própria dívida perante o outro, qual défice para além da vida.

Toda a construção do eu europeu manifesta, portanto, um princípio imperialista de poder sobre o outro e enquanto tal, o eu europeu não poderá nunca alcançar uma paz definitiva dentro do modelo industrial do liberalismo. Enquanto liberal a Europa é um ego precisamente na medida em que é programado para a guerra o que também significa que quando o inimigo desaparece (como no caso do colapso da URSS) o ego europeu tende a desagregar-se. Deste ponto de vista teológico e transcendental, o sujeito e, claro está, também o colectivo humano, deve portanto procurar uma paz onde a ordem política não corresponda a uma projecção de si mesmo sobre o outro; ou do ponto de vista internacional, onde a ordem política regional ou mesmo global não constitua uma projecção de um ideal de ordem originário de um só Estado ou de um só conjunto de estados sobre outro, como se o mundo fosse o reflexo de um só ego. Para Levinas, não é inevitável que o mundo tenha de ser organizado de acordo com esta triangulação entre ego, razão e paz – pois nenhuma paz se pode fundar num ego que ainda não se questionou sobre os efeitos nefastos da sua própria egocentricidade, como de resto manda a ética judaico-cristã e o imaginário popular bíblico e talmúdico.

Segundo Levinas, a paz liberal não poderá nunca constituir-se em objecto de reflexão sem problematizar o que a sustenta ontologicamente, isto é, a pretensão subjectiva da Europa em racionalizar emoções e vontades de forma a que, no fim desta pacificação emotivo-volitiva, a verdade se erga tão inteligível e reconhecível quanto ela é já produto de um único ego que se plasmou sobre o mundo: triunfo socrático do amor à verdade, derrota cristã da verdade do amor. Ora, em alternativa ao ideal greco-romano de verdade, que funda o primado da razão subjectiva, Levinas propõe um ideal de paz capaz de fintar a violência existencial da Europa, porque antecede ontologicamente os poderes agenciais que guerreiam entre si:

«Eis o desafio da centralidade da Europa e da sua cultura. Uma Europa fatigada! O estilhaçar da universalidade da razão teórica que de sobremaneira se erga no “Conhece-te a ti mesmo” para procurar o universo inteiro na consciência de si. Donde a afirmação e a valorização das culturas particulares em todos os confins do mundo. Uma afirmação que encontra aliás eco e reconhecimento – e muitas vezes a origem – e acolhedora compreensão ao mais alto nível da universidade europeia ela própria. Um interesse da parte do velho mundo, em nome do antigo universalismo europeu, pelos inúmeros particularismos que se pretendem seus iguais. Um interesse que já não deriva de um qualquer gosto pelo exotismo bárbaro, mas constitui, isso sim, uma exaltação de uma lógica outra que não a de Aristóteles, de um pensamento outro que o civilizado. Exaltação que se explica talvez pelo remorso que a memória de guerras coloniais e de uma longa opressão daqueles que chamámos uma vez selvagens cultivou, a memória de uma longa indiferença à tristeza do mundo inteiro.»44

Sem este exercício antifundador de que, de resto, Levinas não é o pioneiro, a nossa capacidade de discernir a hipótese teórica de uma ordem natural pacífica – em que o sujeito ainda não se arrogou o estatuto idólatra de self e, como tal, permanece numa inocente sujeição ao outro – fica comprometida na raiz pelo compromisso identitário com uma certa assunção, inquestionada, sobre o que o sujeito é – e também sobre o que a paz deve ser. O ideal de subjectividade que subjaz ao ideal de cidadania europeu é a de um sujeito que já é pacífico ou bélico antes de ter questionado a origem da sua própria capacidade em decidir entre uma coisa ou outra. Entre outras coisas, isto conduz o sujeito a procurar a paz final através de guerras aparentemente instrumentais – ou ainda a definir qualquer guerra como the war to end all wars que trará a paz derradeira mas que exige do sujeito todo o tipo de pacificações estratégicas que passam necessariamente pela conflitualidade. Para Levinas, portanto, o problema não se põe aquando da naturalização da paz ou da guerra, mas sim no momento em que aquele que guerreia ou aquele que pacifica já se toma como modelo e ideal-tipo do outro que é tomado ora como alvo a abater, ora como sujeito de uma pacificação sem apelo alterior.

Ora, ao esvaziamento das ideologias europeias e à crise de imaginação normativa que entrincheira cada vez mais as elites filosóficas e políticas europeias – e que a razão liberal, como raiz do paradigma industrial europeu, corporiza – não parece estar a sobrepor-se qualquer alternativa política ou programática de uma ordem europeia sustentável a longo prazo, capaz de fazer frente aos desafios demográficos, ambientais e sociais que se antecipam. Se nos fiarmos portanto na ideia de que o poder tem horror ao vazio, esta crise poderá muito bem significar um salto em frente e um escape da paz liberal para uma Pax Germanica tão mais ordenadora quanto mais pacífica. É neste contexto que a relação entre paz e ansiedade pode ser elucidativa do presente estado de crise política, económica e existencial, onde ainda não se afiguram respostas satisfatórias. Enquanto forma de poder, a paz liberal não se revê na sua ansiedade embrionária. Pelo contrário, ela justifica e enuncia a constituição de um espaço securitizado onde a desordem, a guerra ou a violência são colocadas à margem do civilizado para se lhe opor ora através da sua criminalização interna para efeitos de domesticação posterior, ora através da exportação do indomesticável. As pacificações especificamente liberais consistem, portanto, de uma forma ou de outra, em justificação da guerra e assim numa negação, à luz da razão, como Hobbes, de resto, indica claramente: «é um preceito, ou regra geral da razão, que todos os homens devam procurar a Paz, na medida da sua esperança em a alcançar; e quando não a puderem obter, que possam procurar, e usar, todo o auxílio e vantagem da Guerra.»45

Ora, na tradição teológica e filosófica europeia que aqui revisitamos, não são nem o «medo de morte» hobbesiano46 nem o «desejo» entendido de uma forma naturalista e biológica, mas sim a ansiedade, que pode descrever fenomenologicamente – isto é, de uma forma que percebemos mas também sentimos – esta disposição psicológica e até ontológica que pressiona ou conduz o sujeito – seja ele o cidadão, o Estado, o soberano, o império ou uma qualquer comunidade – para se apoderar de um horizonte espácio-temporal determinado, sob a forma de ego, e assim alcançar uma paz que é a condição absoluta da sua realização egocêntrica, culminando na sua projecção externa tão pacificadora quanto conquistadora. No mito cristão da queda, simbolizado na noção de pecado, esta conquista de um espaço consiste num fechamento do sujeito sobre si próprio numa lógica defensiva de orgulho, egoísmo e idolatria.

A distância crítica que Levinas nos oferece permite-nos ter o advento hobbesiano da paz liberal como a reificação histórica da segurança metafísica num pressuposto de bem-estar económico, ou seja, da racionalização técnica do amor transcendental em amor individual, uma segurança autocontida e individualizada que dispensa a afectividade e o cuidado intersubjectivo e assume, em seu lugar, um posicionamento estratégico de autodefesa do self face à ansiedade existencial perante o futuro. É neste pressuposto ontológico que parece assentar a ordem internacional contemporânea, tão dependente da paz armada dos Estados Unidos como da paz liberal de uma Europa desarmada perante o seu próprio destino de alvo da produção industrial das restantes potências. O que faz da Europa uma região muito dependente, mas da qual dependem também todas as restantes economias do mundo. A Pax Germanica faz com que o velho continente reconquiste o seu papel de actor mundial não por qualquer virtude ou voluntarismo próprios, mas porque, ao se reconstituir como centro produtor e consumidor global, se vê de novo confrontado com a possibilidade, tão impossível quanto já imaginável, do colapso de um imenso sistema de interdependência que centraliza em si mesmo mas já não controla.

É hoje visível – à luz das crises demográficas, energéticas e ambientais – que o fardo das expectativas que a paz liberal cria no sujeito está a tornar-se progressivamente insustentável, sinal de que mesmo a ordem económica capitalista que cultiva essas expectativas o faz de tal forma que deixa de lhes poder corresponder. É afinal este abismo entre «espaço de experiência» e «horizonte de expectativa»47 de que Koselleck fala na sua análise histórica das noções de tempo modernas e pré-modernas, e que reintroduz na discussão da Pax Germanica eminente o problema da velha Angst europeia. O «amor da sabedoria», como oposto ao «amor da verdade», ensina-nos que a paz não poderá nunca vir de uma experiência colectiva que se sacrifica constantemente a expectativas que não controla – uma dinâmica que parece constituir, todavia, a quintessência do paradigma de paz liberal. Uma irrespondível responsabilidade a que a zona euro não tem conseguido dar vazão e que leva a que o cenário de guerra invada de novo o imaginário colectivo europeu.

Ora, este paradoxo de solução difícil senão mesmo impossível, é simbolizado na topologia mítica de Jerusalém e de Atenas, como pólos balizadores da identidade europeia e da sua constante ânsia existencial, a que Heidegger se referia em termos aristotélicos como configurando uma permanente afectividade ou ligação – sorge em alemão ou «cura» em latim – entre potenzialitat e actualitat48. Nesta simbiose entre afecto, angústia, ansiedade, solicitude, apego, cuidado, cura e care insinua-se o ideal judaico-cristão do amor que, de resto, foi sempre central para a Europa, até do ponto de vista negativo, isto é, como objecto de apropriações imperialistas indevidas. Resta saber até que ponto ela poderá continuar a informar o projecto europeu em tempos de afirmação protestante que parece querer helenizar a própria Atenas. Talvez Levinas esteja certo quando se refere a uma futura e esperada «contestação da centralidade da Europa a partir de si mesma», a que acrescenta o seguinte laivo de esperança: «Mas, talvez, através desta, encontremos o testemunho de uma Europa que não é apenas helénica! E assim também a questão de saber qual o papel desse helenismo, numa Europa que queremos cumpridora das suas promessas»49.

 

CONCLUSÃO

Não deixa de ser sintomático deste paradoxo existencial entre promessa e incumprimento, a imagem permanentemente televisionada nos dias que correm de uma Atenas a arder face ao avanço austero e sentencioso de uma paz liberal e protestante, uma paz que se pretende de uma vitalidade helénica e heróica face à tradição judaico-cristã e que sobrepõe a ética do trabalho e de anonimato do Mensch-Maschine do Norte aos brandos costumes da moral do homini otioso do Sul. A ansiedade colectiva que a presente crise revela, uma ansiedade que se manifesta quer na violência física das ruas das capitais da periferia europeia, quer na violência de um discurso de austeridade económica, pronunciado a partir de um centro de decisão assertivo e sentencioso face ao Sul, não resulta de uma frustração generalizada face ao incumprimento dos planos económicos – potencialmente passível de criminalização – nem tão-pouco da desilusão do Norte protestante face à inadaptação dos países da Europa mediterrânica, cujas historiografias são agora reescritas à luz da sua capacidade ou incapacidade de adopção do capitalismo económico e do liberalismo democrático como panaceias do desenvolvimento moral e mesmo da sua realização enquanto nações. A Angst desta nova Pax Germanica – cujo enorme poder simbólico dispensa qualquer poderio militar que a Alemanha, de resto, não possui – resulta sim do confronto com a curae latina do Sul europeu, um tipo de ansiedade milenar que o Sul sempre cultivou como reserva sentimental e moral face aos poderes da Europa do Norte.

Neste conflito latente entre Norte e Sul, Atenas surge ajoelhada aos pés de uma razão austera que fez nascer e que agora a comanda a partir de fora. Um helenismo que, germanizado, subjuga a própria Grécia e a apresenta como brecha incurável do «verdadeiro eu» europeu, qual barbarização racional da razão-Europa. Neste baile de máscaras, a racionalidade da Grécia antiga é finalmente transposta para a máquina financeira e normativa do protestantismo eurocêntrico que purifica o Sul. A antiga Europa dos bárbaros civilizou-se ao ponto de agora se arrogar o direito de romanizar um espaço outrora romano. O primado da razão vira-se contra si próprio, metamorfoseado numa austeridade antidemocrática própria de todos os capitalismos modernos, apostados na dispensabilidade da tradição judaico-cristã, e investidos na rememoração iluminista da prioridade do racional sobre o emocional e assim também do económico sobre o político – como se esta não correspondesse também a uma agenda política como nos lembrava Schmitt.

A lógica de endividamento das maiores economias europeias confirma e reforça a cumplicidade entre noções hegemónicas de subjectividade e identidade, de ontologia individualista hermética e autocriada, e o sistema liberal: de facto, hoje, a identidade de um país do Sul europeu – e a potencialidade desse país em actualizar o que na sua essência ele pretender ser – depende da sua capacidade financeira para pagar uma dívida externa. Ou seja, os países do Sul vêem-se agora forçados a comprar a sua própria identidade como se as suas soberanias não lhes tivessem saído caras no passado. A dívida soberana enquanto comodificação da soberania. Claro que as nações europeias recebem algo em troca, nomeadamente a possibilidade de ascenderem a níveis de vida – entenda-se de consumo – e a um padrão demográfico que prolonga a paz liberal porque permite mais longevidade, logo mais produtividade. Mas estes padrões são, também eles, insustentáveis a prazo.

A acrescentar a esta securitização do horizonte de pagamento da dívida soberana, está a criminalização do endividamento excessivo, cada vez mais ventilada nos discursos de Sarkozy e de Merkel – e claro, do próprio presidente da Comissão Europeia e de toda a elite emergida das tecnocracias e das burocracias da União Europeia. Esta leva não só à perda de soberania do Sul da Europa mas também à sua reconstituição como um verdadeiro gang de delinquentes. Recorrendo ao imaginário foucaultiano, um tipo específico de criminologia financeira internacional emerge também aqui ao serviço do panóptico franco-alemão como indutora de uma «tecnologia do self» nacional, em que os estados soberanos do Sul são «neutralizados» e «despolitizados» numa Pax Germanica que pacifica a Europa através do castigo e do incentivo, da reprimenda e da recompensa, uma infantilização que se julgava dificilmente instituível no próprio coração da Europa, mas que é sintoma da falta de soluções maduras para os problemas que confrontam o velho continente.

Os conflitos nas ruas de Londres, Atenas e Paris nos últimos anos simbolizam essa auto-imolação da razão iluminista –, isto é, do projecto civilizacional ateniense no seu todo – como uma paz tecnocrata e tecnológica, pretensamente autónoma e imune, secular e sem espírito, capaz de dispensar as noções de amor e de solidariedade judaico-cristãs e, como tal, procurando subjugar a longevidade da integração europeia ao sucesso da paz liberal do capitalismo germânico e da sua afirmação, enquanto Estado/bloco económico continental no sistema internacional das grandes potências. É neste contexto que o projecto liberal pode agora ser visto como o objectivo da paz política, donde a caracterização da actual ordem europeia neste artigo como configurando uma paz germânica onde o fim da construção de uma comunidade de cidadãos europeus assente numa sociedade civil plural e crítica, é anteposto ao fim económico, agora celebrado politicamente no seu poder neutralizador da guerra e potenciador do bem-estar material como fim último da política.

Valha-nos portanto o estado actual de crise de identidade(s) europeia(s) para nos lembrarmos que nem sempre – aliás quase nunca – podemos escolher o que sentimos; e que são os lençóis freáticos do nosso subconsciente emocional que cortam com as racionalidades estabelecidas da paz e da guerra, forçando sobre nós disposições agenciais que desconhecíamos e que, não podendo racionalizar ou institucionalizar por completo, podem despertar formas de sociabilidade que as fórmulas institucionais e legais do passado ainda não exauriram. Por quanto tempo mais poderá o modelo liberal ancorar-se única e exclusivamente na memória do que o seu colapso histórico provocou?

 

NOTAS

1 NIEBUHR, Reinhold – Pious and Secular America. Nova York: Wipf & Stock, 2001 (original de 1958),         [ Links ]

2 AUDEN, W. H. – The Age of Anxiety: A Baroque Eclogue. Nova Jérsia: Princeton University Press, 2011, p. 46 (original de 1937).         [ Links ]

3 ARENDT, Hannah – On Violence. Nova York: Harvest Book, 1969, p. 9.         [ Links ]

4 SCHMITT, Carl – «The age of depoliticizations and neutralizations», In The Concept of the Political. Chicago: University of Chicago Press, 2007.         [ Links ] As citações que constam deste artigo foram traduzidas por mim directamente do inglês.

5 LEVINAS, Emmanuel – Alterité et Transcendence. Paris: Fata Morgana, 1995 (original de 1984).         [ Links ] As citações que constam deste artigo foram traduzidas por mim directamente do francês.

6 SCHMITT, Carl – «The age of depoliticizations and neutralizations», p. 80.         [ Links ]

7 KOSELLECK, Reinhart – Futures Past. Nova York: Columbia University Press, 2004, p. 191.         [ Links ]

8 SCHMITT, Carl – «The age of depoliticizations and neutralizations», p. 80.         [ Links ]

9 Ibidem.

10 BOTWINICK, Aryeh – «Same/Other versus Friend/Enemy: Levinas contra Schmitt». In Telos. N.º 132, Outubro de 2005, p. 53.         [ Links ]

11 SCHMITT, Carl – «The age of depoliticizations and neutralizations», p. 80.         [ Links ]

12 SOUSA, Teresa de – Entrevista a Jean-Claude Juncker. In Público, 14 de Novembro de 2011, p. 6.

13 SCHMITT, Carl – «The age of depoliticizations and neutralizations», p. 92.         [ Links ]

14 Ibidem.

15 FERNANDES, Jorge Almeida – «Não é a tecnocracia, é a política». In Público, 19 de Novembro de 2011, p. 10.         [ Links ]

16 Ibidem.

17 SCHMITT, Carl – «The age of depoliticizations and neutralizations», p. 89.         [ Links ]

18 Ibidem, p. 90.

19 Ibidem, p. 91.

20 OGOUGBE, Abert Dossa – Modernité et Christianisme. Paris: L’Harmattan, 2010, pp. 100-101.         [ Links ]

21 Para uma introdução à temática da europeização do Estado alemão ver DAHENHARDT, Patrícia – «Germany in the European Union». In WONG, Reuben, e Hill, Christopher – National and European Foreign Policies. Londres: Routledge, 2011.         [ Links ]

22 WEBER, Max – The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. Nova York: Dover Publications, 2003.         [ Links ]

23 HABERMAS, Jürgen, – The Philosophical Discourse of Modernity. Cambridge: Polity Press, 1990.         [ Links ]

24 STRAUSS, Leo – «Notes on Carl Schmitt. The concept of the political». In SCHMITT, Carl – The Concept of the Political. Chicago: University of Chicago Press, 2007, p. 106.         [ Links ]

25 ELIAS, Norbert – The Civilizing Process. Oxford: Blackwell Publishers, 1994, p. 198, (original de 1939).         [ Links ]

26 HOBBES, Thomas – The Leviathan, Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 76.         [ Links ]

27 HABERMAS, Jürgen, The Postnational Constellation. Cambridge: MIT Press, 2001, p. 131.         [ Links ]

28 HOBBES, Thomas – The Leviathan, p. 76.         [ Links ]

29 Ibidem, p. 90.

30 Ibidem.

31 Ibidem.

32 Ibidem, p. 76.

33 VOEGELIN, Eric – The World of the Polis. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1957.         [ Links ] Ver ainda, a este respeito, o excelente artigo de SYSE, Heinrik – «Karl Lowith and Eric Voegelin on Christianity and history». In Modern Age, 2000. Disponível em: http://www.mmisi.org/ma/42_03/syse.pdf         [ Links ]

34 Levinas, Emmanuel – Alterité et Transcendence, p.139.         [ Links ]

35 Ibidem, p. 140.

36 Ibidem, p. 138.

37 Ibidem, p. 141.

38 Anúncio da marca Hugo Boss, «Just Different». Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=IiRG7SjZeBw

39 SYSE, Heinrik – «Karl Lowith and Eric Voegelin on Christianity and history»         [ Links ].

40 LEVINAS, Emmanuel – Alterité et Transcendence, pp. 136-137.         [ Links ]

41 Ibidem, p. 136.

42 CAYGILL, Howard – Levinas and the Political. Routledge: Londres, 2002, p. 121.         [ Links ]

43 LEVINAS, Emmanuel – Alterité et Transcendence, p. 141.         [ Links ]

44 Ibidem, pp. 137-138.

45 HOBBES, Thomas – The Leviathan, pp. 91-92.         [ Links ]

46 Ibidem, p. 90.

47 KOSELLECK, Reinhart – Futures Past, pp. 255-275.         [ Links ]

48 HEIDEGGER, Martin – Being and Time. Oxford: Wiley-Blackwell, 1978, p. 237 (original de 1927).         [ Links ]

49 LEVINAS, Emmanuel – Alterité et Transcendence, p. 138.         [ Links ]

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